Pills and orange pill bottle on black textured background
Texto originalmente publicado no Mad in America , traduzido para o português por Letícia Paladino e revisado por Camila Motta.
Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute os efeitos prejudiciais do lítio e das drogas antiepilépticas usadas para o transtorno bipolar. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
Danos do lítio
O lítio é uma droga altamente tóxica que requer um monitoramento rigoroso do nível sérico. A FDA alerta que “a toxicidade do lítio pode ocorrer em doses próximas aos níveis terapêuticos”|437|. Este fato foi ignorado em um manual didático que afirmava que o lítio é geralmente bem tolerado e que seus danos são poucos e bem conhecidos|18:115|. Se isso fosse verdade, é surpreendente que 40% dos pacientes interrompam o tratamento prematuramente, o que o livro mencionou na mesma página|18:115|.
Outro manual didático respeitou a evidência. Ele mencionou que os efeitos adversos mais comuns são polidipsia, poliúria, aumento de peso, tremor nas mãos, sintomas gastrointestinais como náusea, dispepsia e diarreia, edema leve e reações cutâneas, e que os danos mentais incômodos incluem dificuldade de concentração, memória afetada e diminuição da vitalidade e criatividade|17:662|. O livro observou que os danos a longo prazo são mais sérios: até 10% dos pacientes apresentam alterações morfológicas nos rins, 1% tem dano renal irreversível, e hipotireoidismo e teratogenicidade ocorrem em casos raros|17:662|. Um terceiro manual didático confirmou o risco de malformações|16:301|.
Nas bulas, pacientes e suas famílias são advertidos de que o paciente deve interromper a terapia com lítio e contatar o médico se experimentar diarreia, vômito, tremor, ataxia leve (não explicada, mesmo que poucos pacientes saibam que isso significa perda de controle sobre os movimentos corporais), sonolência ou fraqueza muscular. O risco de toxicidade do lítio aumenta em pacientes com doença renal ou cardiovascular, debilidade severa ou desidratação, ou depleção de sódio, e para pacientes que tomam drogas que podem afetar a função renal, como alguns anti-hipertensivos, diuréticos e anti-inflamatórios para artrite. Muitas drogas podem alterar os níveis séricos de lítio, o que torna seu uso seguro muito difícil|437|.
Existem outros danos sérios, por exemplo, o lítio pode causar distúrbios na condução cardíaca|16:299|. Um livro afirmou que a interrupção da terapia com lítio aumenta o risco de um novo episódio maníaco além do risco associado ao curso natural da doença antes da terapia com lítio|16:589|. Não houve referência a essa afirmação e – como em outras drogas psiquiátricas – é provável que o que se observa ao interromper o lítio sejam efeitos de abstinência e não recaída. A única referência relevante nesta seção não se referia ao lítio, mas a uma meta-análise em rede de drogas para psicose em pacientes com esquizofrenia|218|.
O lítio é semelhante a drogas para psicose em seus efeitos, que incluem embotamento emocional, apatia, declínio na função cognitiva e vidas empobrecidas com pouco contato social|5,135|. Pacientes que interrompem o lítio podem acabar pior do que nunca antes|3|, e o tempo até uma recaída após a retirada do lítio é várias vezes mais curto do que seria naturalmente|427|.
Assim como a depressão e a esquizofrenia, o transtorno bipolar parece ter tomado um curso mais crônico devido às drogas que estão sendo usadas. Anteriormente, cerca de um terço dos pacientes maníacos sofriam três ou mais episódios em suas vidas, mas agora são dois terços, e as drogas para depressão e para TDAH podem causar ciclos rápidos entre altos e baixos|5|.
A lista de danos sérios que o lítio pode causar é muito longa e assustadora,437 e não sabemos se o dano cerebral é reversível|11:204|. Esta não é uma droga que eu recomendaria a ninguém.
Drogas para psicose, antiepiléticas e ECT
Os manuais didáticos recomendavam que, em vez de lítio, poderia-se usar drogas atípicas para psicose ou antiepiléticos|16:297,18:241,19:220|. Um manual não recomendou o lítio como primeira escolha para mania, mas sim drogas para psicose, que poderiam ser combinados com benzodiazepínicos para evitar doses altas|18:114|. Duvido que haja um bom motivo para não usar benzodiazepínicos sozinhos, uma vez que a ideia de tratar a mania é acalmar o paciente, o que é uma questão de dosagem.
Este manual observou que pacientes com mania e depressão podem geralmente ser tratados de forma eficaz com drogas psicotrópicas “modernas”, que foram afirmadas como preventivas de recaída na maioria dos pacientes, mas não havia referência para essa afirmação|18:110|, o que é falso|438|. Mais adiante, foi especificado que drogas modernas significam drogas para psicose|18:116|.
