Psicoterapia química ou psicológica?

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Todos os tratamentos de transtornos mentais têm a tendência a alterar alguma coisa no cérebro. Por isso é que o psiquiatra infantil Sami Timimi sugeriu que nós chamemos psicoterapia a todos os tratamentos, incluindo o tratamento químico. Os tratamentos psicológicos visam mudar um cérebro, que não funciona normalmente, para que ele volte ao normal (veja a figura abaixo).

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A psicoterapia química é o que nós usualmente chamamos de drogas psiquiátricas. Elas igualmente produzem mudanças no cérebro, mas não trazem o cérebro para o normal. Ao contrário disso, as drogas psiquiátricas criam um terceiro estado artificial, que nem é normal e nem é o estado doentio que levou o sujeito a ser paciente. O que cria muitos problemas. Acima de tudo, leva a um final que é o inesperado, porque não se pode a partir desse estado artificialmente induzido voltar ao normal. Em suma: não há drogas psiquiátricas que sejam capazes de levar ao normal. Seus efeitos são muito inespecíficos.

A psicoterapia psicológica visa fortalecer as funções normais do cérebro, logo criando tantas reações normais quanto for o possível, para que a pessoa possa melhor lidar com os desafios que a vida lhe oferece. Muitos dos transtornos mentais envolvem o paciente respondendo a traumas e a mudanças emocionais; e, por isso mesmo, é que faz sentido ensinar o paciente a pensar e a reagir mais apropriadamente. Também faz muito sentido mudar o meio ambiente do paciente; porém isso é com frequência negligenciado.

As drogas psiquiátricas incapacitam um conjunto importante das funções do cérebro e podem levar a uma perda do interesse na vida em geral (apatia), a um afastamento das relações sociais, à falta de empatia e de cuidados para consigo próprio e para com os outros, e, o pior ainda, a um embotamento emocional. A empatia nos ajuda a reconhecer o sofrimento que infringimos aos outros, e assim a empatia nos ajuda a conter os nossos impulsos.[1] A redução da empatia é um dos mecanismos através do qual as drogas psiquiátricas podem causar o suicídio e a violência, e, na pior das hipóteses, o homicídio.

As drogas psiquiátricas podem levar à perda de importantes funções humanas que estão associadas com a motivação, criatividade e o amor. Esses efeitos tóxicos da droga nas funções cerebrais superiores são com frequência interpretadas como uma “melhora” (o paciente está aparentemente menos perturbado ou passa a menos incomodar a equipe de profissionais de saúde, a família e os amigos).[2]  Mas tais efeitos com o tratamento psicofarmacológico são de fato uma expressão de dano causado no cérebro.

O uso prolongado de drogas psicotrópicas pode causar permanentes danos no cérebro, o que pode tornar impossível para o paciente conseguir retornar ao normal, assim como pode ser a causa do retorno ao estado doentio original que o havia levado a buscar por psicoterapia, anulando as mudanças ambientais que poderiam ter um bom efeito.

O eletrochoque funciona da mesma maneira, quer dizer, danificando o cérebro, e os danos com frequência são para a vida inteira, especialmente na forma de perda da memória.[3]

Não há dúvida alguma que em todos os países onde isso foi estudado, o aumento do consumo de drogas psicotrópicas tem sido acompanhado pelo aumento do número de pessoas recebendo pensões por incapacidade.[4]

Um outro exemplo do que fazemos erradamente é o gigantesco consumo de antidepressivos. Os antidepressivos aumentam o risco de suicídio, não apenas em crianças e adolescentes, o que já é sabido há muitos anos, mas também nas pessoas idosas.[5] A psicoterapia reduz o risco de suicídio.[6] Essa é uma das várias razões para que os pacientes com depressão devam ser tratados com psicoterapia psicológica e não com psicoterapia química.[7]

Referências Bibliográficas:

[1] Breggin P. Como as drogas psiquiátricas realmente funcionam. 01 Fev 2017.

[2] Breggin P. Como as drogas psiquiátricas realmente funcionam. 01 Fev 2017.

[3] Gøtzsche PC. Deadly psychiatry and organised denial. Copenhagen: People’s Press; 2015.

[4] Gøtzsche PC. Antidepressants increase the risk of suicide and violence at all ages. 16 Nov 2016. https://www.madinamerica.com/2016/11/antidepressants-increase-risk-suicide-violence-ages/

[5] Gøtzsche PC. Antidepressants increase the risk of suicide and violence at all ages. 16 Nov 2016. https://www.madinamerica.com/2016/11/antidepressants-increase-risk-suicide-violence-ages/.

[6] Hawton K, Witt KG, Taylor Salisbury TL, et al. Psychosocial interventions for self-harm in adults. Cochrane Database Syst Rev 2016;5:CD012189.

[7] Gøtzsche PC. Antidepressants increase the risk of suicide and violence at all ages. 16 Nov 2016. https://www.madinamerica.com/2016/11/antidepressants-increase-risk-suicide-violence-ages/.

Como as drogas psiquiátricas realmente funcionam

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O sargento do exército norte-americano Robert Bales ficou furioso em 11 de março de 2012 e, no escuro da noite, matou 17 homens civis afegãos, mulheres e crianças, que dormiam em suas aldeias. Perguntado como ele pode haver feito uma coisa tão terrível, Bales respondeu: “Eu fiz essa pergunta a mim mesmo um milhão de vezes, e não há uma boa razão no mundo para as horríveis coisas que eu fiz.”

O advogado de defesa de Bales, John Henry Browne, confirmou que o sargento Bales recebeu o medicamento antimalárico mefloquina em uma missão anterior no Iraque; mas Brown não tinha nenhuma evidência com referência à chacina no Afeganistão.

E quanto ao efeito da exposição anterior de Bales à mefloquina?

Em dezembro de 2016, um longo estudo de caso de um ex-soldado tratado por quatro meses com mefloquina foi publicado em Drug Safety-Case Reports. O caso ilustrou que a mefloquina pode causar lesões cerebrais persistentes, com problemas emocionais e cognitivos permanentes. Como meus colegas psiquiatras costumam fazer, eles diagnosticaram o ex-soldado com distúrbios psiquiátricos, incluindo Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), e eles o trataram com várias drogas psiquiátricas, agravando sua lesão cerebral e a sua condição mental e emocional.

De acordo com o relatório de dezembro, “O paciente e a sua esposa notaram maior labilidade emocional, tipicamente se manifestando com raiva e irritabilidade. O relatório também endossou dificuldades de concentração, diminuição do interesse na maioria das atividades, problemas persistentes da memória de curto prazo e dificuldades para encontrar palavras.” A longo prazo, ele passou a necessitar de ajuda para o manejo da raiva.

A angústia emocional do soldado – o aumento da labilidade emocional, manifestando-se tipicamente pela raiva e irritabilidade; dificuldade de concentração; um interesse reduzido na maioria das atividades; e por persistentes problemas de memória de curto prazo e dificuldades para encontrar palavras – isso daí pode ser causado por quase que qualquer droga psiquiátrica, enquanto um efeito agudo ou duradouro. Ver o dano causado pela mefloquina e outras drogas não-psiquiátricas, isso pode ajudar as pessoas a entenderem que são as drogas, e não a chamada doença mental do indivíduo, o que muitas vezes arruína vidas e causa comportamentos prejudiciais.

O sintoma específico de “interesse reduzido” induzido por fármacos é o efeito que mais comumente leva os pacientes e os que os rodeiam a pensar que estão melhorados. As pessoas que recebem drogas psiquiátricas, como mostrei em Medication Madness e em outros livros e artigos, frequentemente perdem a preocupação para consigo próprias, com os outros e para com a vida em geral. Muitos pacientes, famílias, terapeutas e prescritores confundem esse desengajamento como sendo melhoria; mas o desengajamento reflete uma lesão tóxica no cérebro, resultando na perda de funções humanas as mais elevadas e fundamentais, como as que estão relacionadas à motivação e ao amor. Se infligida por lobotomia e eletrochoque ou por um número interminável de drogas psiquiátricas, a perda de interesse ou de engajamento é um resultado comum de qualquer lesão generalizada do cérebro. As empresas farmacêuticas e psiquiatras veem essas lesões nos centros mais refinados do cérebro da pessoa como sendo uma “melhoria”.

A indiferença e a apatia causadas por lesões cerebrais produzidas por intervenções psiquiátricas são uma espada de dois gumes. Normalmente, a redução de carinho e empatia torna as pessoas menos envolvidas e mais retraídas, e aparentemente menos perturbadas ou perturbadoras. Contudo, a empatia nos ajuda a reconhecer o sofrimento que infligimos aos outros por meio de ações impulsivas e, portanto, ajuda-nos a ter limites. Reduzir a empatia é uma maneira como as drogas psiquiátricas podem levar ao suicídio e à violência.

Eu recentemente publiquei um capítulo de livro para advogados que trabalham com veteranos de combate, onde eu comparo o impacto do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) – uma lesão cerebral por um trauma de combate – com as drogas psiquiátricas. Todos esses traumas podem produzir perda de interesse, assim como a ampla gama de sintomas que afligiram o soldado que tomou mefloquina. É convincente o suporte de evidências de que drogas não-psiquiátricas – como a mefloquina – podem causar transtornos psiquiátricos graves, suicídio e violência. E afirmar as drogas psicoativas causam alterações cerebrais a longo prazo que perturbam a função mental e emocional não deveria ser surpresa para ninguém. Antipsicóticos, estimulantes, antidepressivos, estabilizadores do humor, benzodiazepínicos e outros sedativos e pílulas para dormir – a respeito dessas droga há fortes evidências,  produzidas através de exames cerebrais, testes neuropsicológicos e de avaliações clínicas, de que todas as classes de fármacos psiquiátricos causam danos irreversíveis ao cérebro, especialmente quando as pessoas ficam expostas a essas drogas por meses e anos.

Do PTSD às drogas psiquiátricas, um efeito compartilhado por todas as formas de trauma psicológico e físico é causar desinteresse e desengajamento. Essa observação chave ajuda a explicar por que a psiquiatria, em nome do tratamento, em toda a sua história tem recorrido a todas as formas de trauma . É hora de se encarar a verdade de que os tratamentos psiquiátricos funcionam danificando nossos cérebros o suficiente para retirar de nós a nossa humanidade – fazendo-nos menos cuidadosos e envolvidos com nossas vidas.

Pesquisador reconhece seus erros para entender a esquizofrenia

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Em um novo artigo, publicado no Schizophrenia Bulletin, o psiquiatra Sir Robin Murray reflete sobre a história da pesquisa em “esquizofrenia” e os erros cometidos. Murray é professor do Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência em Londres. Esse renomado pesquisador afirma que por muito tempo ignorou os fatores sociais que contribuem para a “esquizofrenia”. Relata também haver negligenciado os efeitos negativos que a medicação antipsicótica tem sobre o cérebro.

Murray afirma:

“Surpreendentemente, tal é o poder do modelo kraepeliniano, alguns psiquiatras ainda se recusam a aceitar as evidências, e se apegam à visão niilista de que existe um processo esquizofrênico intrinsecamente progressivo, uma visão muito prejudicial para seus pacientes”.

Robin-murrary2Robin Murray, psiquiatra escocês e professor de pesquisa psiquiátrica no Instituto de Psiquiatria, Kings College em Londres

Murray, que começou seu trabalho como psiquiatra em 1972, descreve a mudança na psiquiatria dos EUA durante os meados da década de 1970: “quando a psiquiatria deixa de ser totalmente psicanalítica e passa a ser quase que totalmente biológica”. A partir dessa mudança, tem havido um maior enfoque no papel da dopamina e dos fatores genéticos na “esquizofrenia.” Durante a década de 1970, a “esquizofrenia” passou a ser entendida como uma doença neurodegenerativa. Essa teoria foi apoiada por um estudo que encontrou ventrículos aumentados no cérebro para indivíduos diagnosticados com “esquizofrenia.” Murray lamenta que ele e muitos outros tenham ignorado outro estudo publicado nessa mesma época, a mostrar o que pode resultar com o uso prolongado da medicação antipsicótica: alterações cerebrais persistentes, principalmente na sensibilidade dos receptores da dopamina, o que pode implicar em discinesia tardia.

Em 2008, ao ter contato com um estudo mais recente mostrando os efeitos da medicação antipsicótica sobre o volume ventricular, que Murray começou a prestar atenção aos efeitos a longo prazo do uso de antipsicóticos. Pra ele “ficou claro que os antipsicóticos em altas doses contribuem, não para as sutis alterações cerebrais presentes no início da esquizofrenia, mas para as subsequentes mudanças progressivas”. Murray também revisa a teoria do desenvolvimento neurológico da “esquizofrenia”, a ideia de que a doença é causada por problemas durante o nascimento e seu desenvolvimento precoce. Agora, Murray se refere a esta teoria como um “exagero” das evidências.

Murray também discute a supersensibilidade à dopamina, quer dizer, que o tratamento antipsicótico de longo prazo pode resultar em um aumento significativo nos receptores da dopamina, consequentemente aumentando a sensibilidade à dopamina e diminuindo a eficácia da medicação antipsicótica.

