Sintomas infantis diante do divórcio: medicalização e judicialização das relações familiares

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Os sintomas infantis comportam características que mobilizam articulações entre os saberes da medicina, da psicanálise e do direito. Eles se apresentam como dispositivos primordiais para uma compreensão ampliada das questões que atravessam a infância na contemporaneidade, como a medicalização e judicialização das relações familiares.

De acordo com Foucault (1963), ao estudar a tradição da clínica médica, entende-se por sintoma a forma como a doença se manifesta. Os sintomas representam uma verdade sobre a patologia que se encontra exposta ao olhar clínico sensível à diferença, em relação a um estado que se define como sendo a saúde. Por ser a transcrição primeira da doença, os sintomas deixam transparecer uma figura invariável, visível e/ou invisível da patologia. Zafirian (1986) acrescenta que para se produzir um diagnóstico em medicina, no quadro da atividade médica, há sinais funcionais, físicos, biológicos, entre outros, que referidos ou não a uma etiologia conhecida permitem classificar o doente em uma categoria. Todavia, no âmbito psiquiátrico, no que tange ao sofrimento psíquico, torna-se mais complexo seguir o procedimento médico, posto não haver um sinal objetivo nem um sintoma patognomônico determinante da patologia mental. Esta se inscreve como um distúrbio de comportamento em relação a uma norma estabelecida, entretanto, a formulação da própria norma varia conforme o meio, a cultura e o período sócio-histórico.

Foucault (1963) pontua que a psicanálise tanto deriva como rompe com a clínica médica, sobretudo no que se refere à noção de sintoma. Diferentemente do sintoma médico, o sintoma psicanalítico adquiriu o estatuto de porta-voz da verdade do sujeito. Nesse sentido, o sintoma não representa a verdade da doença, porém, não deixa de se referir a uma verdade: a verdade do sujeito do inconsciente.

Ansermet (2003) explica que se para o médico o que se manifesta sinaliza algo estabelecido em seu saber, para o analista, em contrapartida, o sintoma possui caráter enigmático e sujeito à decifração.

Especificamente em relação aos sintomas infantis, Dolto (2013) aponta para a articulação estrutural entre o sintoma da criança, o discurso, a fantasia e o desejo dos pais. Para a autora, a criança expressa através dos seus sintomas as consequências de um conflito vivo em seus pais. A criança suporta inconscientemente o peso das tensões e interferências da dinâmica emocional em ação nos pais, cujo efeito de contaminação mórbida é tão intenso quanto mais se guarda ao seu redor o silêncio e o segredo.

Pedir a uma criança para estruturar-se sobre algo que não é dito, que foi silenciado a ela, significa exigir a negação de uma parte de si mesma. Assim, pensamos que a angústia infantil se presentifica enquanto sintoma, principalmente quando a criança e os pais não conseguem traduzir o seu sofrimento em palavras.

A situação de angústia se caracteriza pela impossibilidade de utilizar a palavra como mediadora. Desse modo, o excesso de angústia transborda e pode produzir crises e sintomas nas crianças. O processo de colocar o sofrimento em palavras mediante uma escuta analítica viabiliza que a supertensão promovida pela angústia possa ser dissipada. Assim, compreendemos os sintomas como uma linguagem inconsciente associada ao corpo e ao esquema corporal. Para Dolto (2017): “Estes sintomas que endividam a liberdade de viver são também meios de expressar o sofrimento de um ser humano atingido em seu narcisismo (p.310)”.

Nos casos de divórcio, por haver diversas nuances no processo e por exigir dos cônjuges um árduo trabalho psíquico, consideramos o divórcio litigioso como um processo potencialmente traumático que remonta às identificações primordiais, estando assim suscetível à transmissão psíquica transgeracional. Com efeito, observa-se que os traumas são terrenos férteis para a transmissão psíquica transgeracional, pois ficam fora da possibilidade de processamento psíquico, de simbolização e da linguagem. Os restos traumáticos podem ser repetidos ao longo de sucessivas gerações sob a forma de sintoma.

No litígio conjugal os pais estão preocupados em vencer a disputa judicial e não se importam com as “armas” que serão utilizadas no embate. No fogo cruzado encontra-se a criança, cuja constituição psíquica depende dos seus modelos identificatórios.

Quando um casal, antes ligado pelos laços do amor, passa a brigar movido por vingança, ódio ou pelos bens adquiridos, a criança não é incluída neste conflito sem consequências. A associação entre conflitos conjugais e angústia nos filhos é enunciada quer seja por meio de atos e sintomas, quer seja por meio dos próprios discursos dos pais. As investigações sobre o imbricamento entre o sintoma infantil e o conflito parental demandam um minucioso aprofundamento clínico-teórico, tendo em vista que por vezes a criança pode se identificar com o próprio conflito e relacionar a sua importância na vida dos seus pais com a intensidade do conflito. A presença dos pais adquire um papel central no tratamento infantil, de suma importância, tendo em vista o enlace fantasístico, fantasmático, discursivo comum que une os pais e a criança sintomaticamente. Contudo, a pluralidade de fatores presentes no sintoma infantil vem sendo solapada em benefício de uma leitura estreita, localizacionista e patologizante do sofrimento e da angústia infantil, cuja tônica é posta no funcionamento cerebral da criança.