Como observado anteriormente, “moderna” é um termo inadequado, pois sugere que as drogas mais novas são melhores que as antigas, o que raramente é o caso, e drogas para psicose não previnem nada, exceto permitir que os pacientes vivam vidas mais normais e produtivas. Este livro também afirmava que, com medicação, a maioria dos episódios maníacos acabava em 6-8 semanas, enquanto um episódio maníaco não tratado durava de alguns meses (na maioria das vezes) a vários anos|18:115|. Obviamente, essa afirmação não foi derivada de ensaios controlados por placebo.
Um manual didático observou que não há evidências para o uso de antiepiléticos no tratamento da depressão resistente|16:275|. O mesmo livro afirmou que o valproato tem um efeito antimaníaco bem documentado e que a lamotrigina é aprovada para profilaxia|16:302|. Não é surpreendente que os médicos acreditem que antiepiléticos funcionam para mania, pois tudo que derruba as pessoas “funciona” para mania. O principal efeito dos antiepiléticos é suprimir a responsividade emocional, entorpecendo e sedando as pessoas|135|.
Como a maioria das outras drogas psiquiátricas, os antiepiléticos são usados para praticamente tudo. Eu já vi muitos pacientes entrando na psiquiatria com uma variedade de diagnósticos iniciais – muito frequentemente depressão ou nada que qualifique para tratamento com drogas – todos terminando sendo prescritos um coquetel horrendo de drogas que inclui antiepiléticos. Os antiepiléticos não apenas sedam as pessoas, mas também podem torná-las maníacas|390,439| e, assim, dar aos pacientes um diagnóstico falso de bipolar.
A literatura de ensaios foi distorcida de maneira extrema. Para o gabapentina (Neurontin), por exemplo, houve relatos seletivos de ensaios e de análises estatísticas e resultados que aconteceram de ser positivos; os pacientes foram excluídos ou incluídos de maneira inadequada nas análises; e manipulações fizeram com que resultados negativos parecessem positivos|440,441|.
O viés já foi introduzido na fase de design, por exemplo, utilizando doses altas que levaram à falta de cegamento, embora a Pfizer reconhecesse que a falta de cegamento devido a eventos adversos poderia corromper a validade do estudo. A camada final de corrupção foi realizada por redatores fantasma e executivos da empresa: “Precisamos ter controle ‘editorial’”; “Os resultados, se positivos, serão… publicados;”; “‘Estamos usando uma agência médica para elaborar o artigo que mostraremos ao Dr. Reckless. Não estamos permitindo que ele o escreva sozinho.”
A gabapentina foi aprovada apenas para pessoas com epilepsia resistente ao tratamento, mas a Warner-Lambert, depois comprada pela Pfizer, promoveu-a ilegalmente e a vendeu para praticamente tudo, incluindo TDAH e transtorno bipolar|6:151|. Quase 90% dos influentes líderes de pensamento estavam dispostos a promover o gabapentina em reuniões depois de serem atualizados sobre as estratégias promocionais da empresa. Um executivo da empresa disse a um vendedor sobre “Neurontin para tudo… Não quero ouvir essa besteira sobre segurança”|442|. A empresa insistiu em pressionar os médicos a usar doses muito mais altas de Neurontin do que as aprovadas, o que significa mais mortes.
Em 2010, um júri considerou a Pfizer culpada de crime organizado e uma conspiração de extorsão|443|. Seis anos antes, a Pfizer pagou $430 milhões para resolver acusações de que promovia fraudulosamente o Neurontin para usos não aprovados|444|.
Vimos problemas semelhantes com outras drogas. Para a lamotrigina, sete grandes ensaios negativos permaneceram não publicados e invisíveis para o público, enquanto dois ensaios positivos foram publicados|7:193| As drogas para epilepsia têm muitos efeitos prejudiciais, por exemplo, 1 em cada 14 pacientes em uso de gabapentina (Neurontin) desenvolve ataxia|439|.
Um manual didático afirmou que alguns antiepiléticos podem ser usados para profilaxia do transtorno |18:242|. Não havia referências, mas revisões sistemáticas não parecem fornecer apoio a essa afirmação|445,446| Não achei que valeria a pena ir mais longe, já que os ensaios nessa área são de qualidade tão ruim que é uma grande tarefa fazer uma revisão sistemática de cada agente, e há muitas drogas antiepiléticas. Além disso, os antiepiléticas são tão tóxicos que duvido que seu uso possa ser justificado.
Um manual didático descreveu vários danos associados aos antiepiléticos|17:663|, mas não o mais importante, que é que essas drogas dobram o risco de suicídio. A bula da FDA para a pregabalina (comercializada com grande sucesso pela Pfizer sob o sedutor nome Lyrica) menciona uma meta-análise de 199 ensaios clínicos controlados por placebo de 11 antiepiléticos que mostrou uma razão de risco ajustada de 1.8 (1.2 a 2.7) para pensamentos ou comportamentos suicidas|390|.
Estabilizador de humor é um eufemismo que os psiquiatras nunca definiram. Eles geralmente se referem a drogas antiepiléticas e lítio. A Eli Lilly também chama olanzapina de estabilizador de humor|7|. o que é uma linguagem orwelliana. As drogas para psicose não estabilizam nada, mas sedam as pessoas, tornam-nas passivas e dificultam suas vidas normais. Este termo deve ser abandonado, pois é intensamente enganoso|113|.