“Nós levantamos a possibilidade que a medicamentação antipsicótica pode fazer alguns pacientes esquizofrênicos mais vulneráveis à recaída futura do que seria o caso no curso natural da doença.” Murray acredita no uso da medicamentação antipsicótica para tratar a esquizofrenia, mas tornou-se mais cauteloso no seu uso a longo prazo, dizendo:

“Não há dúvida de que os antipsicóticos são necessários na psicose aguda ativa. Mas temos (nós) que continuar a prescrevê-los em alguns pacientes, porque tornamos o receptor D2 [dopamina] supersensível ao excesso de dopamina liberada? Eu, e na verdade a maioria dos pesquisadores, negligenciei esta questão vitalmente importante. “

Murray afirma que espera que o conceito de “esquizofrenia” – como uma desordem clara e objetiva – se torne obsoleto, assim como ocorreu com  a “hidropsia”. Ele escreve:

“Nas décadas seguintes à 1976, passei mais tempo e energia do que gostaria de recordar, tentando descobrir que mudanças a esquizofrenia causou no cérebro. Infelizmente, não percebi que os efeitos de fatores de risco, como eventos obstétricos adversos, na estrutura e função do cérebro, e que podem ser facilmente observados em amostras com os não-esquizofrênicos, são obscurecidos em pessoas com  a esquizofrenia estabelecida pelos efeitos com antipsicóticos e outros fatores não específicos. “

É significativo haver um psiquiatra proeminente admitindo erros da Psiquiatria e pedir mais investigação sobre fatores ambientais e epigenéticos. Talvez ele sinalize uma mudança no campo da psiquiatria se outros seguirem a liderança de Murray. Ele conclui,

“Se eu tivesse a chance de ter uma segunda carreira, eu me esforçaria mais para não seguir a moda do rebanho. Os erros que cometi, pelo menos aqueles em que tenho percepção, geralmente resultaram de haver aderido excessivamente à ortodoxia predominante “.

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Murray, R.M. (2016). Mistakes I have made in my research career. Schizophrenia Bulletin. Advance on line publication. ( o artigo na íntegra).

Allen Frances e o “excesso de diagnóstico” de crianças

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PhilipHickeyEm 31 de outubro de 2016, o eminente psiquiatra Allen Frances, MD, arquiteto do DSM-IV, publicou um artigo em seu blog Psychology Today, Saving Normal (Psicologia Hoje, Salvando Normal). O artigo é intitulado DSM-5 Diagnósticos em Crianças Devem Sempre Ser Escritos à Lápis. (A peça também apareceu no Huffington Post blog na mesma data.) O subtítulo é “A rotulagem inadequada de crianças e adolescentes é frequente e pode persegui-las ao longo de suas vidas.”

Como em muitos dos artigos recentes do Dr. Frances, a maior parte do texto é escrita por uma outra pessoa, e o Dr. Frances fornece uma introdução e um resumo / conclusão. Nesse caso, o núcleo do artigo foi escrito por Juan Vasen e Gisela Untoiglich do Fórum Infâncias http://foruminfancias.com.ar – uma organização argentina de profissionais de saúde mental dedicada ao “diagnóstico e tratamento adequados de crianças e adolescentes”.

O material escrito pelos Drs. Vasen e Untoiglich basicamente soa bem, como por exemplo, “As crianças e os adolescentes variam muito no modo como se desenvolvem e na cronologia dos seus marcos de desenvolvimento. A individualidade e a imaturidade não devem ser confundidas com doença “. Mas também no artigo vem a sugestão de que o TDAH é uma entidade de doença real e que possa ser identificada com uma avaliação cuidadosa e criteriosa.

“Diagnóstico preciso em crianças e adolescentes leva muito tempo em cada sessão e,        muitas vezes, muitas sessões ao longo de um número de meses.”

Dr. Frances abre o artigo lamentando o que ele descreve como as “três mais nocivas modas no diagnóstico psiquiátrico desses últimos 20 anos.” E que são:

“As taxas de Transtorno do Déficit de Atenção triplicaram, e as taxas de Autismo e Transtorno Bipolar da infância multiplicaram incrivelmente 40 vezes”.

Frances continua a escrever que “Poderosos fatores externos contribuíram grandemente para este massivo mal diagnóstico de crianças.” Retirado do contexto geral é claro que o que o Dr. Frances chama de “massivo mal diagnóstico ” não é inerente aos espúrios diagnósticos psiquiátricos, mas sim ao que ele chama de uso excessivo desses rótulos.

Ele então retoma ao seu alvo principal que é a indústria farmacêutia:

“Para o TDAH e o Transtorno Bipolar na infância ADHD, as empresas farmacêuticas de forma enganosa e agressiva venderam doenças para comercializar suas pílulas caras e rentáveis. Sua estratégia de marketing foi baseada no pressuposto cínico de que começar uma criança cedo com pílulas poderá torna-la um cliente para o restante da vida”.

Dr. Frances frequentemente culpa a indústria farmacêutica, ignorando o papel que desempenharam, a psiquiatria e ele próprio, na proliferação dos assim chamados diagnósticos psiquiátricos e no afrouxamento progressivo dos critérios para esses diagnósticos. Eu expliquei em um post anterior como os critérios para o TDAH foram marcadamente afrouxados no próprio DSM-IV do Dr. Frances.

A aplicação generalizada do “diagnóstico bipolar” às crianças foi a criação do psiquiatra de Harvard Joseph Biederman, MD, mas alguns dos fundamentos para isso já tinham sido estabelecidos no DSM-IV.

A edição anterior do manual (DSM-III-R) declarou que a idade de início dos episódios maníacos

“… é no início dos 20 anos de idade. No entanto, alguns estudos indicam que um número considerável de novos casos aparece após os 50 anos. “(p 216)

A declaração correspondente no DSM-IV diz:

“A idade média no início de um primeiro episódio maníaco é no começo dos 20 anos, mas alguns casos começam na adolescência e outros começam após 50 anos.” [Ênfase adicionada]

Assim, foi o próprio DSM-IV do Dr. Frances que primeiro legitimou a noção de que este chamado diagnóstico poderia ser aplicado às crianças.

Certamente que a indústria farmacêutica desempenhou seu papel, mas a psiquiatria foi uma mão na luva graças ao seu generoso benfeitor, como tem sido desde os anos 60 e 70.

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“A explosão do autismo resultou da combinação de duas coisas: a introdução no DSM-IV de uma forma muito mais branda (Asperger), e a ligação demasiado estreita entre o diagnóstico e a elegibilidade de serviços escolares a receberem suporte financeiro. Quer dizer, os diagnósticos de DSM desenvolvidos para fins clínicos são referências inadequadas para a alocação de recursos educacionais. As decisões educacionais devem basear-se na necessidade educacional da criança, avaliada pelos educadores, usando ferramentas educacionais”.

A referência ao transtorno de Asperger é provavelmente exata, e representa uma admissão honesta por parte do Dr. Frances, mas a declaração:

“Os diagnósticos de DSM desenvolvidos para fins clínicos não são meios adequados para a alocação de recursos educacionais. As decisões educacionais devem basear-se na necessidade educacional da criança, avaliada pelos educadores, usando ferramentas educacionais “.

é extremamente enganosa.

A questão aqui é que, em geral, as escolas públicas são obrigadas por lei federal (nos Estados Unidos) a acolher crianças com deficiência. Também é necessário que essas crianças sejam ensinadas, não em ambientes de educação especial, mas sim em salas de aula regulares, sempre que possível.

A deficiência é obviamente um conceito complexo e difícil de definir. Mas, para fins práticos, a Social Security Administration (SSA) tem dois critérios gerais. Em primeiro lugar, a criança deve ter uma doença confirmada; e em segundo lugar, ela deve ter confirmadas as limitações funcionais relacionadas à doença. Tanto o distúrbio autista quanto o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade foram aceitos pela SSA como doenças a terem cobertura. Evidência de limitações funcionais geralmente é obtida a partir de provedores de tratamento da criança, complementada quando necessário por relatórios de consultores externos. Assim – e este é o ponto crítico – “diagnósticos do DSM” não estão sendo usados como referência para a alocação de recursos educacionais. Em vez disso, eles estão sendo usados como a primeira fase na determinação de incapacidade (i.e., a presença de doença). E é a determinação da inaptidão que conduz às decisões educacionais, e, em alguns casos, canaliza fundos adicionais à escola.

Assim quando o Dr. Frances lamenta o uso de “diagnósticos do DSM” para determinar a presença de “doença” psiquiátrica, parece que está a virar a face para outro lado, justamente quando ele rotineiramente afirma a validade e a utilidade desses “diagnósticos” precisamente para esses propósitos. O ponto é este: uma vez que o APA (Associação Psiquiátrica Americana) inventou a doença de TDAH, a porta foi aberta para que essa doença viesse a se tornar incapacidade-elegibilidade (quer dizer, por ser incapaz ter direito a determinadas vantagens).

E, incidentalmente, o enredo engrossa. Em 1985, a SSA contratou a APA para que fosse feito um grande estudo sobre as normas e diretrizes para a avaliação da deficiência mental. O estudo durou dois anos. A APA fez algumas pequenas recomendações, mas “Todas as recomendações foram feitas com base na premissa de que devesse ser preservado o constructo básico da SSA para as normas médicas e as orientações para a avaliação de alegações baseadas em deficiência mental.” [a ênfase em itálico está no original]. Por conseguinte, seja qual for a crítica que o Dr. Frances tenha do sistema atual, ele precisa, sugiro, reconhecer a parte que a sua própria profissão desempenhou na criação desse estado de coisas.

Mas o enredo engrossa ainda mais. A maior parte dos detalhes envolvidos na educação de crianças com deficiência estão estabelecidos na Lei de Educação de Pessoas com Deficiência (IDEA), de 1990. Quando este projeto estava sendo elaborado, havia uma controvérsia considerável sobre se o TDAH deveria ser incluído como uma “doença coberta”. “A oposição veio de organizações de professores e da NAACP. O ato original (1990) não incluiu o TDAH. No entanto, em 1991, o Departamento de Educação emitiu uma nota esclarecedora afirmando que “TDAH” é uma deficiência coberta pela IDEA. Esta alteração foi o resultado de um intenso lobby feito pelo CHADD[*] e outros. E a psiquiatria organizada tem sido um defensor de longa data da CHADD. No momento atual, há um documento para download intitulado ADHD: Parents Medication Guide no site da APA. 

CHADD é mencionada cinco vezes e é recomendada como uma fonte de informação. O documento foi preparado pela Academia Americana de Psiquiatria da Criança e do Adolescente e pela APA.

“EXCESSO DE DIAGNÓSTICO”

Dr. Frances continua:

“É muito tempo passado para domar o selvagem excesso do DSM em diagnosticar crianças.”

Em seguida, após o material escrito pelos Drs. Vasen e Untoiglich:

“Muito obrigado, Juan e Giselle, por advertir de forma poética os clínicos para que sejam conservadores, cuidadosos ou criativos, ao diagnosticarem crianças. O diagnóstico maldado tem consequências graves e, muitas vezes, de longa duração, sobre como a criança se vê, como a família vê a criança e sobre o uso indevido da medicação. O diagnóstico nunca deve ser dado de forma leviana. “

E

“Um diagnóstico correto em crianças é realmente difícil e consome tempo. Um diagnóstico maldado em crianças é realmente fácil e pode ser feito em 10 minutos. Um diagnóstico correto em crianças leva a intervenções úteis que podem melhorar muito a vida futura. O diagnóstico incorreto em crianças geralmente leva à medicação prejudicial e leva ao estigma. “

 E

” O que está em jogo não é pouco e os danos às vezes permanentes. A melhor maneira de proteger nossos filhos é respeitar sua diferença e aceitar a incerteza. Eu realmente amo a ideia de escrever diagnósticos psiquiátricos a lápis.”

Essa noção de diagnóstico conservador, cuidadoso e preciso é um tema comum na escrita do Dr. Frances, mas na verdade, é uma exortação vazia, porque os critérios são inerentemente vagos e mal definidos.

Consideremos o primeiro critério na lista da APA:

1 (a) “com frequência não dá atenção aos detalhes ou comete erros negligentes nas tarefas escolares, no trabalho ou em outras atividades” (DSM-IV, p 83)

A redação do DSM-5 é quase que idêntica, mas acrescenta dois exemplos: (p. e., “negligencia ou perde detalhes”, “o trabalho é impreciso”).

Para ilustrar o problema, vamos imaginar uma conversa entre dois psiquiatras experientes, Dr. I. Druggem e Dr. Ak Curate.

Dr. Curate: Você está diagnosticando muitas crianças com TDAH.

Dr. Druggem: Não, não estou. Eu sempre me certifico de que satisfaçam o número necessário de itens do critério.

Dr. Curate: Mas você está interpretando os critérios demasiado frouxamente.

Dr. Druggem: Você está interpretando-os muito rigidamente.

Dr. Curate: Bem, considere aquele garoto de seis anos que você diagnosticou na semana passada. Em que critérios ele se encaixou?

Dr. Druggem: Os critérios de ausência de atenção a, b, c, d, e. Ele também se encaixou em quatro dos critérios de hiperatividade-impulsividade.

Dr. Curate: Então ele cumpriu o critério 1 (a) – “muitas vezes não dá atenção aos detalhes ou comete erros descuidados nas tarefas escolares, no trabalho ou em outras atividades”?

Dr. Druggem: Sim, é isso aí.

Dr. Curate: Como você sabe?

Dr. Druggem: Porque eu fiz com que a sua professora preenchesse a lista com os critérios, e então ela verificou esse item.

Dr. Curate: Então a professora disse que ele se encaixa neste critério. Ela disse quantas vezes é frequente?

