A seguir, apresentamos a entrevista que a Dra. Joanna Moncrieff recentemente deu para o madinbrasil. A Dra. Joanna estará apresentando a palestra inaugural do 5 Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas. O Seminário ocorrerá nos dias 04 e 05 de novembro próximo. O Evento será promovido pelo LAPS/ENSP/FIOCRUZ. Abaixo você poderá fazer a inscrição no Seminário.
Nesta entrevista a Dra. Joanna Moncrieff fala do tema da sua palestra – O passado e o futuro da psiquiatria e suas drogas. Em termos gerais, a mensagem é que o papel da psiquiatria tem sido predominantemente de ‘medicalizar’ os problemas psicológicos e o sofrimento psíquico. A problemática das drogas psiquiátricas ganha destaque ao longo da entrevista, na medida em que o tratamento psicofarmacológico está baseado em uma falsa ideia de que o medicamento age em uma suposta base biológica do transtorno mental.
Dra. Joanna questiona se é justificável que problemas psicológicos e o sofrimento psíquico sejam tratados em dispositivos assistenciais do sistema de saúde, como é a prática atual.
A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Veja aqui a entrevista na íntegra.
Fernando: Bom dia, Joanna. Esta entrevista será uma prévia do que você irá nos apresentar no 5 Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas. Em 04 de novembro, você irá falar a respeito do ‘passado e o futuro da Psiquiatria e suas Drogas’. Você sabe que você é a convida ilustre do Seminário. Primeiramente, você poderia nos dizer algo sobre as principais questões que irá nos apresentar?
Joanna: Obrigado pela sua introdução. Irei falar sobre o passado e o futuro da psiquiatria. Há alguns anos que venho refletindo sobre o que a profissão psiquiátrica vem fazendo, o que no passado foi realizado e o que vem ocorrendo. É sobre isso o que eu quero falar no Seminário. Em termos gerais, a mensagem é que o papel da psiquiatria tem sido a medicalização dos problemas psicológicos e o sofrimento mental. Isso ocorre por razões específicas. Isso acontece porque há os interesses da corporação psiquiátrica e os interesses da indústria farmacêutica. Mas também, particularmente, o que é muito importante, porque tem sempre havido um apoio político por detrás do projeto de medicalização. Na minha opinião, a medicalização dos complexos problemas humanos seria porque tornaria mais fácil manejá-los, isso dito de uma forma nua e crua. Contudo, não necessariamente essa é a melhor forma de se lidar com as pessoas envolvidas.
Se por exemplo pensarmos nas drogas, no uso das drogas prescritas para tratar problemas de saúde mental, isso tem sido apresentado cada vez mais como tratamento médico que visa uma doença subjacente. E isso evidentemente ajuda a dar suporte à essa ideia da medicalização do sofrimento psíquico. É a ideia de que os transtornos mentais são doenças como quaisquer outras doenças, como um câncer de pulmão ou a asma. E isso é uma maneira equivocada de ver, porque se a gente entende as drogas dessa maneira a gente entende equivocadamente o que se passa. Porque não é isso o que se passa na realidade, nós não temos realmente evidências de que um transtorno psíquico seja produzido por alguma patologia biológica específica. Não temos evidências de que as drogas agem dessa maneira. E o que é o pior: se pensamos que é assim o que ocorre, nós perdemos o fato de que essas drogas estão fazendo uma outra coisa. Elas estão alterando o modo como as pessoas normalmente pensam, sentem e se comportam. E se algumas dessas alterações podem em algumas circunstâncias ser úteis, em outras podem não o ser. Nós necessitamos entender é que o que as drogas estão fazendo é alterar o estado normal de como o cérebro funciona, para se decidir se é uma boa coisa ou uma má coisa.