Este manual admitiu 345 páginas depois que há poucas evidências para um efeito dos antiepiléticos, mas que, no entanto, são utilizados em certa medida|16:577|. Eu não recomendaria drogas antiepiléticas para qualquer transtorno mental.
Um livro afirmou que a ECT é a única monoterapia que é eficaz em mais de 60% dos pacientes|16:302|. Outro livro foi ainda mais longe e disse que 80% dos pacientes com depressão resistente ao tratamento responderam à ECT|17:360|, o que é uma afirmação sem sentido, pois não há grupo de controle.
Um manual afirmou que há um grande potencial em prevenir mais depressões e manias oferecendo uma combinação de drogas e psicoeducação assim que o diagnóstico de bipolar for feito|16:307|. Não há evidências confiáveis de que as drogas possam prevenir recaídas.
Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.
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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.
A entrevista que se segue dá a conhecer ao público de língua portuguesa a história de Peter Lehmann, figura central da luta pela emancipação e dignidade das pessoas com experiência de sofrimento psíquico severo e que entraram em contato com a psiquiatria. Lehmann transformou a sua experiência pessoal de crise e sofrimento numa vida dedicada à luta pela emancipação e dignidade das pessoas psiquiatrizadas e à procura de alternativas ao tratamento psiquiátrico convencional. A sua história confunde-se com a história do ativismo pelos direitos humanos dos sobreviventes da psiquiatria na Europa. Lehmann não só contribuiu para mudanças concretas no tratamento psiquiátrico, mas também ajudou a construir um movimento internacional que continua a lutar pelos direitos humanos em saúde mental e psiquiatria. A sua vida é um testemunho poderoso de como a adversidade pessoal pode ser transformada num movimento coletivo transformador.
Mad in Brasil, através do Mad in Portugal, apresenta aqui uma entrevista inédita com Peter Lehmann, trazendo ao público interessado um poderoso documento sobre a luta histórica pela dignidade no tratamento do sofrimento mental. Esta entrevista foi realizada em inglês em Berlim, a 27 de fevereiro de 2017, por Tiago Pires Marques. A sua transcrição foi corrigida e editada por Peter Lehmann e traduzida para português por Tiago Pires Marques. Todas as imagens foram cedidas por Peter Lehmann.
Primeiros anos: trauma coletivo, trauma pessoal
Tiago Pires Marques(TPM) – Obrigado, Peter Lehmann, pela entrevista que me concede. Gostaria de começar pedindo que me conte um pouco sobre você, contar a história da sua vida a partir do momento onde quiser começar.
Peter Lehmann (PL) – Ok… Venho da Floresta Negra (Alemanha). Nasci em Calw, na parte norte da Floresta Negra. É a parte onde nasceu o famoso escritor Hermann Hesse, o autor de “O Lobo das Estepes” e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1946. Este homem brincou nos mesmos lugares quando era criança 75 anos antes de mim, e depois esteve no mesmo manicômio [risos], com um diagnóstico semelhante.
Cresci numa época, logo após a Segunda Guerra Mundial, em que tive de lidar com pais que foram educados e socializados durante o nazismo de Hitler. Então, mesmo que não fossem fãs de Hitler, cresceram nesse período e não refletiram muito sobre a influência daquele terrível “Zeitgeist” (espírito do tempo) no desenvolvimento das suas personalidades. Então eu e outras pessoas tivemos de sofrer com uma educação frequentemente humilhante e violenta… outras pessoas desenvolveram-se melhor do que eu.
Eu não sobrevivi muito bem àquela educação, e especialmente não consegui construir uma, ah como diria, uma personalidade estável. Mas também tive experiências de ser amado. Não me tornei este homem normal. Então, por exemplo, fui à escola; concluí o liceu; recusei-me a ir para o exército; mudei-me de Estugarda, onde cresci, para Berlim, porque em Berlim naquela altura os jovens não podiam ser forçados a ser soldados. Então, nos anos 1960, muitos jovens foram para Berlim para se livrarem do exército. Casei-me com uma livreira e estudei pedagogia. Paralelamente aos meus estudos, trabalhei numa livraria que compramos. No final dos meus estudos, em meados dos anos 1970, encontrei-me em várias situações de conflito, às quais eu, claro, não era alheio. O nosso casamento terminou em divórcio depois de alguns anos… Tinha diferentes relações com mulheres ao mesmo tempo, uma disse estar grávida de mim, eu queria terminar os meus estudos, mas durante a tese final e pouco antes do exame final enlouqueci, fui internado no manicômio, quase morri com os neurolépticos administrados. Eles deixaram-me física e mentalmente incapacitado, um zumbi. Finalmente, fui expulso do manicômio, e depois de alguns meses parei com estes medicamentos traumatizantes, que eu deveria ter tomado pelo resto da minha vida, e recuperei-me. Contribuí com a minha história para o meu livro “Deixando os medicamentos psiquiátricos” (Coming off psychiatric drugs). Terminei os meus estudos. Foi uma sensação e tanto quando voltei à universidade! Acho que as pessoas me viam como um ser humano que regressa do submundo grego, o Hades.