Dr. Druggem: Não, claro que não.

Dr. Curate: Quantas vezes é frequente?

Dr. Druggem: Não sei; suponho que duas ou três vezes por dia.

Dr. Curate: Eu acho que seria perfeitamente normal para um garoto de seis anos fazer erros descuidados ou se distrair dez ou mesmo quinze vezes por dia.

Dr. Druggem: De jeito nenhum.

Dr. Curate: Sim.

E o ponto crítico aqui é que não há nada no DSM, ou mesmo em qualquer diretriz psiquiátrica, que possa resolver esse desacordo. Não há como dizer qual psiquiatra está correto. E o problema é agravado quando reconhecemos que dificuldades de definição similares surgem quando perguntamos o que constitui uma atenção cuidadosa versus não tão cuidadosa; ou erros por desatenção versus outros tipos de erros. E quando reconhecemos que as mesmas dificuldades surgem com todos os critérios, é claro que o termo “diagnóstico preciso, criterioso, do TDAH” é um absurdo lógico. Se alguém inventa doenças sem patologia identificável, para serem diagnosticadas com base em listas de verificação inerentemente vagas, o conceito de prevalência verdadeira não tem sentido.

Assim, o que a psiquiatria criou é um algoritmo solto que pode ser expandido e contraído à vontade, sem que nenhuma culpa ou censura seja atribuída ao psiquiatra “diagnosticador”. Mas é ainda pior do que isso, porque este arbitrariamente flexível “diagnóstico” está sendo conduzido em um contexto onde há grandes incentivos para se fazer o “diagnóstico”, e penalidades consideráveis para a diminuição do “diagnosticar”.

Primeiramente são as empresas farmacêuticas cujos lucros estão correlacionados com o número de crianças “diagnosticadas”. Em segundo lugar, os pais que não sabem como disciplinar ou treinar seus filhos de forma eficaz. Em terceiro lugar, o “diagnóstico” pode dar direito à criança (ou melhor aos seus pais) a uma renda por incapacidade. Em quarto lugar, a escola pode ser elegível para financiamento adicional. Em quinto lugar, os psiquiatras têm uma boa chance de adquirir um cliente a longo prazo.

Então todo mundo ganha – exceto, é claro, a criança, que perde, especialmente no longo prazo. Este é o monstro que a psiquiatria criou. E o Dr. Frances desempenhou um papel fundamental.

O problema não é o excesso de diagnóstico. O problema é a medicalização espúria de problemas que não são de natureza médica. E essa foi a contribuição da psiquiatria para a grande fraude psiquiátrica-farmacológica, na qual eles entraram com os olhos bem abertos. O negócio era simples. Nós (psiquiatras) inventamos e legitimamos as doenças, e escrevemos as prescrições; vocês (indústria farmacêutica) enviam-nos muito dinheiro, validações e negócios. E Dr. Frances é muito bem informado sobre este assunto. Em 1995, ele e seus parceiros John Docherty, MD e David Kahn, MD, escreveram:

“Estamos também empenhados em ajudar Janssen a ter sucesso em seus esforços para aumentar sua participação de mercado e a ter visibilidade nas comunidades de acionistas, fornecedores e consumidores”.

Esta foi uma referência ao The Expert Consensus Guideline Series: Treatment of Schizophrenia produzido pelos Drs. Frances, Docherty e Kahn (The Journal of Clinical Psychiatry, 1996, Vol. 57, Suplemento 12B), com uma generosa doação de Johnson & Johnson (proprietários de Janssen). A citação é de um relatório de testemunha enquanto perito feita por David Rothman, PhD, professor de Medicina Social na Columbia University College of Physicians and Surgeons, p 15-16. Toda a questão foi abordada em grande profundidade por Paula Caplan, PhD, aqui (Mad in America), e pelo que eu sei, o Dr. Frances nunca reconheceu publicamente qualquer irregularidade ou emitiu quaisquer desculpas com relação ao assunto.

FINALMENTE

Dr. Frances foi uma peça-chave na promoção da fraude psiquiátrica. Como arquiteto do DSM-IV, ele teve a oportunidade de reverter a tendência iniciada por Robert Spitzer, MD, com DSM-III, mas em vez disso, o Dr. Frances não só permaneceu na trajetória de proliferação / expansionista, mas na verdade acelerou o seu ritmo. Sua atual preocupação com o diagnóstico mal feito e excessivo de crianças não é convincente.

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 TDAH não é algo que uma criança tem. É algo que uma criança faz.

[*] CHADD (Children and Adults with Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder), é uma poderosíssima organização da sociedade civil que representa Crianças e Adultos com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.  Seu site é http://www.chadd.org. (Nota dos Editores de Mad in Brasil.)

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UMA ESCARAMUÇA BAIANA EM TORNO DOS ELETROCHOQUES

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mtorrenteNa terça-feira passada, dia 17 de janeiro, recebi a ligação de um amigo querido, José Sestelo, membro da diretoria da ABRASCO, me perguntando se tinha conhecimento do que estava acontecendo em relação a eletrochoques no Hospital Juliano Moreira (HJM). Ele tinha sido alertado pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade sobre a publicação, no mesmo dia, no Diário Oficial do Estado da Bahia, de uma portaria resolvendo criar, no seio do HJM, serviço de gestão estadual situado em Salvador, uma “Comissão de ECT e Psicocirurgia”, cuja missão seria a “a elaboração do protocolo e acompanhamento das indicações de ECT e Psicocirurgia em Usuários internados no HJM, levando em consideração os aspectos éticos, clínicos e legais, bem como o cotejamento com os princípios da Reforma Psiquiátrica estabelecida pelo Estado. Somente a Comissão poderá autorizar os procedimentos acima ou consultar/representar o Hospital Juliano Moreira junto aos órgãos e conselhos competentes quando necessário”.  Para ver a Portaria, Clique aqui.

Minha primeira reação foi de surpresa e preocupação. Não tinha ouvido falar da polêmica sobre ECT há algum tempo. Sabia que o HJM, por falta de condições físicas, mas também pela resistência e oposição de profissionais, não aplicava mais eletrochoques há vários anos. No entanto, sabia também que boa parte da classe médica defende firmemente que ECT e outras psicocirurgias não merecem a péssima reputação que vêm tendo (por causa de décadas de utilização indiscriminada, com tecnologias ultrapassadas, admitem), já que teriam eficácia “cientificamente” comprovada para determinados quadros “refratários” a outras terapias. E tinha ouvido que, no setor público, o Hospital das Clínicas da UFBA realizava eletrochoques na enfermaria psiquiátrica – além de inumeráveis clínicas particulares na Bahia e país afora.

Fui dar uma olhada no meu celular e, de fato, o assunto estava “bombando”, como se costuma dizer, em grupos de zap e outras redes sociais. A preocupação era geral e muitos militantes da saúde mental se declaravam indignados. Alguns poucos viam a formalização de uma comissão como medida e instrumento de precaução frente a possíveis usos descontrolados dessas técnicas altamente invasivas. Porém, chamava muito a atenção: 1) que a portaria fora assinada pela diretora do hospital; 2) que nem os técnicos da área técnica de saúde mental da Secretaria Estadual de Saúde (SESAB) tinham sido consultados; 3) que a resolução abria a porta a outras psicocirugias (sem, aliás, especificar quais!…). Do meu ponto de vista, precisávamos reagir de forma coletiva, com contundência, mas não sem, antes, reunir informações relevantes. Devíamos também tomar o cuidado de não cair no denuncismo, sob pena de ser caracterizados como extremistas irracionais, e, ao contrário, evidenciar que o debate acadêmico em relação ao ECT está longe de ser pacífico, que boa parte da literatura científica recente denuncia ainda os riscos neurológicos, mas também psicossociais e jurídicos, da reemergência globalizada das psicocirurgias, sejam elas novas ou não. Enfim, era preciso colocar o evento pontual dessa portaria desastrada dentro de um contexto geral muito preocupante, o da Contra-Reforma Psiquiátrica em curso.

Após um trabalho coletivo de poucos dias, no âmbito do Coletivo Baiano da Luta Antimanicomial – uma estrutura militante relativamente recente -, mas dinâmica e representativa, uma carta de repúdio extensa, externando detalhadamente as inquietações dos vários setores do movimento, foi finalizada na sexta-feira, 20 de janeiro de2017, e submetida a várias entidades parceiras das lutas sociais, em nível local, regional e nacional. Até hoje, 53 delas subscreveram a nossa manifestação.

Os pleitos incluídos no final do texto são:

  • Explicações cabíveis diante do ocorrido, além da imediata revogação da Portaria;
  • Apresentação do Plano de Saúde Mental que rege o atual governo e Relatório que indique o seu nível de implantação;
  • O desencadeamento de uma série de discussões amplamente participativas, capitaneadas pelo Conselho Estadual de Saúde, para discutirmos esse e outros temas de interesse da sociedade no que diz respeito à Reforma Psiquiátrica Baiana e Brasileira;
  • O posicionamento da Secretaria Municipal acerca do ocorrido;
  • Uma audiência com o secretário estadual de saúde para obter esclarecimentos acerca do fato, além de termos ciência do planejamento referente às ações para implantação da RAPS bem como o montante do investimento destinado a isso e prestação de contas do que já vem sendo investido.

Acontece que, nesse mesmo dia 20 de janeiro, por razões que ainda me são desconhecidas, o Diário Oficial publicou nova portaria, novamente assinada pela diretora do HJM, para “tornar SEM EFEITO e REVOGAR” a infeliz portaria anterior!

Significa que, pelo menos nessa reivindicação, o movimento de repúdio e desconfiança, em relação aos rumos da política estadual de saúde mental, surtiu efeito. Mas não nos enganemos: isso foi apenas uma vitória isolada, uma escaramuça no nosso combate contra a crescente medicalização da existência e em favor de uma reforma psiquiátrica democrática, antimanicomial e defensora intransigente dos direitos humanos!….

 

De Perto Ninguém é Normal

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PAULO AMARANTEDe acordo com meus documentos e registros, e minha própria memória, a utilização de camisetas como estratégia de diálogo do movimento da reforma psiquiátrica e luta antimanicomial com a sociedade, como forma de provocar a reflexão e colocar em questão o modelo manicomial, a psiquiatria e suas práticas de violência e patologização, começou em 1992. Estávamos na sede do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, na Avenida Churchill 97, em reunião para organização do II Encontro Nacional de Usuários e Familiares, quando a delegação gaúcha, tendo à frente Delvo Oliveira, entrou na sala com enormes sacos plásticos repletos de camisetas com dizeres e imagens sobre a reforma psiquiátrica e a questão antimanicomial. As camisetas foram elaboradas pelo Fórum Regional do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental Por uma sociedade sem Manicômios de Bagé.

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Eram muitas camisetas com mensagens diversas!

Dentre elas destacavam-se a “De militonto a militante”.

Assim como a “De perto ninguém é normal”, que se tornou um dos símbolos mais emblemáticos do movimento.

 

O Fórum gaúcho foi muito importante e ativo, e dentre muitas inovações, foi o primeiro a conseguir a aprovação de uma lei estadual de reforma psiquiátrica (a Lei 9.716, de 07 de agosto de 1992, de autoria do Deputado Marcos Rolim), cerca de 10 anos portanto antes da lei nacional (a Lei 10.216 de 96 de abril de 2001).

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A frase “de perto ninguém é normal” foi extraída da música Vaca Profana de Caetano Veloso. A letra faz várias referências à Espanha, inclusive à Picasso, que seria o verdadeiro autor da frase. Em algum lugar do passado eu ouvi ou li isto, que a frase seria de Picasso, mas minha memória, passando da casa dos 60, já não é tão boa! Aproveito para pedir que se alguém tiver esta informação que me ajude a esclarecê-la! O certo é que a frase foi adotada como forma de colocar em questão o conceito de normalidade, pressuposto tão fugaz, impreciso, normativo, impositivo, mas tão fundamental para o saber psiquiátrico, que distingue e classifica as pessoas!

No ano posterior (1993) organizamos uma ala no Bloco Simpatia é Quase Amor, um dos mais famosos e badalados do Rio de Janeiro. A ala, denominada de Maluco Beleza (em referência à música de Raul Seixas) era composta por militantes da luta antimanicomial. O Jornal do Brasil e O Globo deram destaque à nossa ala (a matéria em anexo tem algumas limitações na compreensão mas tem o mérito de registrar o fato). Além da camiseta preparada para a ala, de uma silhueta de rosto cinza com uma rosa vermelha e a frase “Eu vou ficar com certeza maluco beleza”, utilizamos também algumas outras, dentre as quais a “De perto ninguém é normal”.

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Um casal de amigos triestinos, que também participou do carnaval que organizei em Trieste no ano anterior (mas esta é uma outra estória…) estava conosco neste carnaval carioca. Eram o Giancarlo Carena e a Claudia Ehrenfreund, e eu os presenteei com uma das camisetas “De perto ninguém é normal”. Meses depois recebi de presente deles, em retribuição, a camiseta em italiano: Da vicino nessuno è normale.

Como a humanidade caminha e o mundo dá voltas, etc etc, ano passado em São Paulo, Maria Grazia Giannichedda, presidente da Fundação Franca e Franco Basaglia, com sede em Roma, nos sensibilizou ao contar que em uma de suas viagens pelo sul da Itália, foi presenteada com uma camiseta com tais dizeres e, em baixo, o nome de Franco Basaglia. Ela disse: – Bem! Franco deve ter dito esta frase em algum momento!”. Na Espanha e Argentina também foram feitas as “de cerca nadie és normal”.