Isso se aplica aos pacientes assim como aos profissionais que necessitam saber que as drogas podem estar alterando os modos de pensar e sentir, para que possam tomar decisões informadas se essa ou aquela droga pode ser ou não útil. Igualmente, os profissionais precisam entender que as drogas estão alterando o funcionamento do corpo e do cérebro, caso contrário não entendem por que elas podem ser muito negativas. São consequências que podem provavelmente ser duradouras ou permanentes. Se se põe uma química no corpo que não seja útil, isso reage contra o equilíbrio químico do corpo e produz danos.
O que eu estou tentando dizer é que precisamos ter uma visão mais transparente sobre os danos com tratamento com drogas em psiquiatria. E usar o consentimento informado de modo seguro.
E necessitamos entender que se o uso de drogas pode ser útil, isso não quer dizer que necessariamente estamos agindo em um transtorno biológico. Sabemos que as drogas alteram a nossa forma de sentir as coisas. O álcool faz isso, a heroína faz isso. Mas o álcool e a heroína – agindo sobre formas de sentir – não estão agindo em doenças subjacentes.
Precisamos entender melhor as drogas psiquiátricas e como lidamos com as drogas recreativas.
E estar mais atentos para não cair na armadilha da ideia de que os efeitos das drogas confirmam o fato de que os transtornos mentais tenham uma base biológica subjacente, de que as drogas agem sobre os problemas psicológicos com base em um determinado suporte biológico.
Acho que foi uma longa resposta que eu dei.
Fernando: Há algo que sempre vem à mente quando se fala a respeito do papel da psiquiatria hoje em dia. Como psiquiatra, você pensa possível ser psiquiatra sem fazer o uso do diagnóstico e da prescrição? O que dizer do status do médico, sem o poder de diagnosticar e prescrever?
Joanna: Essa é uma outra excelente questão. É a questão que está na base de todos esses problemas, assim é como eu penso. Considero ser difícil, mas não é impossível.
A dificuldade é que se a profissão médica tem um papel predominante no tratamento e manejo da saúde mental e dos problemas psicológicos, haverá uma tendência para se entender esse problemática a partir da ótica médica.
Mas eu não penso que a profissão médica tenha esse papel tão necessário. Penso ser possível que pessoas qualificadas em termos médicos possam estar envolvidas no cuidado das pessoas com transtornos mentais, a fim de, por exemplo, ajudar as pessoas a usar drogas de um modo cauteloso, no modo como há pouco falamos. E ajudar a reconhecer todas as complicações potenciais advindas com o uso de drogas prescritas e outras substâncias.
Não estou segura de que para fazer isso as pessoas necessitem de ter uma formação médica propriamente dita. Talvez muito mais pessoas de muitas profissões diferentes poderiam ter algum treinamento médico, de modo a ajudá-las no cuidado das pessoas para o uso de drogas prescritas de um modo sensível. Bem como preparadas para saber identificar, por exclusão, doenças neurológicas demonstráveis, porque isso é um outro tipo de atividade médica que hoje é necessária, embora pessoas de outras profissões possam ser treinadas e capazes de fazer essa distinção.
Minha visão pessoal é que temos que repensar a formação das pessoas que ajudam os indivíduos com problemas de saúde mental. Temos que repensar a formação, temos que repensar onde os problemas de saúde mental estão hoje situados e localizados, visto que muitos dos problemas não são necessariamente médicos. Não há evidências com base biológica para a maioria dos casos de transtorno mental. Nesse sentido, eles não são problemas médicos.
Se não são problemas médicos, por que são eles assim tratados hoje na assistência em saúde? Por que não são tratados em serviços de assistência social, de prevenção?
O que talvez necessitemos é de novos serviços com equipes com uma variedade de habilidades para ajudar as pessoas com uma variedade de dificuldades. Ajudar as pessoas a negociar em seu ambiente social, como lidar com as dificuldades financeiras, de emprego, todas essas coisas que vemos que ocorrem com a maioria das pessoas no cotidiano dos serviços em saúde mental. Em muitos casos é o que está na raiz dos problemas delas.