Terminei os exames, e uma vez pediram-me para fazer um doutorado, que comecei, para dar aulas na universidade e dar palestras. Mas os alunos não estavam interessados no tema da psiquiatria e antipsiquiatria, então deixei a universidade. Primeiro, lutei contra a psiquiatria sozinho. Lutei pelo direito legal de consultar os registros, os meus próprios registros de tratamento. Tornei-me bastante conhecido. Estive na TV numa reportagem de 45 minutos sobre o meu caso. Então pessoas também críticas da psiquiatria entraram em contato comigo e fundamos em Berlim uma organização bastante radical de sobreviventes da psiquiatria. Depois fundei também organizações a nível nacional. Mas dentro do meu grupo de sobreviventes em Berlim, com o tempo, tornei-me um pouco um outsider, porque era muito conhecido, e quando as pessoas vinham com o seu “Oh é o Peter… Peter”, isso não era bom para o ambiente da organização. Paralelamente trabalhava no meu doutorado. Comecei a escrever e escrever. Num capítulo, em “O que podemos deduzir do modo de ação dos neurolépticos sobre a natureza da esquizofrenia”, percebi que muitos dos chamados efeitos secundários dos neurolépticos eram os efeitos principais definidos. Comecei a pensar que precisava escrever um livro e tornar essa percepção pública.
E assim um pequeno capítulo tornou-se um livro, e procurando uma editora acabei por fundar a minha própria editora, e escrevi livros, editei livros, vendi livros. Comecei um serviço de encomendas por correio. No nosso grupo de sobreviventes desenvolvemos também uma iniciativa para construir uma Casa de Fuga em Berlim, porque em 1982 tínhamos feito uma viagem aos Países Baixos e visitado em Amsterdã a Casa de Fuga de lá. E então queríamos ter também uma Casa de Fuga em Berlim, não a mesma, uma diferente, com a nossa própria abordagem. Finalmente, recebemos uma dádiva de 1 milhão de marcos alemães para comprar uma casa.
Depois de abrirmos a Casa de Fuga em 1996, após longas disputas com a Administração de Saúde do Senado de Berlim, fizemos um superavit financeiro nos primeiros anos devido à ótima utilização da casa, mas houve uma disputa sobre quem tinha o direito de decidir sobre o uso deste superavit. O grupo dividiu-se, e o grupo ao qual eu pertencia deixou a organização.
A Casa de Fuga em Berlim, Alemanha
Construímos outros grupos, por exemplo, para fazer investigação liderada por usuários e educação liderada por sobreviventes. E assim começávamos a fazer muitas coisas. Além dessas coisas, estava ocupado escrevendo livros, dando formação sobre o modo de ação e sobre efeitos tóxicos de medicamentos psiquiátricos, sobre maneiras de parar de tomá-los e sobre alternativas, também para psiquiatras e para equipas de tratamento comunitário, em diferentes países, e isto faço agora há 37 anos. Entretanto, só faço sessões de educação na Alemanha e na Grécia.
Uma coisa hilariante é que nunca terminei o meu doutorado, mas em 2010 recebi um doutorado honoris causa da Universidade de Tessalônica na Grécia pela minha investigação em questões de antipsiquiatria humanística, que me impediu de terminar o meu doutorado universitário. Em suma, finalmente consegui este doutorado.
Lehmann com Kostas Bairaktaris em Tessalônica, Grécia, 2010 (Foto: Takis Leontidis, FOTO GRECO)
TPM – Qual o momento-chave em que conseguiu se libertar da psiquiatria. Como conseguiu fazer isso?
PL – Oh, isto é estranho. Estava totalmente drogado com fluspirileno, um neuroléptico de depósito. Era um zumbi; já não conseguia fazer nada; já não me lavava nem me limpava nem tratava do cabelo nem me barbeava, por isso não era agradável de se ver, mas tinha uma amiga, e o marido dela era neurologista que tinha estudado naquela clínica, por isso já não podiam fazer comigo o que queriam, e finalmente me puseram na rua… Eu não queria deixar o manicômio, porque achava que já não seria capaz de fazer nada.
Me disseram para ir uma vez por semana para o que eles chamam de “pós-cuidados” para levar uma injeção. E disseram-me: “Se não vier a tempo para a injeção você terá uma recaída imediata”. Estava tão drogado que acreditei nisto, em toda esta confusão, era obediente, um bom doente sem vontade própria, por fim já não era capaz de fazer as coisas mais primitivas, cozinhar, cuidar da minha alimentação… Pode ler a história no capítulo do meu livro “Deixando os medicamentos psiquiátricos” (1).
Capa de “Deixando os Medicamentos Psiquiátricos”
TPM – Que idade tinha então?
PL – Tinha 27 anos.
TPM – E quem o apoiou nessa altura?