Bem, mas a ganância dos empresários do ramo dos medicamentos e seus intelectuais orgânicos não deixou por menos: passou-se a inverter o sentido da frase para procurar dizer que “se de perto ninguém é normal”, isto significaria dizer que “de perto todo mundo teria algum problema, algum transtorno, alguma doença”!

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A Folha de São Paulo de 6 de junho de 2004, noticiando o 2º Encontro Paulista de Psiquiatria da Unifesp, expõe a interpretação de um dos organizadores que considera que “ao dizer a frase de perto ninguém é normal” Caetano Veloso acabou tocando numa coisa interessante, porque a frequência de problemas psiquiátricos e emocionais na população é muito grande (…) Nós fizemos um levantamento na cidade de São Paulo e constatamos que um terço da população ia precisar de algum tipo de atendimento.”! Vejam só! Um terço da cidade de São Paulo é de pessoas que precisam de cuidados psiquiátricos!

Preferimos ficar com a posição de Ernesto Venturini. Ao fazer o prefácio da primeira edição de meu livro “Loucos pela Vida” ele observa que “De perto ninguém é normal; é verdade! Mas, pode-se dizer também que, de perto ninguém é anormal”! No momento atual de radical processo de patologização da vida cotidiana pelo DSM 5, pela indústria farmacêutica, pela psiquiatria da Big Farma é preciso que estejamos atentos resistindo no dia a dia em não considerar que tudo na vida é doença! É preciso que façamos uma reinvenção do significado da experiência humana ao não reduzi-la à patologias…

Vejam “Vaca Profana” com Caetano Veloso assistido por Chico Buarque de Holanda.

Respeito muito minhas lágrimas

Mas ainda mais minha risada

Inscrevo, assim, minhas palavras

Na voz de uma mulher sagrada

Vaca profana, põe teus cornos

Pra fora e acima da manada

Vaca profana, põe teus cornos

Pra fora e acima da manada

Ê, ê, ê, ê, ê

Dona das divinas tetas

Derrama o leite bom na minha cara

E o leite mau na cara dos caretas

Segue a movida Madrileña

Também te mata Barcelona

Napoli, Pino, Pi, Paus, Punks

Picassos movem-se por Londres

Bahia, onipresentemente

Rio e belíssimo horizonte

Bahia, onipresentemente

Rio e belíssimo horizonte

Ê, ê, ê, ê, ê,

Vaca de divinas tetas

La leche buena toda en mi garganta

La mala leche para los puretas

Quero que pinte um amor Bethânia

Stevie Wonder, Andaluz

Como o que tive em Tel Aviv

Perto do mar, longe da cruz

Mas em composição cubista

Meu mundo Thelonius Monk’s blues

Mas em composição cubista

Meu mundo Thelonius Monk’s

Ê, ê, ê, ê, ê,

Vaca das divinas tetas

Teu bom só para o oco, minha falta

E o resto inunde as almas dos caretas

Sou tímido e espalhafatoso

Torre traçada por Gaudi

São Paulo é como o mundo todo

No mundo, um grande amor perdi

Caretas de Paris e New York

Sem mágoas, estamos aí

Caretas de Paris e New York

Sem mágoas, estamos aí

Ê, ê, ê, ê, ê,

Dona das divinas tetas

Quero teu leite todo em minha alma

Nada de leite mau para os caretas

Mas eu também sei ser careta

De perto, ninguém é normal

Às vezes, segue em linha reta

A vida, que é ‘meu bem, meu mal’

No mais, as ramblas do planeta

Orchta de chufa, si us plau

No mais, as ramblas do planeta

Orchta de chufa, si us

Ê, ê, ê, ê, ê,

Deusa de assombrosas tetas

Gotas de leite bom na minha cara

Chuva do mesmo bom sobre os caretas

O DSM e o Modelo Médico: novo vídeo

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Autor: Steve Spiegel.

Uma vez que as ideias, as atitudes ou as atividades com referência à atenção em “saúde mental” afetam diretamente a toda a sociedade, o público merece uma visão geral das questões levantadas pelos críticos dessas práticas. Por essa razão, eu criei uma curta conferência em vídeo, intitulada O DSM e o Modelo Médico (anexada abaixo).

Esse resumo da crítica ao modelo médico de sofrimento mental destina-se a preencher um vazio na informação pública, e oferece uma contundente crítica à psiquiatria e à sua narrativa. O vídeo também pretende dar voz aos destituídos de direitos diante das injustiças que sofrem em sua interação com o sistema de saúde mental. Descreve a natureza contraproducente do modelo médico, a sua pseudociência, e o elitismo que os sustentam.

Estou buscando feedback da comunidade do Mad in America sobre o meu vídeo, porque pretendo reeditá-lo, para dar o maior impacto possível. Estou particularmente interessado em feedback sobre o paradigma do bem-estar social que é introduzido como sendo uma melhor narrativa alternativa de abordagem do sofrimento mental. Também estou interessado em ideias sobre como promover o vídeo, que após a edição será apresentado gratuitamente ao público .

Aqui está uma breve sinopse das questões discutidas no vídeo:

A primeira seção apresenta o modelo médico do sofrimento psíquico (o modelo da doença) e o DSM que o descreve. A Associação Psiquiátrica Americana (APA) publica o DSM; sua narrativa domina os cuidados de saúde mental nos EUA. A narrativa do modelo médico é um “paradigma clássico”, conforme foi introduzido por Thomas Kuhn em seu livro marcante, A Estrutura das Revoluções Científicas. Um paradigma clássico é uma cosmovisão completa – portanto é difícil desafiá-lo, porque os seus termos têm conotações e contextos inter-relacionados a darem suporte à narrativa existente.

Consistentemente, a maioria das pessoas no meu país (os EUA) assumem que a saúde mental é uma questão médica; poucos são os que podem imaginar saúde mental como sendo uma narrativa de bem-estar emocional-social. É lamentável para os desprotegidos que poucas pessoas entendam a definição da Organização Mundial de Saúde: a saúde como sendo um problema social, quer dizer, sendo uma questão de bem-estar social. Também é lamentável para os desprotegidos que poucas pessoas possam imaginar sofrimento emocional como sendo algo maior do que o seu próprio sofrimento, ou alguma experiência angustiante que seja mais angustiante do que a sua própria.

A Seção Dois segue a introdução do modelo médico, apresentando uma narrativa alternativa – ela introduz um modelo de bem-estar social de sofrimento emocional natural (ou como reações “antissociais” ao sofrimento). A narrativa de bem-estar social acrescenta alguma digamos que humanidade à nossa compreensão da saúde mental – enquanto uma discussão de emoções como sendo efeitos diretos da experiência humana. Faz afirmações sobre emoções que devem ser óbvias: um sofrimento emocional (sofrimento mental) é uma reação natural a experiências angustiantes, ao invés de ser uma doença. A narrativa de bem-estar social também defende que a saúde física afeta diretamente a saúde mental: doenças físicas, alergias, déficits nutricionais, fadiga e toxinas ambientais, podem levar ao sofrimento mental.

A Seção Três é uma visão geral da crítica do modelo médico do sofrimento psíquico. Começa com uma breve história do DSM, tentativas da psiquiatria para explicar o seu modelo médico. Faz uma crônica da história das revisões de DSM, expondo sua fundação política que é bem mais do que científica – a Associação Psiquiátrica Americana simplesmente categoriza comportamentos considerados como sendo “antissociais”, e os etiqueta como sendo problemas médicos – pelo voto de comitê. O vídeo critica o DSM por: 1) sua falta de validade, 2) sua falta de confiabilidade, 3) seu desprezo às histórias pessoais, 4) seu desprezo à intensidade do sofrimento, 5) os limites de categorias ambíguas, 6) o uso de sintomas comuns como categorias, 7 ) estigmatizar clientes, 8) promover profecias autorrealizáveis, e 9) ignorar seus preconceitos culturais.

As críticas também devem incluir a psiquiatria ao etiquetar os comportamentos “antissociais”, por meio do emprego de termos médicos (em grego ou em latim), para reificá-los – isto é, para fazer com que passemos a vê-los como um problema médico (biológico), portanto, objeto da apreciação médica. Por exemplo, os psiquiatras nos sugerem a visão médica para a incontinência urinária, descrevendo que o que a causa é enuresis – uma palavra grega para urinar! O vídeo também firmemente expressa sua desaprovação pelo fato que a psiquiatria continue a defender a teoria do desequilíbrio químico (a causalidade lógica dos “transtornos mentais”), mesmo depois que a maioria dos psiquiatras eminentes já a tenham rejeitado.

Além de fazer um resumo das críticas populares ao DSM, esta seção também aborda o absurdo científico do novo DSM-5, ao mudar a sua definição do que é um “transtorno mental”, sem comentário ou explicação. Nada chama mais a atenção do quanto a psiquiatria é uma pseudociência do que o DSM-5, ao mudar a sua definição ofuscada do que é um “transtorno mental”, sem que os psiquiatras defendam ou mesmo percebam a mudança!

A Seção Quatro discute os interesses adquiridos – obstáculos à mudança de uma narrativa. A realidade dos fortes interesses dos psiquiatras e executivos das empresas farmacêuticas é exposta à luz do dia. Além disso, esta seção descreve vários outros grupos que também estão fortemente investidos no modelo médico. Existem muitas razões pelas quais as pessoas se tornam defensoras do modelo médico. Os psiquiatras investem suas vidas em uma formação em escolas de medicina e contraem dívidas em sua formação profissional, acreditando que podem aliviar o sofrimento humano, ao mudar a história embaraçosa da Psiquiatria – que é um acúmulo de “tratamentos” nocivos. Os vastos recursos da Big Pharma criam uma ampla faixa de interesses: pais e irmãos, que se encontram na defensiva com relação a comportamentos perturbadores, eles passam a ver no modelo biomédico a solução para os problemas; por sua vez, os que padecem de sofrimento mental encontram um refúgio no modelo, para dar conta do sofrimento; e os líderes culturais, que procuram manter a injustiça injustificável, são investidos por esse modelo.

Depois de descrever os obstáculos para mudar a equivocada narrativa de doença para uma narrativa de bem-estar social, a Seção Cinco discute os danos de se tratar um problema de bem-estar social como um problema médico. Essa seção descreve a crise atual em saúde mental. O modelo médico não é apenas equivocado, errôneo; a saúde mental é realmente prejudicada ao tratar o sofrimento emocional natural (ou reações ao sofrimento de formas “antissociais) como sinônimo de uma doença – quer dizer, como um problema médico.

O livro clássico de Robert Whitaker, Anatomy of an Epidemic, documenta como é que tratar o sofrimento emocional – enquanto uma doença – apenas piora os resultados. Em primeiro lugar, o modelo médico prejudica a saúde mental, ao manipular, por meios psicológicos, os que padecem de sofrimentos emocionais – defendendo que as emoções naturais relacionadas a experiências reais e angustiantes são em vez disso “distúrbios mentais” imaginários. Em segundo lugar, o modelo médico prejudica a saúde mental, estigmatizando os sofredores emocionais com um rótulo médico, que falsamente implicam em uma disfunção neurológica. Em terceiro lugar, o modelo médico prejudica a saúde mental, ao promover o abuso de drogas; é nocivo quando falsamente se descreve as drogas psiquiátricas como sendo “medicamentos” que tratam um problema médico (biológico).

Por fim, o modelo médico prejudica a saúde mental ao promover “terapias coercitivas”. O termo “terapia coercitiva” é um oxímoro. Negar os direitos humanos básicos às pessoas que sofrem emocionalmente de experiências extraordinariamente angustiantes é absurdamente cruel –  piora os resultados, incluindo entre eles o suicídio.

O vídeo deve ser editado para incluir como o modelo médico de sofrimento mental prejudica a população em geral, bem como os desprovidos de direitos. Há um custo substancial, tanto econômico como social, ao se aumentar o número de pacientes psiquiátricos em uma comunidade. A epidemia de “transtornos mentais”, causada pela “terapia medicamentosa” para o sofrimento emocional natural, está promovendo na prática uma epidemia de pessoas que precisam de assistência pública (ver Anatomia de uma Epidemia); e isso é um desperdício assombroso de recursos públicos. O vídeo também deve incluir críticas ao modelo médico ao serem promovidas violações flagrantes da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (o novo tratado internacional de direitos humanos da ONU).

A conclusão é um apelo para que se desafie a narrativa do modelo médico – para que se dê conforto aos aflitos, ao invés de piorar a sua situação já difícil pela via do ostracismo e da violação de seus direitos. Essa parte final do vídeo tenta expressar a tragédia do tremendo dano causado ao se considerar erroneamente o sofrimento emocional natural como sendo uma doença. Felizmente, a psiquiatria e sua narrativa de modelo médico estão agora vacilando, devido ao peso crescente de sua pseudociência, ao elitismo, e aos danos causados à saúde mental da comunidade.

Talvez o vídeo deva concluir com uma nota mais otimista? Substituir o falso, esse modelo de doença  – enquanto uma narrativa de sofrimento mental -, por uma narrativa de bem-estar social, isso certamente poderá promover uma melhoria revolucionária na condição social humana!

