Reforma Psiquiátrica: diagnóstico psiquiátrico e alternativas (3)

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Este é o quarto de uma sequência de blogs que estou escrevendo para analisar alguns aspectos da reforma psiquiátrica que considero como sendo críticos. Venho apresentando a proposta construída pela Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia.

 

O que vimos até agora:

  • A dependência da assistência em saúde mental aos critérios de diagnóstico do DSM / CID. Suas consequências.
  • Uma compreensão dos princípios básicos do PTMF e como eles diferem daqueles do modelo biomédico.
  • Um entendimento do que a abordagem do PTMF quer dizer: poder, ameaças, significado e respostas às ameaças. 

Por que nós necessitamos de identificar padrões gerais no sofrimento psíquico?

Como você leitor provavelmente se deu conta, o PTMF se baseia em uma ampla gama de ideias, abordagens e críticas com as quais você se sente já familiarizado. Muitas das terapias existentes e estratégias de autoajuda são muito consistentes com os princípios do PTMF. Por exemplo, o Diálogo-Aberto, a Rede dos Ouvidores de Vozes, a terapia de narrativa e outras abordagens que já não seguem a perspectiva do diagnóstico. O PTMF pode ser visto como uma estrutura muito ampla que acomoda e suporta uma gama de modelos específicos.  Ele também pode ser usado para identificar lacunas nessas abordagens, que com muita frequência surgem por ser dada a devida atenção para a operação do poder e dos significados ideológicos a ele associados.

Será que necessitamos de identificar padrões gerais? Não estaríamos uma vez mais reproduzindo a lógica de classificar formas de pensar, sentir e agir em termos do que é patológico versus o normal? Assim sendo, ao propor substituir o modelo de diagnóstico psiquiátrico por um outro supostamente alternativo, não estaríamos trocando seis por meia dúzia?  E verdade que o PTMF é uma estrutura global para identificar padrões de sofrimento emocional, experiências incomuns e comportamento perturbador. Contudo, suas pretensões teóricas e éticas é que possa funcionar como uma alternativa de fato ao diagnóstico e classificação psiquiátrica do que é normal e do que é patológico.

O Padrão Fundamental

É considerado como sendo o “padrão fundamental” porque sustenta todos os outros, não importa se aplicado a um indivíduo, família, grupo ou ao nível populacional.

  • Todas as formas de adversidade são mais comuns em contextos de desigualdade e outras formas de privação, discriminação, marginalização e injustiça social.
  • Discursos sociais e significados ideológicos dão forma a experiência e expressão do sofrimento.
  • As relações de apego interrompidas muito cedo são uma forma de adversidade em si próprias, e preparam o cenário para respostas emocionais mediadas biologicamente às adversidades subsequentes.
  • Uma grande parte do impacto da adversidade pode ser explicada por fatores que exacerbam a experiência de ameaça. Isso inclui quanto mais precoce for a idade de desenvolvimento; sentir-se preso em uma armadilha; ameaça interpessoal e intencional; imprevisibilidade e falta de controle sobre a ameaça; ameaças repetidas e múltiplas; invasão física; ameaça crônica de fundo; e falta de alguém em quem confiar e agir como protetor.

Esse diagrama nos ajuda a ter uma visão global da abordagem do PTMF.

O “padrão fundamental” é assim definido: “Desigualdades econômicas/sociais e significados ideológicos que dão suporte à operação negativa do poder resultam em níveis mais elevados de insegurança, falta de coesão, medo, desconfiança, violência e conflito, preconceito, discriminação, e adversidades sociais e relacionais em todas as sociedades. Isso tem implicações para todo o mundo, e particularmente para aqueles com identidades marginalizadas. Limita a capacidade dos cuidadores para fornecer às crianças relações seguras durante a sua infância, que por si só é perturbador para o desenvolvimento da criança, como também compromete a sua capacidade para manejar o impacto de adversidades futuras. Adversidades são correlacionadas, de tal modo que a sua ocorrência em um momento do passado da pessoa e/ou no presente, o que cria a possibilidade dela experimentar outras adversidades subsequentes. Aspectos tais como dano intencional, traição, impotência, aprisionamento e imprevisibilidade aumentam o impacto dessas adversidades, e isso não é apenas cumulativo, mas sinérgico. Com o passar do tempo, a operação da interação complexa de adversidades resulta em uma probabilidade muito maior de experimentar sofrimento emocional e comportamentos perturbados ou perturbadores. A forma dessas expressões de sofrimento é moldada pelos recursos disponíveis, pelos discursos sociais, pelas capacidades corporais e ambiente cultural, e a sua função central é promover segurança emocional, física e social e sobrevivência. Na medida em que as adversidades se acumulam, o número e a gravidade dessas respostas crescem em conjunto, junto com outros indesejados resultados de saúde, comportamental e social. Na ausência de fatores ou intervenções atenuantes, o ciclo é então criado para continuar nas novas gerações.” (Johnstone & Boyle, 2018, p. 195).

Padrões Gerais e suas características

Já vimos como os padrões em medicina estão baseados em descrições das várias maneiras nas quais as coisas podem ir mal com os nossos corpos. Mas quando se fala em pensamentos, sentimentos e comportamentos humanos, nós necessitamos fazer uma grande mudança em direção a tipos de padrões muito diferentes, que são primariamente moldados pelas complexas interações baseadas no significado com os nossos meios ambientes físicos, sociais e culturais. Nossos corpos estão inevitavelmente envolvidos em algum nível. Mas como bem dizem as autoras, reconhecer as reações corporais frente às adversidades não é o mesmo que tentar entender o sofrimento psíquico em termos de padrões na biologia.

