O que as Comunidades Terapêuticas no Brasil revelam sobre o processo de luta por direitos à saúde mental em uma perspectiva antimanicomial?

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Tortura, violência, subtração de direitos humanos fundamentais. Estas expressões são comumente relacionadas à realidade vivida por sujeitos inseridos nas pretensas propostas de cuidado ofertadas pelas instituições denominadas Comunidades Terapêuticas no Brasil.

Orientadas pelo discurso de oferecer acolhimento em regime residencial temporário destinado a pessoas em consumo prejudicial de substancia psicoativa, a partir de uma suposta desassistência originada pela insuficiência das políticas públicas de saúde enfraquecidas pelo subfinanciamento oriundo da política de austeridade fiscal no Brasil, detêm a maior parte dos investimentos públicos destinados aos cuidados desta população e atualmente compõem a Rede de Atenção Psicossocial.

Os Conselhos Federais de Psicologia e Assistência Social, juntamente com o Ministério Público Federal e o Mecanismo de Combate a Tortura fizeram no ano de 2018 uma série de inspeções nestas instituições que resultaram no Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas. A partir de então tornaram-se evidenciadas severas críticas de trabalhadores, atores sociais e da comunidade acadêmica e, embora sejam alvo de recorrentes denúncias, a baixa ou nenhuma efetividade destas ações pode ser observada. Desta forma, o que o silêncio diante destas denúncias pode vir a nos dizer?

As garantias de melhores condições de saúde e de proteção de direitos fundamentais aos sujeitos em sofrimento psicossocial relacionados ou não ao consumo de substâncias psicoativas faz parte de um campo de luta e reforma de um paradigma de cuidado que atravessa saberes e práticas no âmbito da saúde pública, saúde coletiva e da saúde mental. No território brasileiro, a consagração destes movimentos é correlato ao processo de redemocratização e da contemplação dos direitos em saúde como direitos fundamentais assegurado pela constituição e 1988. Sob influência dos demais processos de reforma ao redor do mundo que passam a combater ferramentas de segregação e isolamento social de pessoas indesejadas pela sociedade a partir da sustentação do princípio da dignidade humana, a história das politicas publicas de saúde mental no Brasil desenovela o agora.

Na contemporaneidade, este movimento é deflagrado como resposta às atrocidades cometidas ao longo da Segunda Guerra Mundial. A discussão acerca do movimento de internacionalização dos direitos humanos consagrada com a Declaração Universal do Direitos Humanos de 1948 começa a delinear importantes tratados de proteção dos direitos humanos com o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, propondo em um alcance global (Organização das Nações Unidas – ONU) e em um alcance regional (sistemas europeu, interamericano e africano) uma composição de um universo instrumental com a finalidade de proporcionar maior efetividade na proteção e promoção dos direitos humanos.

Neste mesmo contexto histórico, movimentos que propunham mudança aos modelos de cuidado em saúde destinados sobretudo àqueles em sofrimento psíquico, começaram a emergir em países europeus e logo deixaram de ser movimentos locais e passaram a compor intenções mudanças paradigmáticas. Dentre os processos de reforma dos cuidados em saúde, o movimento da Comunidade Terapêutica no território Inglês, liderado pelo médico militar Maxwell Jones, deixou de ser um modelo local de cuidado e passou a ser uma política de Estado, servindo de inspiração para muitos outros processos de reforma como, por exemplo, o norte americano e o brasileiro.

O Brasil começa a se inserir no cenário de proteção internacional dos direitos humanos apenas com o processo de democratização iniciado em 1985, consagrando os princípios da prevalência dos direitos humanos e da dignidade humana a partir da Constituição de 1988. A responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos reafirma a judicialidade de um conjunto de normas voltadas para a proteção do indivíduo e para a afirmação da dignidade humana. Assim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos passa a julgar casos de violação de direitos humanos e, tais julgamentos, começam a promover mudanças institucionais no âmbito dos sistemas de justiça nacionais, dando relevo ao monitoramento, a implementação efetiva das decisões e as recomendações direcionadas aos sistemas e mecanismos internacionais e regionais de direitos humanos.

A partir do ponto que se objetiva a obrigatoriedade do Estado na proteção dos direitos humanos, consagrando o indivíduo como principal preocupação desta responsabilidade, a inobservância por parte do Estado de suas obrigações de forma direta ou por sujeitos com o apoio do poder público prevê consequências jurídicas e responsabilização pela violação destes direitos e consequente reparação dos danos causados. Um exemplo da implementação destas recomendações expressas e de seus desdobramentos e repercussão das políticas públicas de um país através de sentenças condenatórias se dá no julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos em decorrência da morte de Damião Ximenes Lopes, mantido sob tortura em uma clínica psiquiátrica em Sobral, no Ceará.

A primeira condenação do Estado brasileiro a ofensas de obrigações internacionalmente assumidas foi referente a prática de sujeição presente na realidade das instituições que oferecem uma proposta de cuidado sob a orientação do paradigma psiquiátrico tradicional a indivíduos em sofrimento psicossocial acrescido ou não ao uso de substancias psicoativas. O caso possui reflexos até os dias atuais referenciando decisões do Conselho Nacional de Justiça na instituição da Política Antimanicomial do Poder Judiciário no âmbito do processo penal e da execução de medidas de segurança em consonância com a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência e com a Lei nº 10.216/0.

Embora o caso seja considerado encerrado, a partir da resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 487/2023, que em seu artigo 2º considera a Rede de Atenção Psicossocial uma ferramenta para assegurar a singularidade, autonomia e dignidade humana em proscrição à prática de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, a inclusão das instituições intituladas Comunidades Terapêuticas nesta rede de cuidados contraria os pressupostos de tal decisão.

As Comunidades Terapêuticas representam atualmente, no cenário brasileiro, a manutenção de lógicas manicomiais, em total desacordo com a utilização original do termo estabelecido por Jones nos idos de 1940. Configuram hoje um dispositivo que consolida, mesmo contrariando pactos internacionais de proteção da dignidade humana, um modelo de tratamento asilar, punitivo e fundamentado na correção moral, favorecendo políticas que elegem estas instituições como equipamento prioritário na atual política de drogas, tendo apoio da pasta do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

Embora existam avanços no âmbito dos Direitos Humanos, da Saúde Mental, Atenção Psicossocial, Álcool e Outras Drogas em consonância com políticas antimanicomiais, com propostas que favoreçam uma recomposição das condições sociais, políticas, econômicas, culturais e discursivas dos sujeitos vulnerabilizados e suscetíveis a tais violências, o silencio diante das denúncias às violências praticadas no interior das instituições intituladas Comunidades Terapêuticas desnuda, aos berros, a perpetuação do apoio por parte do Estado brasileiro às práticas combatidas através de pactos internacionais de proteção de direitos humanos fundamentais.