Congratulo-me e valorizo os comentários da comunidade do Mad in America antes de reeditar O DSM e o Modelo Médico. (A ser observado: o lucro anual das vendas de drogas psicotrópicas foi equivocadamente apresentado e será reeditado, para refletir o valor correto de 18 bilhões de dólares.)

………..

Veja o vídeo na íntegra, clicando aqui.

Steve Spiegel

Steve Spiegel é um cientista natural independente e neurocientista teórico. Suas experiências com sofrimento mental iniciaram uma investigação sobre o sofrimento humano natural e a pseudociência do modelo médico de sofrimento mental. Steve está atualmente produzindo documentários e lançando um programa gratuito de terapia que unifica alternativas à terapia de drogas em um programa único e abrangente.

 

Fox News entrevista o Dr. Peter Breggin: Drogas Psiquiátricas e Violência

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Tom Sullivan, da Fox News, entrevistou o Dr. Peter Breggin, para saber se drogas ao invés das armas estão no cerne de assassinatos em massa, e o que fazer sobre isso. Essa entrevista foi feita em fevereiro de 2013.

O Dr. Peter Breggin, psiquiatra, é autor de vários livros e dezenas de artigos, entre os quais Medication Madness e Toxic Psychiatry.

 

Toxic Psychiatry

 

Medication Madness

 

 

 

 

 

Para ver a entrevista completa clique aqui.

Eis alguns trechos dessa entrevista.

“Não há dúvida de que as drogas psiquiátricas podem causar violência. Incluindo os antidepressivos, assim como os benzodiazepínicos (tranquilizantes), e as drogas estimulantes que são dadas às crianças e adolescentes. Todas essas drogas têm uma significativa associação com a violência.”

“A psiquiatria transformou as pessoas em máquinas. Ela diz que a pessoa sofre de um desequilíbrio químico, que se tem uma droga que irá curar esse desequilíbrio. E isso faz com que as pessoas fiquem pior, fiquem fora do autocontrole. ”

“A psiquiatria hoje é fabricada pela indústria farmacêutica. As empresas farmacêuticas compram tudo e todos.

“Se ganha muito dinheiro para em dez minutos se prescrever alguma droga psiquiátrica. ”

“Estou convencido de que essas matanças com armas de fogo (tão comum nos Estados Unidos) são produzidas em grande parte por drogas psiquiátricas. Eu fui consultor em diversos casos envolvendo violência devida ao consumo de drogas psiquiátricas (…) Eu já relatei pelo menos 50 casos.”

Se você quiser aprofundar o seu conhecimento a respeito, veja a apresentação feita pelo Dr. Peter Breggin como testemunha em uma audiência no Congresso dos Estados Unidos, em 2010. Clique aqui.

A evidência biológica para a ‘doença mental’

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Em 2 de janeiro de 2017, eu publiquei uma curta postagem intitulada A Morte de Carrie Fisher com a Idade de 60 Anos, na revista eletrônica Behaviorism and Mental Health. O artigo foi publicado simultaneamente no Mad in America.

Em 4 de janeiro, na cadeia de comentários de ambos os sites entrou uma resposta de Carolina Partners.

O que é Carolina Partners?  Trata-se de um grupo poderoso de assistência psiquiátrica que presta serviços no Estado de Carolina do Norte, no sudeste dos Estados Unidos.  De acordo com o seu website (https://www.carolinapartners.com ), a entidade é composta por 14 psiquiatras, 7 psicólogos, 34 profissionais com formação em enfermagem / médicos assistentes, e 43 terapeutas e consultores. A entidade atua em 27 locais do Estado da Carolina do Norte.

Os comentários de Partners consistem essencialmente de afirmações não fundamentadas, com conclusões arbitrárias, e que fazem apelo à autoridade psiquiátrica.

De fato, os comentários dessa entidade são bastante típicos da ‘refutação’ que os adeptos da psiquiatria baseada no modelo de doença rotineiramente dirigem aos que refutam as suas bases. Por essa razão, e por serem comentários que presumivelmente representam os pontos de vista de uma prática psiquiátrica que está amplamente espalhada entre nós, é que seus comentários merecem um olhar atento.

Eu discutirei cada parágrafo destacadamente.

“Nós discordamos fortemente desse artigo, que negligencia um monte de informações importantes, e que faz uso de uma audiência seletiva, para distorcer o que Carrie Fischer representou, distorcendo as evidências de que o transtorno mental é de fato uma doença”.

Meu artigo sobre Carrie Fisher foi curto (556 palavras), e teve a intenção de ser um contraponto aos inúmeros obituários espalhados, que estavam a transmitir ao público haver sido ela um forte exemplo de ‘transtorno bipolar’.

A questão essencial do meu artigo foi que a Sra. Fisher foi uma vítima da psiquiatria, e que, a exemplo de inúmeras vítimas, morreu prematuramente.

Obviamente que eu negligenciei um monte de informações importantes. Eu poderia ter me estendido sobre a imprudência da psiquiatria em atribuir o rótulo bipolar – com todas as suas implicações de desamparo, falta de poder (disempowerment), e ‘desequilíbrio químico’ – a uma jovem mulher que, por sua própria conta, na época, usava qualquer droga que chegassem às suas mãos. Mas eu achei que uma declaração breve e respeitosa sobre os fatos fosse apenas o necessário.

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“As doenças mentais têm uma longa história de evidências biológicas. Por exemplo, os pesquisadores demonstraram que as pessoas com depressão têm uma área do cérebro hiperativa, chamada Brodmann 25.  A esquizofrenia tem sido associada a genes específicos, assim como o transtorno de estresse pós-traumático e o autismo têm sido transtornos associados a específicas anormalidades no cérebro. O suicídio tem sido associado a um decréscimo de concentração de serotonina no cérebro. O transtorno compulsivo-obsessivo tem sido associado a um aumento da atividade na região dos gânglios basais do cérebro. “

Área Brodmann (BA25)

Partners não apresenta uma referência específica para sustentar essa afirmação, mas o meu melhor palpite é que a referência seja Mayberg, HS et al. (1999).  Pois aqui está a principal conclusão desse estudo: “As mudanças recíprocas envolvendo o cíngulo subgenual [que inclui a área de Brodmann 25] e o córtex pré-frontal direito ocorrem com mudanças transitórias e crônicas no estado de ânimo negativo”.

O que isto significa essencialmente é que o humor negativo, seja ele transitório ou duradouro, está correlacionado com mudanças tanto no cíngulo subgenual (área de Brodmann 25) quanto no córtex pré-frontal direito, e que, quando a depressão é aliviada, as mudanças são invertidas.

Essa, evidentemente, é uma descoberta interessante, mas não fornece nenhuma evidência de que a depressão, leve ou grave, transitória ou duradoura, seja causada por uma patologia biológica.

A realidade é que toda a atividade humana é desencadeada pela atividade cerebral. Cada pensamento, cada sentimento, cada ação tem suas origens no cérebro. Não consigo levantar um dedo, piscar um olho, coçar a cabeça, ou lembrar da minha casa de infância, sem que uma função cerebral característica inicie e mantenha a ação em questão. Sem estímulos vindos do cérebro, meu coração irá parar de bater, meu aparelho respiratório irá ser bloqueado, e eu vou morrer, a menos que essas funções sejam mantidas por máquinas.

Portanto, não há absolutamente nenhuma surpresa na descoberta de que a tristeza e o desânimo tenham gatilhos neurais e semelhantes mantenedores. Seria incrível se assim não fosse. Mas – e esse é o ponto crítico – isso não garante a conclusão de que a tristeza, que cruza limites arbitrários e vagamente definidos de severidade, duração e frequência, seja melhor conceituada enquanto uma doença causada por atividade patológica ou excessiva em BA 25.

A depressão é um estado normal. É a reação humana normal a perdas significativas e / ou viver em condições / circunstâncias pouco favoráveis ao bem-estar. É também um mecanismo adaptativo, cuja finalidade é encorajar-nos a tomar medidas para restaurar a perda e / ou melhorar as condições.

Todos os impulsos humanos conscientemente sentidos resultam de sentimentos desagradáveis. A sede leva-nos a buscar água; a fome, a buscar comida; a hipotermia, a buscar calor; a hipertermia, a buscar frieza; o perigo, a buscar segurança; etc. Tristeza e desânimo não são exceções. São condições que nos levam a buscar mudanças, e que têm servido muito bem às espécies desde os tempos pré-históricos.

Mas – como é o caso de todos os exemplos acima – quando um impulso não é agido, por qualquer motivo, os sentimentos desagradáveis pioram. Assim como a fome e a sede não correspondidas aumentam em força, assim é com depressão, quando esta não é elaborada, ela se aprofunda.

A realidade é que a maioria das pessoas lida com a depressão de forma apropriada, naturalista, e com as formas consagradas ao longo do tempo. Se a fonte da depressão é a perda de um emprego, as pessoas começam a buscar emprego. Se a fonte é um relacionamento abusivo, elas procuram maneiras de sair ou de remediar a situação. Se a fonte é uma escassez de dinheiro, elas procuram maneiras mais sensatas de lidar com o orçamento, ou de aumentar seus ganhos; e assim por diante.

Depressão, seja ela leve ou grave, transitória ou duradoura, não é uma condição patológica. É a resposta natural, apropriada e adaptativa, quando um organismo capaz de sentir confronta um evento ou uma circunstância adversa. E a única maneira sensata e eficaz para melhorar a depressão é lidar apropriadamente e construtivamente com a situação deprimente. Adulterar equivocadamente o aparelho sensitivo da pessoa é algo análogo a danificar deliberadamente a audição de uma pessoa, porque ela está chateada com a poluição sonora em seu bairro, ou a danificar a sua visão, por causa de queixas sobre lixo na rua.

Nosso aparelho emocional é tão valioso e adaptável quanto nossos outros sentidos. Mas a psiquiatria rotineiramente entorpece, e em muitos casos permanentemente danifica esse aparelho, para vender drogas e promover a ficção de que os psiquiatras são verdadeiros médicos. Sua justificativa para essa atividade – descaradamente destrutiva – depende da falsa noção de que a depressão consiste em uma doença diagnosticável, cuja gravidade cruza limites arbitrários e vagamente definidos. Não obstante, o desânimo profundo não é mais doença do que um leve desânimo. Esse último é a resposta adequada e adaptável a pequenas perdas e adversidades. E o primeiro é a resposta adequada e natural a uma adversidade mais profunda ou mais duradoura. Embora, evidentemente, o que constitui uma adversidade profunda variará enormemente de pessoa para pessoa. Um indivíduo, por exemplo, movido por uma expectativa de emprego estável e permanente, pode ter verdadeiramente o seu coração partido com a perda de um emprego. Enquanto que outro indivíduo, movido pela noção de que há sempre um outro trabalho ‘ao virar a esquina’, será menos afetado. E assim por diante.

A esse respeito, é de se notar que o comentário de Partners refere-se à hiperatividade na BA 25. A utilização do prefixo implica em patologia; mas na realidade não existe um critério para determinar o que seria uma quantidade correta de atividade para BA 25. Tudo o que pode ocorrer, tomando como base as descobertas de Mayberg et al. e as subsequentes pesquisas de BA 25, é que quando uma pessoa está triste, há mais atividade do que quando está feliz. Assim, o uso do termo “excesso de atividade” é enganoso – esgueirando-se na noção de patologia, sem razões genuínas ou válidas para considerá-la assim. O “raciocínio” aqui é:

– Depressão é uma doença

– Depressão está correlacionada com alta atividade em BA 25

– Logo alta atividade em B 25 é patológica.

Em outras palavras, a afirmação de patologia baseia-se na suposição de que a depressão é uma doença. Inverter e usar essa patologia falsamente inferida para provar que a depressão é uma doença é obviamente um ato falacioso. É também típico do modo de raciocínio circular que permeia as afirmações psiquiátricas. Na realidade, não há nada no estudo de Mayberg e colegas (ou em alguma pesquisa posterior) que justifique a conclusão de que o aumento da atividade em BA 25 é patológico ou excessivo.

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Esquizofrenia associada a genes específicos

Essa afirmação, de que a esquizofrenia está ligada a genes específicos, é frequentemente citada nesses debates; enquanto evidência de que a ‘esquizofrenia’ é uma doença real com patologia biológica. Mais uma vez, os Partners não fornecem quaisquer referências em apoio a essa afirmação, embora haja uma série de estudos nos últimos quinze anos ou mais anos que encontraram ligações desse tipo. No entanto, em todos os casos, as correlações foram pequenas. Em outras palavras, há sempre um grande número de indivíduos aos quais foi atribuído o rótulo de ‘esquizofrenia’, mas que não possuem a variante genética em questão; e há um grande número de pessoas que têm a variante do gene, mas que não adquirem o rótulo de ‘esquizofrenia’. Até hoje em dia, nenhum teste genético foi encontrado como sendo útil para confirmar ou refutar um ‘diagnóstico de esquizofrenia’.

Um problema adicional surge aqui, em que a afirmação de que “a esquizofrenia tem sido associada a genes específicos” é muitas vezes interpretada como significando que ‘esquizofrenia’ é uma doença genética; o que enfaticamente não é. Para ilustrar isso, vejamos brevemente uma verdadeira doença genética: a ‘doença renal policística’ (PKD). Esta é uma doença genética bem estabelecida causada por cistos nos rins. Os cistos bloqueiam progressivamente o fluxo sanguíneo pelos rins, causando a morte do tecido.