PL – Os meus pais tinham construído um quarto. Sabiam que tinham um filho mentalmente doente crônico de quem tinham de cuidar, e eu podia ficar lá pelo resto da minha vida. Podia trabalhar na pequena fábrica do meu pai. Eles acreditavam na medicina psiquiátrica, como a maioria das pessoas normais. O único apoio na minha decisão de descontinuar os neurolépticos recebi da minha amiga. Estivemos juntos desde o jardim de infância, tínhamos uma relação próxima. Mas quando parei os neurolépticos, recuperei da minha discinesia tardia e outros distúrbios físicos desapareceram, a minha apatia e a minha ideação suicida também. Sabe, os neurolépticos têm um forte efeito suicida intrínseco. Mesmo assim, quando disse aos meus pais que já não tomava os neurolépticos, fizeram uma grande pressão emocional para que tomasse estas substâncias novamente, porque acreditavam nos psiquiatras. Mas eu já estava tão forte novamente que disse: “Podem me bater até à morte. Nunca mais vou tomar estes medicamentos”. Um ano depois, quando me viram saudável e bem novamente, confessaram: “Como pudemos ser tão idiotas? Vimos o nosso filho quase morrer na nossa frente, sofrendo totalmente, e mesmo assim acreditamos nos psiquiatras”.
TPM – E o que te deu essa força?
PL – Hmm foi… oh… lembrei-me de alguns – alguns fatores da minha loucura quando percebi que era o homem mais importante na terra – para mim – sou o homem mais forte – para mim. Posso mudar o mundo. Então lembrei-me deste sentimento de força, ao qual os psiquiatras chamavam paranoia. Tinha escrito alguns documentos durante o meu estado de loucura que não se perderam!
TPM – Me Pergunto se você retirou essa força de fontes como a literatura, e se tem algumas referências importantes na literatura ou filosofia? Isso foi importante para você naquela altura?
PL – Antes de enlouquecer, estava mais ou menos num estado que agora seria chamado de fobia social. Tive uma espécie de iluminação quando enlouqueci, e isto teve a ver com diferentes relações com mulheres. Quando uma vez me senti subitamente amado e aceitei neste período extremamente estressante escrever a minha tese para a universidade, faltando poucas semanas, li literatura de Rosa Luxemburgo, “Reforma e Revolução”, veio-me à mente, pude identificar o enquadramento filosófico da minha tese. Claro que não escrevi sobre um processo revolucionário real, mas fui capaz de reconhecer a situação de conflito na tensão dialética entre reforma e revolução. Tinha encontrado um enquadramento filosófico…
Entre alternativas à psiquiatria e reformismo psiquiátrico
TPM – Peter, quando começou a procurar outras alternativas terapêuticas para além da psiquiatria?
PL – Este é um tema especial. Em 2016, tinhamos um grupo de trabalho no estado alemão da Renânia-Palatinado com três médicos-chefe de clínicas psiquiátricas. Nós éramos a organização regional de usuários e sobreviventes da psiquiatria, o psiquiatra crítico Volkmar Aderhold e eu. Juntos escrevemos uma brochura informativa sobre neurolépticos. Foi impressionante ver que opções não-psicofarmacológicas os psiquiatras podiam oferecer com boa vontade. A brochura com estas ofertas será incluída no livro “Retirada de medicamentos psicotrópicos prescritos”, que publicarei com Craig Newnes no próximo ano (2). A brochura em alemão, inglês, francês, polaco, espanhol, romeno, servo-croata, turco, russo e árabe pode ser vista na Internet (3). E no final desta folha informativa, é dito às pessoas que podem decidir livremente se aceitam os neurolépticos oferecidos, outros meios ou se querem ser deixadas em paz na ala psiquiátrica. Estas coisas já são aí oferecidas.
Claro que, mundialmente, existem também abordagens alternativas para pessoas com necessidades emocionais de natureza mais ou menos social, por exemplo como Soteria, o Diabasis, Diálogo Aberto, Albergue de Crise, e Windhorse com a sua referência a Edward Podvoll, que tristemente já faleceu. E estas são todas abordagens que são lideradas por usuários ou controladas por sobreviventes ou lideradas por psiquiatras com uma abordagem humanística, que não veem as alterações metabólicas como a única natureza dos problemas emocionais, mas crises causadas por traumas na infância ou experiências traumáticas, por exemplo. As principais questões destas alternativas não são a força, não são diagnósticos, não são medicamentos psiquiátricos. Devem permanecer sob controle das próprias pessoas. Por exemplo, John Perry, um psicanalista nos anos 1970 que tinha um projecto na Califórnia, disse que pessoas chamadas esquizofrênicas voltariam à normalidade em poucos dias se fossem apoiadas estando com elas. O mais importante era não haver força, não haver medicamentos, não haver diagnóstico. Em 2007, editei o livro “Alternativas à psiquiatria” (4) junto com Peter Stastny, um psiquiatra, sobre alternativas em todo o mundo.