Fernando: Por exemplo, qual é o papel do psiquiatra nesse processo de desprescrição? Porque há um know-how dos usuários, sobreviventes ou ex-usuários. E vocês, médicos, nesse processo de desprescrição, de antipsicóticos por exemplo?
Joanna: Uma outra boa questão. Se você aceita que as drogas não estão tratando doenças, mas que podem ter efeitos úteis e que podem produzir alterações benéficas em estados mentais, cabe então aos indivíduos avaliarem a sua utilidade para situações particulares.
E os psiquiatras ou os médicos em geral não deveriam dizer a alguém que a pessoa deve tomar uma droga por ter uma doença determinada. Ou que um médico diga que isso pode ajudar numa determinada situação, embora que o que sabemos de outras pessoas, das pesquisas, é que as mudanças positivas podem ser acompanhadas por efeitos colaterais e consequências negativas. E assim deve caber ao indivíduo decidir ser irá fazer uso da droga e avaliar se a droga lhe está sendo útil.
Creio também ser útil ao prescritor, mas também para as outras pessoas que estão ajudando o indivíduo, que todos reflitam sobre as mudanças que estão ocorrendo devido às drogas prescritas, de uma perspectiva objetiva. Porque sabemos que uma das características das drogas que alteram a mente é que elas mudam os estados mentais das pessoas. Assim sendo, as pessoas nem sempre estão em condições para avaliar como elas estão ao estarem sob a influência das substâncias.
É importante que as pessoas que deixam de tomar a substância olhem para trás e que avaliem se elas pensam que estavam melhor ou não quando sob influência da substância. Mas também penso ser o papel de um observador objetivo dar um retorno de como elas se sentiam quando estavam tomando a substância.
Fernando: A última pergunta, por favor. O futuro da psiquiatria está intimamente entrelaçado com o futuro da nossa sociedade. Para você, quais seriam alguns dos desafios que você vê em uma sociedade como a brasileira? Com uma história de colonização, escravidão, com profundas desigualdades sociais e econômicas. Eu sei que há muitos desafios, mas você poderia dizer algo? Você tem um livro escrito com colegas, sobre a medicalização da miséria. O que você falaria disso?
Joanna: Vocês teriam uma melhor resposta para essa pergunta. Eu penso que os problemas brasileiros são similares aos problemas ao redor do mundo. Os problemas que as pessoas trazem aos serviços de saúde mental são problemas causados pela insegurança financeira, as pessoas não conseguirem um emprego sustentável, a degradação do meio ambiente … A maioria dos empregos pedem baixa qualificação, são desprovidos de sentido de vida, não são gratificantes. Isso leva a dificuldades nas relações. Há a insegurança habitacional, as autoridades não atendem à necessidade de programas de moradia popular na medida em que as pessoas não têm renda suficiente.
Eu sei que todas essas coisas levam as pessoas ao sofrimento psíquico, levam a problemas relacionais, a como manter a família delas. Têm efeitos nas crianças. Criam insegurança e ansiedade.
Todos esses problemas sociais se acumulam. E no topo, as dificuldades entre grupos étnicos, desigualdade na segurança social e a desigualdade de oportunidades entre grupos étnicos.
Como no Brasil, há uma história de colonização (…) Com muitas consequências psicológicas para as pessoas.
Eu penso que se pudéssemos criar uma sociedade capaz de dar segurança financeira, acesso à habitação, emprego estável, oportunidades para fazer coisas com sentido, isso eliminaria a grande maioria dos problemas de saúde mental.
Fernando: Eu penso que temos que saber como enfrentar os traumas intergeracionais, históricos. Porque eles estão incorporados nas pessoas, em nossa cultura. Como enfrentar um trauma coletivo? Individualmente é difícil. O que dizer dos traumas coletivos?
Joanna: O trauma está incorporado nas estruturas políticas. E nós vivemos nelas. O que influencia na vida cotidiana das pessoas.
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