A maioria dos casos de PKD são causados pelo gene defeituoso (PKD-1). Na doença renal policística, a patologia ocorre porque o gene PKD-1 faz com que os néfrons sejam feitos de epitélio de parede de cisto em vez de epitélio de nefrona. E o epitélio da parede do cisto produz o líquido que é acumulado dentro, e que destrói finalmente os nephrons e o rim.

Assim, o gene determina a estrutura da parede de néfron. Este é o principal efeito genético. Essa estrutura faz com que a parede produza fluido. À medida que os nefrões ficam cada vez mais bloqueados, os rins produzem menos urina. Assim, micção reduzida é um efeito secundário do gene PKD-1. Sintomas de PKD geralmente não surgem até a idade adulta; mas cerca de 25% das crianças com PKD1 têm dor e outros sintomas. Logo, uma criança crescendo com doença renal policística pode sentir-se doente a maior parte do tempo. Tal criança é provável que seja mais agitada e mais angustiada do que outras crianças, e é perfeitamente possível que se poderia encontrar uma relação de correlação fraca entre gene PKD-1 e a agitação infantil; embora, naturalmente, qualquer pesquisa para uma tal correlação será confundida pelo fato óbvio de que as crianças podem ser habitualmente agitadas por outras razões. A agitação seria um efeito terciário do gene PKD1.

E daí a cadeia causal poderá continuar em várias direções – cada vez mais fracas. Por exemplo, a criança pode ficar um pouco triste e desanimada. Ou pode ser que a criança tenha recebido atenção extra e reconfortante de seus pais, e consequentemente tenha ficado bastante contente; e assim por diante. Em última análise, o resultado é impossível ser previsto com qualquer tipo de precisão, e o melhor que podemos esperar de genes versus estudos de comportamento subsequentes sejam correlações fracas, tênues.

A ‘fenda palatina’ é outro exemplo de uma patologia que é causada pela remoção de um gene; realmente uma falha genética. Esta condição resulta em uma qualidade de fala caracteristicamente tensa e nasal, que pode ser bastante estigmatizante. A fala nasal é um efeito secundário da falha genética.

As crianças com este tipo de discurso são às vezes objeto de zombarias e de intimidações por seus pares. A criança pode reagir a esse tipo de estigmatização falando o mínimo possível, retirando-se socialmente, ou de várias outras maneiras. Essas reações seriam consideradas efeitos terciários do defeito. E assim por diante. Assim como com o PKD, cada passo na cadeia nos leva mais longe do defeito genético; e as associações estatísticas crescem proporcionalmente mais fracas; e estaríamos esticando a questão ao dizer que a falta de fala tenha sido causada pela falha genética. Nem se poderia concluir que o isolamento social da criança é um sintoma de uma doença genética!  E isso é verdade, mesmo que a ligação entre a falha e a fenda palatina seja clara e direta.

Da mesma forma, não é simplesmente possível alegar que comportamentos ‘esquizofrênicos’ (por exemplo, o discurso desorganizado) são sintomas de uma doença genética. Esse é particularmente o caso em que as correlações entre o ‘diagnóstico’ e anomalias genéticas são tipicamente muito pequenas. Os efeitos de quaisquer anomalias genéticas – menores que possam existir – têm uma ampla oportunidade de serem moldadas por fatores sociais e ambientais, e estas são construções causais mais credíveis.

‘Esquizofrenia’ não é uma condição unificada. Pelo contrário, é uma coleção solta de comportamentos vagamente definidos. Por essa razão, qualquer pesquisa genética feita sobre esta condição inevitavelmente redundará em resultados conflitantes e confusos. É como procurar semelhanças genéticas em todas as pessoas que jogam bridge, ou leem romances, visitam bibliotecas, jogam futebol, ou qualquer outra coisa. Se o tamanho da amostra for grande o suficiente, e na pesquisa genética os tamanhos das amostras são muitas vezes enormes, pode-se provavelmente encontrar pequenos efeitos em todas ou na maioria dessas áreas, mas ninguém concluiria que essas são atividades geneticamente determinadas; e muito menos doenças.

A capacidade de uma pessoa para aprender depende de dois fatores gerais: a) a estrutura de seu cérebro, conforme o determinado pelo seu DNA, e b) suas experiências desde o nascimento.

Não se pode aprender a tocar piano, por exemplo, a menos que haja um aparelho neural e dedos apropriados, os quais requerem um DNA apropriado. Mas mesmo uma pessoa com boa dotação genética nesses aspectos nunca aprenderá a tocar piano, a menos que esteja exposta a certos fatores ambientais. Ele/ela deve, no mínimo, encontrar um piano. Da mesma forma, uma pessoa cuja dotação genética seja relativamente marginal, pode se tornar um excelente pianista, se ele/ela receber um estímulo e apoio ambiental persistentes.

Raciocínio semelhante pode ser aplicado ao comportamento de não-ser- ‘esquizofrênico’. Esse comportamento envolve navegar nas armadilhas do final da adolescência / início da idade adulta, e o estabelecimento de hábitos funcionais nas áreas interpessoais, ocupacionais e em outras áreas de vida importantes. Obviamente, que isso requer um aparelho neural apropriado, daí as correlações fracas com o material genético; mas que igualmente clama por um ambiente de educação na infância que garanta oportunidades para o crescimento emocional e para a aquisição de habilidades sociais, ocupacionais e outras.

Dito isso, não é de surpreender que os pesquisadores encontrem correlações entre as variações de DNA e um ‘diagnóstico’ de esquizofrenia; mas dado o número de elos na cadeia causal e a multiplicidade de caminhos possíveis em cada elo, também não surpreende que as correlações sejam sempre consideradas fracas e de pouca ou nenhuma conseqüência prática.

Nem é surpreendente que as correlações entre a rotulagem de ‘esquizofrênico’ e vários fatores psicossociais sejam, em geral, fortes. Ter um rótulo de esquizofrenia está correlacionado com adversidade social na infância, abuso e maus-tratos na infância, pobreza, e uma história familiar de migração.

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Considerações geralmente semelhantes aplicam-se às afirmações de Partners com relação ao ‘transtorno de estresse pós-traumático’, ‘autismo’, suicídio e ‘transtorno obsessivo-compulsivo’. Mas o espaço impede uma discussão detalhada aqui.

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“Eric Kandel, MD, Prêmio Nobel e professor de ciências cerebrais na Universidade de Columbia, diz: ‘Todos os processos mentais são processos cerebrais e, portanto, todos os distúrbios do funcionamento mental são doenças biológicas … O cérebro é o órgão da mente.  Onde mais poderia [doença mental] ser, se não no cérebro? ‘ ”

Dr. Kandel (agora com 87 anos) é um investigador eminente em neurociência na Universidade de Columbia. Há uma extensa biografia na Wikipedia.  Sua pesquisa inicial teve como foco a neurofisiologia da memória. Ele recebeu inúmeros prêmios, incluindo o Prêmio Nobel de Fisiologia / Medicina (2000), e suas obras são amplamente publicadas. O registro de suas realizações de pesquisa é enorme, e seu conhecimento e perícia são vastos. Mas na declaração citada por Partners, e, aliás, por outros adeptos de psiquiatria, ele está simplesmente errado.

Vamos dar uma olhada mais de perto. Logicamente, as citações de Kandel podem ser declaradas simbolicamente como: A é idêntico a B; portanto, disfunções ou aberrações em A são disfunções ou aberrações em B.

À primeira vista, isso parece soar bem; porque se trata de uma inferência válida em algumas situações. Por exemplo, o forno na casa de uma pessoa é o aparelho de aquecimento primário; portanto, avarias no forno são avarias no aparelho de aquecimento primário. Na verdade, num exemplo simples desse tipo, a afirmação é tautológica. Estamos simplesmente colocando como sinônimos o forno e o aparelho de aquecimento primário, e a inferência não contém novas informações ou insights. Porém, em questões mais complexas, essa lógica é absolutamente falaciosa.

Vamos admitir, por razões de discussão, que a premissa das citações de Kandel seja verdadeira; isto é, que todos os processos mentais são processos cerebrais. O termo processos mentais abrange uma ampla gama de atividades, incluindo sensações, percepções, pensamentos, escolhas, sentimentos positivos, sentimentos negativos, esperanças, crenças, fala, canto, comportamento geral, etc.

O termo ‘transtornos do funcionamento mental’ é mais difícil de definir; não obstante, novamente para fins de discussão, vamos aceitar o catálogo da APA como definitivo a esse respeito. Vamos aceitar que qualquer coisa listada no DSM seja um ‘transtorno do funcionamento mental’.

É imediatamente óbvio que algumas das entradas do DSM são de fato o resultado do mau funcionamento do cérebro. No texto essas ‘entradas’ são referidas como sendo transtornos devido à uma condição médica geral ou aos efeitos de uma substância. Porém, na grande maioria dos rótulos de DSM, nenhuma causa biológica é identificada, por conseguinte, a conclusão na citação de Kandel parece exigir algum tipo de evidência ou prova. No entanto, na citação Kandel, a conclusão não é apresentada como algo que foi, ou mesmo precisa de ser comprovada. Em vez disso, ela é apresentada como uma conclusão lógica inerente, e que decorre diretamente da premissa. E é nessa perspectiva que as citações de Kandel precisam ser avaliadas.

Para perseguir isso, vamos considerar o exemplo do ‘transtorno desafiante de oposição’. Esta aqui é uma desordem do funcionamento mental como definida acima, porque está listada no DSM. E de acordo com a ‘lógica’ do Dr. Kandel, é também uma ‘doença biológica‘. Os ‘sintomas’ do transtorno desafiante de oposição, conforme listado no DSM-5, são:

  1. Muitas vezes perde o humor.
  2. É muitas vezes sensível ou facilmente irritado.
  3. Muitas vezes está com raiva e ressentimento.
  4. Argumenta frequentemente com figuras de autoridade ou com crianças e adolescentes, senão com adultos.
  5. Freqüentemente desafia ativamente ou se recusa a atender a pedidos ou regras de figuras de autoridade.
  6. Muitas vezes, deliberadamente, irrita os outros.
  7. Muitas vezes culpa os outros por seus erros ou mau comportamento.
  8. Tem sido rancoroso ou vingativo pelo menos duas vezes nos últimos 6 meses. (p. 462 do DSM-IV)

Obviamente, para que qualquer um desses comportamentos ocorra, há que haver atividade neural correspondente. Mas não há necessidade de que a atividade neural esteja doente ou com defeito de qualquer maneira. Uma criança aprendendo com seu ambiente, desenvolvendo seu repertório comportamental de acordo com os princípios comuns da aprendizagem, poderia adquirir qualquer um ou todos esses hábitos comportamentais, sem nenhum mau funcionamento em seu aparelho neural. Adquirimos hábitos, contraproducentes tão facilmente, e essencialmente pelos mesmos processos, na mesma medida em que adquirimos os produtivos. Em geral, se uma criança descobre que pode adquirir poder e controle em seu ambiente – com birras de temperamento – , ele/ela adquire o hábito de produzir birras de temperamento. Da mesma forma, se ao discutir com os pais e outras figuras de autoridade são produizidos resultados positivos, há uma boa chance de que isso também se torne habitual. E isso não é porque há algo de errado com o cérebro da criança. Pelo contrário, é porque seu cérebro está funcionando corretamente. Ele/ela está internalizando – como hábitos – aquelas decisões e ações que são gratificadas. Muitas vezes é observado na prática da educação das crianças que se você não está treinando (educando) seus filhos, são eles que estão treinando (educando) você.

Observações semelhantes podem ser feitas sobre os outros sete ‘sintomas’ do transtorno de oposição desafiante.

Como de fato ocorre com todos os rótulos (‘entradas’) do DSM.

Uma pessoa com um cérebro perfeitamente normal-funcionando pode adquirir os hábitos em questão, se as circunstâncias forem conducentes com essa aprendizagem.

Assim, para retornar à pergunta na citação de Kandel: “Onde mais poderia [doença mental] haver, se não no cérebro?”.

A resposta é clara: ela está na defesa dos interesses da corporação psiquiátrica e na sua injustificada percepção.

A doença mental é a lente distorcida pela qual os psiquiatras vêem todos os problemas de pensamento, sentimento e comportamento. É o dispositivo que eles usam para legitimar sua inclinação para prescrever drogas e para manter a ficção de que eles estão praticando medicina.

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“Você está certo de que a doença mental também é afetada por condições sociais e ambientais – por o que está disponível a uma pessoa, à sua educação, ou ao seu ambiente atual. É também verdade que a doença mental é afetada pelo uso de drogas (prescritas e não prescritas). Assim como para outras condições médicas, como doenças cardíacas e câncer. ”

Eu não não sei de onde os Partners tiraram isso, porque eu nunca fiz essa declaração. Na minha opinião, o que já afirmei claramente em numerosas ocasiões, a ‘doença mental’ é uma invenção psiquiátrica criada de modo a promover a noção espúria de que todos os pensamentos, sentimentos e / ou comportamentos problemáticos são doenças. E não apenas doenças em algum sentido alegórico vago; mas como se fossem doenças reais, ‘como o diabetes’, que precisam ser tratadas por psiquiatras com treinamento médico, por meio de drogas que alteram o humor, e por choques elétricos de alta tensão para o cérebro.