Lehmann com Peter Stastny em 2006 em Berlim, Alemanha
Existem muitas abordagens funcionais nesse livro. Para voltar à sua pergunta, duvido que a psiquiatria seja algo terapêutico. Pelo menos não para mim. No primeiro manicômio onde estive, achei que precisava de ajuda de um psicólogo. Então pedi ajuda psicoterapêutica. Na verdade, ofereceram-me uma sessão individual com uma psicóloga. Contei-lhe como estava sofrendo terrivelmente com os neurolépticos. Não deveria ter feito isso. Os meus companheiros reclusos tinham me dito que no manicômio sempre se deve dizer aos psiquiatras que está ótimo e que nunca deve se queixar. Mas não me tinham avisado sobre os psicólogos. Em suma, a psicóloga passou a minha queixa aos psiquiatras, e eles não tiveram nada melhor para fazer do que aumentar a dose de neurolépticos imediatamente, drasticamente.
TPM – O que quer dizer com “sem força” quando fala das abordagens alternativas?
PL – Sem força, sem violência. Sem força, sem violência… as restrições, o tratamento compulsivo…
TPM – Ser algemado à cama…
PL – Sim. Especialmente mulheres com histórico de abuso sexual são novamente despidas à força, novamente amarradas à cama, experimentam novamente manipulação dos seus corpos. Claro que é uma retraumatização, e é absolutamente criminoso! E os medicamentos psiquiátricos também não devem ser administrados sem informação completa sobre os riscos envolvidos. Este tipo de violência informal é muito mais generalizado do que a violência formal explícita, mas é raramente criticado por organizações de direitos humanos. Mais cedo ou mais tarde publicarei um artigo sobre este escândalo mundial (5).
TPM – E quem foram os seus primeiros aliados na sua luta? Começou de forma solitária, mas depois teve aliados também?
PL – Ah. Desde o início… Travei esta luta para ter acesso aos meus próprios registos psiquiátricos, e nessa altura também estava ativo num movimento contra proprietários e as suas tentativas de modernização luxuosa, e por isso estava envolvido em política alternativa de esquerda. Quando comecei esta luta pelo direito de consultar os próprios registos psiquiátricos, contactei muitas organizações, organizações religiosas, Social Democratas, indivíduos de alto perfil, como David Cooper e Rudolf Bahro, e todos assinaram declarações de solidariedade.
TPM – Conheceu-os? David Cooper?
PL – Apenas trocamos correspondência, mas, infelizmente, ele morreu pouco depois. Depois tive contatos com outros sobreviventes, e ainda sou amigo das pessoas que conheci nessa altura. Em 1980, houve uma grande conferência sobre medicina alternativa em Berlim, onde conheci pessoas do estrangeiro, utilizadores e sobreviventes da psiquiatria, e pessoas que também estavam ativas na Alemanha contra a discriminação dos sem-teto e jovens em abrigos, e conheci Franco Basaglia, não sei se o conhece…
TPM – Sim, claro.
PL – E assim rapidamente fiquei ligado a muitos grupos e psiquiatras como Basaglia. Isto impediu-me de pensar que os psiquiatras são sempre os vilões porque sabia que também há alguns que dão apoio.
TPM – E na Alemanha, havia psiquiatras que davam apoio nessa altura?
PL – Na Alemanha?… essa é uma boa pergunta… Alguns assinaram uma declaração de apoio pelo direito de ter acesso aos próprios registos psiquiátricos. Mas alguns tentaram combinar este direito civil com uma abordagem terapêutica. Diziam “Sim, as pessoas devem ter o direito de ver os seus próprios registos para que possamos moldar o seu processo terapêutico e falar sobre a sua doença”. Klaus Dörner, um psiquiatra que era visto como progressista por muitas pessoas na Alemanha, exigia adicionalmente que deveria haver uma psiquiatria comunitária. Ele tentou usar a minha luta pelos direitos humanos para os seus interesses psiquiátricos vitais. Sabe, psiquiatria comunitária significa primeiro controle das pessoas para que tomem os seus medicamentos psiquiátricos e intervenção precoce se as pessoas puderem ficar loucas. Mas também houve alguns psiquiatras que me apoiaram quando escrevi o meu primeiro livro com informações médicas e explicações. Uma vez estive num debate televisivo onde os espectadores podiam ligar e fazer perguntas. Estava presente o antigo presidente da Associação Psiquiátrica Alemã, Rudolf Degkwitz, e uma pessoa ligou e perguntou a estas seis ou sete pessoas que estavam no estúdio: “Este haloperidol que é usado na União Soviética para torturar prisioneiros políticos é o mesmo que é usado sistematicamente nas casas de loucos alemãs?” Degkwitz respondeu curto e grosso “sim”.