A partir do DSM-5, foram categorizadas em termos descritivos situações como o abuso infantil, a criança afetada pela relação dos pais e sofrimento pela ruptura conjugal, entre outros acontecimentos que sugerem a fusão dos discursos médico e jurídico. A inclusão destes novos itens parece abrir espaço para a inclusão da Síndrome da Alienação Parental (SAP) em manuais diagnósticos psiquiátricos. Esta síndrome foi descrita inicialmente pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner na década de 1980 para designar casos de um distúrbio infantil que acometeria, especialmente, menores de idade envolvidos em situações de disputa de guarda entre os pais. Na visão do autor, esta síndrome se desenvolve a partir de programação ou lavagem cerebral realizada por um dos genitores para que o filho rejeite o outro responsável (Gardner, 2001).

Desde os escritos de Gardner havia a expectativa de que a denominada SAP fosse incluída no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-V, pela Associação Americana de Psiquiatria. E, atualmente, observamos a presença de duas categorias diagnósticas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a saber: V 61.03 (Z 63.5) Ruptura da Família por Separação ou Divórcio e V 61.29 (Z 62.898) Criança Afetada por Sofrimento na Relação dos Pais. Entretanto, vale mencionar que diversas categorias diagnósticas listadas no referido manual têm contribuído para o incremento de pesquisas com vistas a que se disponibilizem novos medicamentos no mercado, medicalizando massivamente as crianças e judicializando cada vez mais as relações familiares. A despeito das polêmicas e controvérsias que atravessam este assunto, a proposta de Gardner difundiu-se rapidamente no Brasil e em outros países, levando
alguns a pensar que a suposta síndrome havia se tornado uma epidemia em todo o
mundo.

Nesse fluxo, houve intensa mobilização da opinião pública e, a comoção gerada em torno do sofrimento de crianças que supostamente seriam vítimas da SAP culminou na elaboração da Lei nº. 12.318/10. Esta lei teria como objetivo identificar e punir os genitores tidos como responsáveis pela alienação parental dos filhos. Todavia, apesar do esforço e da empenhada atuação multidisciplinar no judiciário, principalmente do poder geral de cautela do juiz no propósito de suprimir a alienação, é comum no final do processo não se conseguir provar a alienação parental (Sousa & Brito, 2011) nem as situações de abuso descritas no manual.

Próchno, Paravidini e Cunha (2011), ao analisarem criticamente a SAP, relativizam o protagonismo feminino do papel de alienador. Segundo a pesquisa destes autores, a mulher não necessita mais do marido para garantir a sua sobrevivência, portanto, ela pode tomar iniciativas em separações conjugais, sem com isso carregar consigo qualquer sentimento de culpa ou vingança. O que antes era exceção, hoje é um fato corriqueiro. Divórcios e separações conjugais fazem parte da realidade conjugal. Nüske e Grigorieff (2015) acrescentam que quando existem filhos, o final da conjugalidade não representa o fim da família, mas sim a sua transformação de família nuclear em binuclear. Sob este prisma, o divórcio não enseja um distanciamento paterno ou materno-filial, visto que a separação não se resume à família parental.

Presenciamos a crescente judicialização das relações familiares associada ao adoecimento dos laços filiativos e afiliativos. Parece que o excesso de demandas judiciais em busca de resoluções para as questões familiares não tem como contraponto dispositivos que possibilitem a composição e a elaboração destas questões. Se por um lado, o sistema judiciário não consegue fazer frente a tudo que lhe chega, seja na quantidade de casos, seja na complexidade dos assuntos, por outro, as medidas judiciais não se mostram eficientes (e suficientes).

A transposição das desavenças conjugais para o judiciário requer a
participação efetiva da psicologia no trabalho com as famílias que chegam à Justiça
como forma de auxiliar o restabelecimento da saúde psíquica individual e familiar.
A participação da psicologia não se resume a confecção de laudos, relatórios e
pareceres. O caráter avaliativo não se sobrepõe à necessidade de ações coletivas e
individuais para o reestabelecimento da saúde mental dos indivíduos envolvidos no
litígio.

O trabalho integrado e interdisciplinar voltado para a saúde mental e para os aspectos psicopatológicos presentes no divórcio pode contribuir sobremaneira para aliviar o judiciário do excessivo número de processos e demandas judiciais, reduzir a judicialização das relações e apresentar soluções estruturadas e eficazes para a resolução efetiva do litígio.