As concessões vagas dos Partners a respeito do ambiente, da criação das crianças e dos efeitos de drogas, são de fato uma ‘sopa’ ao padrão psiquiátrico; o que, porém, não mitiga as suas primeiras alegações sobre a “a longa história de evidências biológicas” e seu endosso acrítico da citação logicamente espúria de Kandel.

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“E é verdade que a doença mental é muitas vezes difícil de ser diagnosticada por causa de:

1) as atuais limitações do campo de pesquisa. Thomas R. Insel, MD, diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental, por exemplo, fala sobre como o diagnóstico do tratamento da doença mental hoje é o que a cardiologia foi há 100 anos, concluindo que precisamos continuar a investigação científica de doenças mentais. (Há uma citação mais longa sobre isso abaixo.) ”

Citação acima mencionada:

“Tomem como exemplo a cardiologia”, diz Insel. “Há um século atrás, os médicos tinham pouco conhecimento da base biológica da doença cardíaca. Eles podiam simplesmente observar a apresentação física do paciente e ouvir as queixas subjetivas do paciente. Hoje eles podem medir os níveis de colesterol, examinar os impulsos elétricos do coração com ECG, e tomar imagens detalhadas de tomografia computadorizada de vasos sanguíneos e artérias para entregar um diagnóstico preciso. “ Como resultado, Insel diz, a mortalidade por ataques cardíacos caiu drasticamente nas últimas décadas. “Na maioria das áreas da medicina, agora temos um conjunto de ferramentas para nos ajudar a saber o que está acontecendo – do nível comportamental ao nível molecular. Isso realmente levou a grandes mudanças na maioria das áreas da medicina “, diz ele.

Insel acredita que o diagnóstico e tratamento da doença mental está hoje onde a cardiologia estava há 100 anos. E, a exemplo da cardiologia do passado, o campo está pronto para a transformação dramática, diz ele. “Estamos realmente no auge de uma revolução na forma como pensamos sobre o cérebro e o comportamento, em parte por causa de avanços tecnológicos. Finalmente, podemos responder a algumas das questões fundamentais “.

Há pelo menos quarenta anos, eu comecei a ouvir sobre as grandes descobertas biológicas da psiquiatria que estavam ao redor do canto proverbial; e essa promessa, se meus leitores perdoarem o trocadilho, está ficando um pouco velha em demasia.

O que é digno de nota, no entanto, é que em outras disciplinas, onde há esperança ou expectativa de avanços, os proponentes desses esforços geralmente esperam pelas evidências, antes de implementarem práticas baseadas nessas esperanças. Na verdade, pelo que eu sei, a psiquiatria é a única profissão cuja obra inteira, cuja estrutura conceitual inteira, se baseia em ‘evidências’ e ‘descobertas’ que ainda não estão disponíveis.

Observe você, caro leitor, também o contraste verdadeiramente requintado entre a afirmação confiante de Partners de que “as doenças mentais têm uma longa história de evidência biológica” com a afirmação de que o ‘diagnóstico’ e o ‘tratamento’ da ‘doença mental’ estão hoje onde a cardiologia de há 100 anos atrás estava.

Aliás, Dr. Insel, ex-diretor do NIMH, também disse:

“Embora o DSM tenha sido descrito como uma ‘Bíblia’ para o campo, o Manual é, na melhor das hipóteses, um dicionário, criando um conjunto de rótulos e definindo cada um. A força de cada uma das edições do DSM tem sido a ‘confiabilidade’ – cada edição tem garantido que os clínicos usem os mesmos termos e da mesma maneira. A fraqueza é a sua falta de validade. Ao contrário de nossas definições de doença cardíaca isquêmica, linfoma ou de AIDS, os diagnósticos do DSM são baseados em um consenso sobre os os conjuntos de sintomas clínicos, e não em qualquer medida laboratorial objetiva. No restante da medicina, isso seria equivalente à criação de sistemas de diagnóstico com base na natureza da dor no peito ou da qualidade da febre. Enquanto que, o diagnóstico baseado em sintomas, uma vez comum em outras áreas da medicina, tenha sido amplamente substituído no meio século passado, na medida em que temos entendido que os sintomas por si só raramente indicam a melhor escolha de tratamento “. (Transforming Diagnosis, 2013)

E vamos ser bem claros. “Falta de validade” neste contexto significa que os ‘diagnósticos’ não correspondem realmente a nenhuma entidade de doença no mundo real. A observar também que o Dr. Insel não disse validade pobre, ou baixa validade. Ele disse falta de validade – significando nenhuma.

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Voltando para o comentário de Carolina Partners:

“2) os sintomas da doença mental muitas vezes se sobrepõem com os sintomas causados por outras doenças, por exemplo, alguém com câncer também pode ficar deprimido após o diagnóstico, ou a fadiga de alguém pode ser causada por uma deficiência de vitamina, e não por depressão. Embora considerando todos esses fatores, ainda é completamente impreciso para afirmar que não há base biológica para doenças mentais. Elas não são doenças de ‘fantasia’, mas sim são causadas por uma variedade de fatores, incluindo os biológicos. À medida que entendemos mais sobre doenças mentais por meio de pesquisas, nós (como ocorre com a cardiologia, por exemplo) ganhamos veículos mais precisos para medir e entender as implicações biológicas desses distúrbios “.

Essa é uma pequena divagação, mas vamos ver se podemos desvendá-la:

“… alguém com câncer também pode ficar deprimido após o diagnóstico”.

Isso é verdade. De fato, eu diria que a maioria das pessoas que contraem doenças graves se tornam um pouco tristes e desanimadas. Mas isso de modo algum estabelece a noção de que a tristeza deva ser considerada uma doença adicional.

“… a fadiga de alguém pode ser causada por uma deficiência de vitamina, e não por depressão.”

Essa citação contém uma das falácias principais da psiquiatria: que as várias ‘doenças mentais’ são as causas de seus respectivos sintomas (como é o caso da doença real). Para ilustrar a falácia, considere a conversa hipotética:

A esposa do cliente: Por que meu marido está tão cansado o tempo todo?

Psiquiatra: Porque ele tem uma doença chamada transtorno depressivo maior.

A esposa do cliente: Como você sabe que ele tem esta doença?

Psiquiatra: Porque ele está cansado o tempo todo.

A psiquiatria define a depressão maior (a assim chamada doença) pela presença de cinco ‘sintomas’ de uma lista de nove, um dos quais é fadiga, e depois rotineiramente aduz a ‘doença’ para explicar os sintomas. Na realidade, os ‘sintomas’ são implicados na definição da ‘doença’, e a explicação é inteiramente falsa. Há muitas razões válidas pelas quais uma pessoa pode se sentir fatigada, mas nenhuma delas é porque ela “tem uma doença mental”. As doenças mentais são apenas rótulos sem significado explicativo. E por causa da vaguedade inerente nos critérios, elas não são mesmo boas etiquetas.

“… ainda é completamente impreciso se afirmar que não há fundamento biológico para as doenças mentais.”

Como enfatizado acima, há uma base biológica para tudo o que fazemos – cada pensamento, cada sentimento, cada piscar de olhos, cada ação. Mas – e este é o ponto que parece fugir à psiquiatria – não há boas razões para acreditar que os vários problemas catalogados no DSM estejam subjacentes a processos biológicos patológicos. E há muitas razões boas para acreditar que não são.

“Elas não são doenças” falsas “, mas são causadas por uma variedade de fatores, incluindo os biológicos.”

Eu não acho que eu já usei o termo ‘fazer-acreditar’ para descrever ‘doenças psiquiátricas’, embora eu rotineiramente descreva rótulos psiquiátricos como inventados. Os dois termos não são sinônimos. O que a psiquiatria chama de doenças mentais não é nada mais que coleções soltas de problemas vagamente definidos de pensamento, sentimento e / ou comportamento. Na maioria dos casos, o ‘diagnóstico’ é político (cinco em nove, quatro em seis, etc.); de modo que os rótulos não são entidades coerentes de nenhum tipo, muito menos doenças.

Mas os problemas apresentados nas chamadas listas de sintomas são problemas reais. Há dúvida quanto a isso? Esse não é o problema. Eu me refiro a esses rótulos como invenções, por causa da afirmação da psiquiatria de que os aglomerados soltos de problemas são doenças reais. Na realidade, não são doenças genuínas; são invenções. Eles não são descobertos na natureza, mas são votados como existentes pelos comitês APA

Mas, entretanto, a psiquiatria decidiu. Dentro do dogma psiquiátrico, todos os problemas humanos significativos de pensamento, sentimento e comportamento são doenças que precisam ser “tratadas” com drogas e choques elétricos.

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Finalmente

Tudo isso é interessante, e suponho que é importante refutar o fluxo mais ou menos constante de afirmações sem fundamento, raciocínio falacioso e rotação que flui dos bastiões psiquiátricos.

Mas enquanto isso a carnificina continua. Há abundante evidência prima facie de que as drogas psiquiátricas estão implicadas causalmente nos suicídios / assassinatos que se tornaram quase diariamente ocorrências aqui nos EUA. Meu desafio à psiquiatria institucionalizada é simples: chamar publicamente um estudo independente e definitivo para explorar esse relacionamento.

Se o que você, colega psiquiatra, está fazendo é sem reservas algo saudável, seguro e eficaz, então o que você tem que temer de uma investigação científica independente dos interesses corporativos?

A IMPORTÂNCIA DO MAD IN BRASIL

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A Importância do Mad in Brasil

            Mad in America, que é uma revista publicada na internet desde 2011, no ano passado deu boas vindas a duas afiliadas: Mad in America Hispanohablante, e Mad in Brasil.  Nós vemos essas afiliadas como parte de um crescente movimento global para repensar o existente “modelo de doença” para o tratamento psiquiátrico. Esse é um modelo que se espalhou pelo mundo inteiro, e – como vem se tornando cada vez mais claro – com efeitos doentios.

            E aqui está o que os leitores dessa revista na internet devem saber: Mad in Brasil tem uma oportunidade para se tornar um líder nesse esforço mundial para repensar a psiquiatria.

            Para se entender o por quê que tal “repensar” é tão necessário, é importante fazer uma revisão da história do nosso atual modelo de atenção: como o modelo de doença foi desencadeado, e as histórias que posteriormente vêm sendo contadas ao público. A revisão revela que as sociedades em todo o mundo têm organizado a sua assistência ao redor de uma falsa narrativa que está produzindo um enorme dano.

Uma Breve História do Modelo de Doença

             O modelo atual de assistência psiquiátrica – o “modelo de doença – foi iniciado em 1980, quando a Associação Psiquiátrica Americana (APA) publicou a terceira edição do seu Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM III). Esse foi o momento em que a APA decidiu que os principais transtornos psiquiátricos de todos os tipos – transtornos psicóticos, transtornos de humor, e assim por diante – seriam concebidos enquanto doenças do cérebro, com cada doença distinta das outras.

            Contudo, não haviam descobertas científicas que justificassem que a APA viesse a adotar esse modelo de doença para categorizar transtornos psiquiátricos. Ao contrário, a APA assim agiu em grande medida por razões corporativas. Durante os anos 1970, a psiquiatria dos Estados Unidos sentiu que estava sob ataque, na medida em que haviam inúmeros críticos e grupos na sociedade questionando a sua legitimidade enquanto um ramo da medicina. A Psiquiatria, diziam os críticos, funcionava mais como uma agência de controle social do que como um provedor de cuidado médico. Como a APA buscava responder a essa crítica, seus líderes perceberam que ao adotar o que era chamado um modelo médico (embora seja mais correto descrevê-lo como um modelo de doença), a profissão poderia apresentar os psiquiatras ao público como “médicos de verdade” –  vestindo jalecos brancos e tratando as chamadas “doenças” do cérebro.

            Após a publicação do DSM III, em 1980, a APA iniciou uma campanha de relações públicas para vender esse novo modelo ao povo dos Estados Unidos. Ela treinou seus membros, para o que dizer à imprensa; passou a promover sistemáticas campanhas nacionais “educativas”; e passou a cortejar a imprensa, distribuindo prêmios para as mídias que relatassem esse avanço “revolucionário” na psiquiatria. A indústria farmacêutica, por sua vez, ajudou a dar suporte financeiro para essa venda do modelo de doença, concedendo subvenções à APA para os seus esforços de treinamento junto aos meios de comunicação, assim como para as suas campanhas educativas. As empresas farmacêuticas também passaram a contratar psiquiatras da academia enquanto consultores, assessores, palestrantes; e esses “líderes da opinião pública” –  como a indústria os chamava – ajudaram a remodelar o pensamento da sociedade.

            Com a psiquiatria e a indústria agora reunidas – em uma “profana” aliança – formada para vender esse modelo de doença, o público dos Estados Unidos passou a aprender que as doenças mentais eram devidas a desequilíbrios químicos no cérebro, e que as drogas psiquiátricas colocam essa química anormal em equilíbrio, como a insulina para o diabetes. Levando-se em conta a complexidade do cérebro humano, essa foi a história que passou a contar o espetacular avanço médico. A patologia que causava os principais transtornos mentais havia sido descoberta, e os pesquisadores estavam desenvolvendo drogas que corrigiam o problema.

            Isso tudo ocorreu no final dos anos 1980, e após Eli Lilly trazer para o mercado o Prozac, o público nos Estados Unidos passou a ouvir a história que essa droga ‘maravilhosa’ não apenas curava a depressão, mas que poderia tornar os pacientes “melhor do que estar bem”.

prozac

              A psiquiatria estava progredindo; e em seguida chegaram ao mercado os novos antipsicóticos que foram considerados muito melhores do que os antigos. A prescrição de drogas psiquiátricas explodiu, e hoje, um em cada cinco estadunidenses acima da idade de doze anos toma uma droga psiquiátrica diariamente.