Ambos rimos
PL – Não é realmente engraçado, eu sei. Fiquei impressionado. Infelizmente, ele já não vive. Mais tarde vi que ele escreveu livros sobre drogas psicotrópicas; manuais, onde dizia que neurolépticos e antidepressivos podem criar dependência fisiológica, produzem dependência física. Durante o fascismo de Hitler ele resistiu ao regime Nazi, foi um dos poucos psiquiatras que não seguiu o programa de assassinato em massa. A Gestapo o prendeu. Presumo que a libertação da Alemanha do fascismo de Hitler o salvou de ser executado. Demorou algum tempo para encontrar e ler a sua obra nas bibliotecas. Ele representava, de alguma forma, a psiquiatria mainstream, mas ao mesmo tempo saía dela.
TPM – Mas havia um movimento reformista muito forte dentro da psiquiatria, presumo.
PL – Acima de tudo, o movimento reformista quer tornar a psiquiatria melhor, MELHOR, MAIOR E MELHOR. Certamente há partes das reformas que são boas para os pacientes. Por exemplo, é mais agradável dormir num quarto pequeno do que num salão com 50 pacientes. E quem resistiria a ter quadros bonitos na parede? Mas muitos psiquiatras reformistas ainda sentem afinidade com a psiquiatria biológica, ou seja, psiquiatria mainstream. A psiquiatria mainstream, como é agora, é simplesmente um produto de dois séculos de reformas. Mas não em direção ao respeito pelos nossos direitos humanos, mas em direção à medicalização extensiva da sociedade e normalização química. Espero que nunca consigam.
TPM – Então esse movimento que mencionou primeiro, de sobreviventes, era realmente um movimento de base sem a ajuda da profissão psiquiátrica… Era um movimento que se chocava contra o sistema…
PL – Sim.
Os sobreviventes da psiquiatria e a crítica da “recuperação”
TPM – E na Alemanha isso começou mais ou menos na altura em que estava a sair da…
PL – Nós começamos.
TPM – Você começou, foi um dos primeiros…
PL – NÓS, nós éramos um grupo apenas de ex-pacientes. Antes de começarmos, havia um grupo em Colônia na parte ocidental da Alemanha, que também era crítico em relação à psiquiatria e lares de acolhimento. Era um grupo misto. Nos encontamos e houve troca… era também um movimento social. Foi apoiado por Heinrich Böll; conhece Heinrich Böll, o Vencedor do Prêmio Nobel da Literatura em 1972? Ele deu uma casa a esse grupo. Quando o nosso grupo em Berlim começou em 1980, desde o início tínhamos um foco importante nos efeitos prejudiciais dos medicamentos psiquiátricos. Esta era a nossa experiência de ligação. Este foco distinguiu-nos do grupo em Colônia… Fomos influenciados por eles, fomos influenciados por um grupo suíço. Não inventamos a luta antipsiquiátrica, mas integramos muitas influências.
TPM – Mas tenho a impressão de que na Europa, ou pelo menos na Europa continental, estes movimentos começaram um pouco mais tarde do que nos Estados Unidos, por exemplo.
PL – No Reino Unido começou no século XIX, na Alemanha também! [risos]
TPM – No século XIX?!
PL – Sim, no século XIX. E novamente após a Primeira Guerra Mundial havia um movimento na Alemanha contra a coerção psiquiátrica, mas claro que no fascismo os psiquiatras mataram toda a resistência. Após a Segunda Guerra Mundial, a resistência provavelmente começou primeiro nos EUA. Havia um grupo em torno de Leonard Roy Frank, David Oaks, Ted Chabasinski, Sally Zinman, etc., chamado Rede Contra a Violência Psiquiátrica [Network against Psychiatric Assault]. Eles começaram já nos anos 1970. Na Europa, por exemplo, na Dinamarca, Inglaterra e Holanda, as pessoas setornaram ativas durante os anos 1970, e em 1981 ou 1982 alguns ativistas encontraram-se em conferências da Saúde Mental Europa ou noutras oportunidades. Construíram uma estrutura informacional e mais tarde a Rede Europeia [European Network of Users and Survivors of Psychiatry].
TPM – Com os grupos de recuperação?
PL – Recuperação do chamado transtorno mental? Ou recuperação do tratamento psiquiátrico? Se não se fizer esta distinção, o termo recuperação torna-se arbitrário. Esconde os danos causados pelo tratamento psiquiátrico, não é?… A recuperação do tratamento psiquiátrico nunca é um tópico na compreensão mainstream da recuperação. Quanto à recuperação em geral, pode-se ver um aspeto positivo, nomeadamente que contém a ideia de melhoria, pois transmite esperança. É bom que, entretanto, não se esteja perdido para a vida quando se tem algo como psicose ou a chamada esquizofrenia, este tipo de diagnósticos, que acredite que pode se recuperar. Ou que pode se recuperar e viver dentro dos limites da doença diagnosticada. Se aceitar o conceito de transtornos psiquiátricos e os seus limites, então pode viver livremente dentro desses limites e ter uma boa vida. Mas, mais uma vez, a recuperação do tratamento não é o tema deles. E há o problema de viver livremente dentro de limites estabelecidos por uma ideologia psiquiátrica. Esta noção mainstream de recuperação remonta a 1937, quando Abraham Low do Instituto Psiquiátrico da Faculdade de Medicina da Universidade de Illinois em Chicago fundou a organização sem fins lucrativos Recovery, Inc. para pessoas com vários problemas psiquiátricos, como um conjunto de métodos e técnicas de autoajuda que são paralelos aos usados na terapia cognitiva. O objetivo do programa era aprender a lidar com as trivialidades angustiantes da vida cotidiana, com ajuda profissional. Tudo isso soa bem, mas o problema fundamental desta compreensão da recuperação é que ignora o tratamento médico-psiquiátrico. Low afirmou claramente que os medicamentos nunca deveriam ser discutidos, que deveriam permanecer no domínio do médico. Uma vez, num congresso nos EUA, encontrei uma reimpressão de um artigo antigo com esta informação (6). Muitas pessoas ainda se rendem a este paternalismo até hoje. Eu não.