Os padrões do PTMF podem ser descritos como respostas à operação negativa do poder, incorporadas e baseadas em significados.

As características dos padrões gerais:

  • Os padrões não estão baseados em relações de causa-efeito entre o que acontece com as pessoas e se, ou como, elas podem experimentar o sofrimento. Isso ocorre pelo fato que tudo é moldado pelos significados que nós criamos acerca das circunstâncias complexas de nossas vidas e as fontes de poder disponíveis para nós.
  • Como resultado, os padrões são, e serão sempre, soltos e sobrepostos, provisórios e incertos. Não há nenhum “padrão para a psicose” ou para o “transtorno da personalidade”, e tampouco não se espera por um simples encaixe entre uma narrativa pessoal e um padrão específico mais amplo. Isso não é um fracasso dos padrões. É simplesmente como as coisas são no campo do sofrimento emocional humano, e significa que há sempre esperança por mudança.
  • Há regularidades, ou modo comuns de responder às ameaças, que estão enraizadas em nossa biologia, em nossas sociedades e em nossas culturas. Os padrões do PTMF refletem essas regularidades.
  • Os padrões ultrapassam noções “normal” e “anormal” e “mentalmente doente” e “mentalmente sano”. Os padrões se aplicam a todos nós humanos afetados em algumas áreas de nossas vidas pela operação negativa do poder, nós todos experimentamos ameaças, nós todos damos sentido ao que se passa conosco e com os outros, e nós todos usamos respostas às ameaças.
  • Os padrões podem ser usados para apoio à construção ou coconstrução, de narrativas livres da lógica do diagnóstico e histórias a respeito das vidas das pessoas.

O documento descreve padrões do poder negativo e ameaças comuns. Em “blogs” anteriores eu os apresentei de uma forma mais ampla.  Acho que neste “blog” vale a pena eu apresentar com mais detalhes formas de significado e de respostas às ameaças muito comuns entre todos nós.

Formas de significar as situações e experiências frente as ameaças do poder (“Que significado você dá a essas situações e experiências?” “Que sentido você dá a isso?”)

Inseguro, assustado, atacado Encurralado
Abandonado, rejeitado Derrotado
Indefeso, impotente Fracassado, inferior
Desesperançado Culpado, condenável, responsável
Invadido Traído
Controlado Envergonhado, humilhado
Emocionalmente oprimido Senso de injustiça
Emocionalmente “vazio” Perda de sentido
Isolado, solitário Contaminado, mal
Excluído, alienado Pária, perigoso
Ruim, sem valor Diferente/anormal

 

Respostas às ameaças (“Que tipos de Respostas às Ameaças você tem usado?”, “O que você fez para sobreviver?”)

Tipos de respostas comuns entre nós:

Preparar-se para “lutar” ou atacar; preparar-se para “fuga”, escapar, buscar segurança; resposta de “congelamento”; hipervigilância, respostas de surpresa, insônia; pânico, fobias; codificação de memória fragmentada; supressão de memória (amnésia; ouvir vozes; dissociação (perdendo a noção e tempo/lugar; vários graus de divisão de consciência); despersonalização, desrealização; flashbacks; pesadelos; entorpecimento emocional, achatamento, indiferença; entorpecimento corporal; pensamentos persecutórios; regressão emocional, afastamento; sustentar crenças incomuns; problemas de atenção/concentração; auto-imagem e sentido de si confusa/imagem instável; discurso e comunicação confusos e confundidos; auto-agressão de vários tipos; auto-negligência; dieta, fome infringida a si próprio; gula, comer demais; auto-silenciamento; autocondenação e autopunição; ódiio ao corpo; pensamentos compulsivos; realização de rituais e outros “comportamentos de segurança”; coletar, acumular; evitação / uso compulsivo da sexualidade; impulsividade; raiva, fúria; agressão e violência; pensamentos e ações suicidas; desconfiança dos outros; empatia reduzida; uso de drogas, álcool e fumo; sensações somáticas – tensão, vertigem, dor física, zumbido; sensações de calor ou frio, exaustão, irritação da pele, problemas gastrointestinais e muitas outras reações corporais; defesas emocionais: grandiosidade, negação, externalização, projeção, idealização; intelectualização (evitação de sentimentos e sensações corporais); estratégias relacionais; rejeição e manutenção de distanciamento emocional; etc., etc.

Exemplos de respostas às ameaças mais comuns nas crianças e nos jovens:

Problemas com o comer / dormir Bater, morder
Concentração pobre, distrair-se Medo extremo de separação
Impulsividade Fobias
Fazer xixi na cama Crueldade com animais
Tiques nervosos, ficar se coçando Retirada emocional, regressão
Roubo Evasão
Atraso na fala e no desenvolvimento Relações ruins com seus colegas
Intimidar os outros Comportamento sexualizado
Fugir de casa

 

No próximo “blog” quero concluir essa apresentação do PTMF. Irei transcrever alguns casos trabalhados com a abordagem do PTMF.

Para concluir este “blog”, reitero a sugestão que você procure acessar as referências originais, porque o que estou fazendo aqui é simplesmente buscar despertar o seu interesse para conhecer o conteúdo do PTMF.