             Embora essa história – dos desequilíbrios químicos e das drogas maravilhosas que corrigem essas anormalidades químicas – tenha sido primeiro contada ao público dos Estados Unidos, ela logo foi exportada aos países “desenvolvidos” ao redor do mundo. O método para exportar esse “modelo de doença” foi bem simples.

            No início dos anos 1990, pelo menos 50% dos psiquiatras que participavam do congresso anual da APA eram de fora dos Estados Unidos. Quase todos viajavam com todas as despesas pagas pelas empresas farmacêuticas, e durante o evento eles eram tratados com toda a pompa. Lá tinham café da manhã, almoço e jantar; tudo pago pelas empresas farmacêuticas, onde eles iriam ouvir famosos psiquiatras estadunidenses, provenientes das mais prestigiadas Faculdades de Medicina, a dizerem os últimos avanços na psiquiatria e a eficácia das novas drogas. Quando esses psiquiatras estrangeiros retornavam a seus países, com frequência com as suas malas cheias de brindes, eles evocavam o evangelho do novo modelo de doença. Além disso, aqueles em posições acadêmicas prestigiadas com frequência eram contratados pelas empresas farmacêuticas, para servir como consultores, palestrantes e assessores.

         Desse modo, o “modelo médico” da APA se espalhou pelo mundo inteiro. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também passou a promover tais esforços, e tudo isso levou à globalização do modelo de doença em saúde mental.

Uma Falsa Narrativa de Ciência

         O entendimento comum é que essa é uma história de progresso, de uma especialidade médica saindo de um passado sombrio e entrando na brilhante luz da ciência moderna. Mas o que é realmente espantoso a respeito dessa toda história é que ela foi construída baseada em uma mentira, que sem muitas dificuldades pode ser revelada. A noção de que os principais transtornos mentais eram devidos a desequilíbrios químicos começou a desmoronar, faz muito tempo, no final dos anos 1970 e no começo dos anos 1980, chegando a 2005, havendo sido declarada morta em suas bases e enterrada na literatura científica.

            A hipótese de que os principais transtornos mentais, como a esquizofrenia e a depressão, poderiam ser causados por desequilíbrios químicos apareceu pela primeira vez nos anos 1960, após os pesquisadores haverem descoberto como os antipsicóticos e os antidepressivos atuam no cérebro. Os cientistas aprenderam que a Clorpromazina e outros antipsicóticos bloqueavam os receptores da dopamina no cérebro, e daí eles formularam a hipótese que talvez a esquizofrenia fosse devida a um excesso da atividade dopamínica no cérebro (e, portanto, que as drogas funcionavam opondo-se a essa atividade). De forma semelhante, eles descobriram que os antidepressivos aumentavam a atividade da serotonina e outras ‘monoaminas’ no cérebro, e como consequência eles formularam a hipótese de que talvez a depressão fosse devida ao problema oposto (muito pouca serotonina).

         Os pesquisadores então procuraram determinar se essas hipóteses eram verdadeiras. Eles necessitavam verificar se as pessoas diagnosticadas com esquizofrenia tinham um excesso de atividade de dopamina, ou se os pacientes deprimidos tinham muito baixa a atividade serotonérgica. A teoria da baixa serotonina para a depressão foi a primeira a ser derrubada. Tão cedo quanto 1984, os pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde Mental (National Institute of Mental Health) concluíram que “Elevações ou quedas no funcionamento dos sistemas serotonérgicos per si não são susceptíveis de serem associados com a depressão. “ Eles não haviam encontrado nada de errado com o sistema serotonérgico nos pacientes deprimidos.

           Investigações subsequentes produziram o mesmo resultado. Enquanto o público estava sendo informado de como a depressão era devida à baixa concentração de serotonina, pesquisadores familiarizados com os estudos científicos estavam chegando a uma diferente conclusão. Aqui está uma pequena amostra de tais achados:

1995: “Não há evidências científicas quaisquer de que a depressão clínica seja devida a qualquer tipo de estado de déficit biológico. “ – Colin Ross, professor associado de psiquiatria no Southwest Medical Center em Dallas, Texas.

1999: Décadas de pesquisa “não confirmaram a hipótese de diminuição de monoamina para a depressão”.  Livro Didático de Psiquiatria da Associação de Psiquiatria Americana APA).

2000: “Não há clara e convincente evidência de que a deficiência de monoamina leve à depressão; quer dizer, não há um ‘real’ déficit de monoamina.”  Livro didático de Psicofarmacologia Essencial (Essencial Psychopharmacology textbook).

2012: “Eu não penso que haja qualquer corpo de dados convincentes de que alguém tenha alguma vez encontrado que a depressão esteja associada, em uma extensão significativa, com a perda de serotonina. ” Alan Frazer, diretor do Departamento de Farmacologia do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas.

              As investigações com a teoria da hiperatividade da dopamina para a esquizofrenia produziam dados bem mais complicados, mas no começo dos anos 1990 vários renomados pesquisadores americanos concluíram que não haviam “boas evidências para a perturbação da função da dopamina na esquizofrenia. “ Em 2002, essa conclusão ganhou uma grande repercussão, ao ser assumida pelo diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental (National Institute of Mental Health),  Steve Hyman.  Ele escreveu: “Não há evidência forte de que uma lesão no sistema dopamínica seja uma causa primária da esquizofrenia. “

          Finalmente, em 2005, Kenneth Kendler, coeditor chefe do Psychological Medicine, resumiu essa história de pesquisa de um modo sucinto: “Temos ido à caça de grandes explicações neuroquímicas simples para transtornos psiquiátricos e não as encontramos. “

       Tal é a história que pode ser encontrada na literatura científica. A teoria do desequilíbrio químico dos transtornos mentais foi investigada e desacreditada. Mas essa descoberta não foi comunicada ao publico, seja nos Estados Unidos ou em outros países. Ao contrário, o público foi levado a acreditar que o oposto era a verdade. Em 2005, no mesmo ano em que Kendler declarou morta a teoria do desequilíbrio químico para os transtornos mentais, uma pesquisa conduzida pela Associação de Psiquiatria Americana (APA) verificou que 75% dos adultos estadunidenses acreditavam que “doenças mentais são usualmente causadas por um desequilíbrio químico no cérebro. ”

             Esta foi a grande mentira que foi promovida para vender o modelo de doença ao público. A história foi primeiramente contada ao público dos Estados Unidos, e então, como parte da globalização do modelo de doença para a saúde mental, ela foi contada ao público dos países do mundo inteiro. A globalização do modelo de doença levou a um delírio da sociedade acerca da biologia dos transtornos mentais.

          A segunda parte dessa narrativa, que surgiu da aliança profana da psiquiatria americana e da indústria farmacêutica, envolveu a promoção de novos medicamentos psiquiátricos ‘de segunda geração’ para o público. Os novos antidepressivos, antipsicóticos e outros medicamentos psiquiátricos foram considerados bastante seguros e eficazes, e muito melhores do que os medicamentos de primeira geração; mas hoje essa história se desfez. Sabemos que os ensaios clínicos foram influenciados pelo design para fazer com que os novos medicamentos parecessem melhores; sabemos que os resultados das pesquisas publicadas nas revistas médicas exageraram os benefícios das drogas e obscureceram muitos de seus riscos; e sabemos que estudos de longo prazo não conseguiram descobrir que as drogas levam a melhores resultados. De fato, em tais estudos de longo prazo, os pacientes não medicados têm se saído regularmente melhor.

             Juntas, essa narrativa de desequilíbrios químicos e drogas altamente eficazes criou uma falsa ‘narrativa da ciência’. Mas os Estados Unidos e outras sociedades organizaram seus cuidados em torno dessa falsa narrativa, e hoje é fácil se ver o dano causado. Em cada país que o modelo de doença para os cuidados em saúde mental foi adotado, o fardo da doença mental aumentou drasticamente.

O Aumento do Fardo da Doença Mental

              Em 2010, publiquei um livro intitulado Anatomia de uma Epidemia, que, entre outras coisas, investigou o crescente número de pessoas que recebem um pagamento por invalidez por causa de uma doença psiquiátrica. Nos Estados Unidos, o número de adultos que recebem pensão governamental por invalidez devido a uma doença mental subiu de 1,25 milhões em 1987 para quase 4 milhões em 2007 (e já chegou a cerca de 5 milhões.) O número de jovens de 18 anos e com menos idade recebendo um pagamento de invalidez devido à doença mental aumentou de 16.200 em 1987 para 728.000 em 2011.

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            Após Anatomia de uma Epidemia ter sido publicado, comecei a olhar para o número de pessoas consideradas como ‘incapacitadas’ por doença mental em outros países. E numa sociedade ou em outra, invariavelmente eu encontrei a mesma imagem: em cada país em que havia sido adotado o modelo de doença para os cuidados em saúde mental, o número de pessoas com ‘incapacidade’ devido a transtornos mentais havia aumentado dramaticamente. Isso era a verdade nos países escandinavos, na Alemanha, na Alemanha, na Austrália, na Nova Zelândia, e assim por diante. Da mesma forma, como o ‘modelo de doença mental’ foi globalizado, a Organização Mundial da Saúde relatou que o fardo global da doença mental – e, em particular, o fardo devido à depressão – aumentou consideravelmente nas últimas décadas.

            Esses são marcadores de um paradigma fracassado de assistência em saúde mental. A história explica a origem desse fracasso: as sociedades organizaram seus cuidados psiquiátricos em torno de uma narrativa falsa. É por isso que o atual paradigma do cuidado precisa ser repensado, e o por quê o ‘repensar’ necessita ser conduzido através de uma avaliação honesta da literatura científica.

Mad in America

          Fundamos o site Mad in America em 2011 com esse objetivo em mente. Nós publicamos regularmente resultados da literatura científica que apoiam a criação de um paradigma diferente de cuidado, que se concentraria mais em tratamentos psicológicos e não-medicamentosos (dieta, exercício, apoio social, etc.). No entanto, esses achados que desmentem a atual forma de conceber a saúde mental não são regularmente divulgados nos principais meios de comunicação. Na verdade, eu acho que Mad in America é a única mídia nos Estados Unidos que publica regularmente esses resultados.

           Além disso, Mad in America recrutou um grupo internacional de escritores, com uma variedade de backgrounds – psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, jornalistas, pessoas com experiência de vida e membros da família – para escrever blogs que explorem tanto as falhas do sistema atual quanto promissoras alternativas. Nós também regularmente apresentamos as histórias pessoais de pessoas com experiência vivida enquanto “pacientes mentais.” Suas histórias muitas vezes dizem dos cuidados psiquiátricos que fazem mais mal do que bem.

           Estamos publicando Mad in America há seis anos e é encorajador que o pensamento social, nos Estados Unidos e no exterior, esteja mudando e que haja um crescente apelo para se repensar o atual paradigma de cuidados baseado em drogas. Em uma recente conferência da INTAR, na Índia, houve oradores da Organização Mundial da Saúde, da International Disability Alliance e do Escritório das Nações Unidas para os Direitos das Pessoas com Deficiência, e ao final da Conferência houve um acordo unânime de que uma nova “narrativa global de saúde” é necessária, um paradigma que possa substituir o fracassado ‘ modelo médico’ que hoje domina a saúde mental.

            “As pessoas estão clamando pela mudança”, disse Alberto Vasquez, coordenador de pesquisa do escritório do relator especial para as Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. “Queremos ver outra coisa.”

Mad in Brasil

          Isso nos leva ao Mad in Brasil, e por isso ele é tão importante para essa luta global maior (e, em particular, para nós do Mad in America).

            Em Mad in America, somos “críticos” do sistema existente e, portanto, podemos ser vistos como se esforçando para reformar o sistema, de fora. Os fundadores e editores de Mad in Brasil vêm de dentro do sistema.

            Os criadores do Mad in Brasil são Fernando de Freitas e Paulo Amarante. Paulo Amarante tem sido um dos líderes da reforma psiquiátrica no Brasil, desde a década de 1980, e tanto ele como Fernando de Freitas foram dirigentes da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME). Ambos são membros do corpo docente da Fundação Oswald Cruz (FIOCRUZ), a mais importante instituição federal de educação e de pesquisa do Brasil dedicada à melhoria da saúde pública.

          É precisamente por isso que o Mad in Brasil pode se tornar um líder neste esforço global para se repensar o paradigma atual do cuidado e desenvolver novas abordagens aos serviços psiquiátricos. Mad in Brasil está sendo liderado por editores que estão em posição de buscar mudanças nos serviços e nos tratamentos psiquiátricos. O equivalente para nós seria algo como se no Mad os seus editores nos Estados Unidos trabalhassem para o Instituto Nacional de Saúde Mental (National Institute of Mental Health), e se assim fosse, as possibilidades de mudança nos Estados Unidos – e para reformular o pensamento da nossa sociedade – seria muito maior.

         É assim como nós do Mad in America pensamos o Mad in Brasil. Vemos este site como um momento ímpar para se repensar o atual modelo de atenção à doença, e acreditamos que o Mad in Brasil, com seus relatos sobre os esforços de reforma no Brasil, irá produzir notícias que serão de interesse para Mad in América em todo o mundo.

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