TPM – Sim… É uma espécie de lema para a psiquiatria progressista agora, a recuperação…
PL – Mas excluem o tópico dos danos do tratamento da recuperação. Ok, é bonito, dizem que podes recuperar… Não podem fechar os olhos porque há tantos utilizadores e sobreviventes da psiquiatria que já não estão ligados ao manicômio e tomam as suas próprias decisões, fazem congressos; têm editoras e dizem que é um conto de fadas tolo que acaba como um idiota eventualmente quando recebe o diagnóstico de esquizofrenia, que tem de ser um paciente para toda a vida e engolir os comprimidos deles para sempre. Os psiquiatras já não podem negar totalmente estes fatos.
TPM – Deixe-me voltar aos anos 1980, tenho uma curiosidade histórica… Este movimento dos sobreviventes nos anos 1980 que estava crescendo, já está ligado internacionalmente ou era localmente situado? Como funcionava?
PL – Ok… O movimento é maníaco-depressivo, como muitas pessoas… (risos)… Então às vezes é forte e depois vai abaixo, e depois há lutas internas… É uma questão difícil: O que é o movimento? Qual é a direção? E qual é o conteúdo? Quais são os objetivos? … Para algumas pessoas sou um amigo da tortura psiquiátrica porque discuto com psiquiatras, e para mim, algumas pessoas são idiotas porque dizem que com a abolição da psiquiatria todos os problemas relacionados ao sofrimento emocional estão resolvidos. Também, quando defines antipsiquiatria chegas a mil significados diferentes, é uma entidade muito maior do que um simples “contra”. O termo vem do grego e significa também “além de” ou “alternativa”. Há pessoas que só se referem ao tratamento formal forçado. Para eles, os milhões de pessoas que morrem do tratamento recebido sem força não são um tópico. Há alguns tópicos que partilhamos e alguns tópicos que nos dividem. Muitas vezes já não sei realmente o que é que as pessoas chamam “o movimento”. Então, por mim, posso falar do meu movimento. Tornou-se o projeto da minha vida: a conquista dos plenos direitos humanos e apoio apropriado para pessoas com problemas psiquiátricos. Tenho ligações com pessoas especiais com quem posso cooperar, sobreviventes, médicos, também psiquiatras, advogados… Para mim isto é o meu movimento. Cooperação com pessoas com opções semelhantes para fazer algo se mover em direção aos direitos humanos e ao apoio apropriado.
As casas de fuga – alternativas de cuidados lideradas por ex-pacientes
TPM – Fala-me um pouco da Casa de Fuga de Berlim. Nasceu no final dos anos 1980, certo?
PL – Começamos em Berlim depois do nosso grupo local de sobreviventes e alguns apoiadores terem estado em Amesterdã numa conferência sobre alternativas em 1982. Lá visitamos uma casa de fuga. Não sabíamos que isso existia. Muitas vezes o nosso grupo tinha a experiência de que as pessoas estavam loucas e tentávamos apoiá-las, mas se as pessoas seguirem loucas ou maníacas uma noite, e a segunda noite, a terceira noite, mais cedo ou mais tarde você fica exausto. Os psiquiatras têm o dinheiro, têm as casas; têm equipamento; têm as instalações onde as pessoas podem ficar; são pagos e fazem as pessoas fugir. Nós não somos pagos pelo nosso apoio. Claro, percebemos as nossas limitações e então tivemos a ideia de ter fontes de apoio bem assumidas. Nesta altura, em Berlim, havia um movimento alternativo de esquerda com o lema “Somos cidadãos, pagamos impostos, queremos ter uma parte do dinheiro público para os nossos projetos”. E então desenvolvemos uma concessão de uma casa de fuga. Tínhamos um grupo misto em Berlim. Psicólogos críticos, estudantes, cuidadores, advogados… Uma estudante, Uta Wehde, escreveu uma tese sobre casas de fuga nos Países Baixos. Na verdade, ela aprendeu holandês, foi para lá, trabalhou numa casa de fuga, trouxe de volta as suas experiências. Publiquei a tese dela na minha editora (7). E eu tinha toda a informação sobre Soteria na Califórnia. Tínhamos também informação sobre Diabasis, também na Califórnia. Misturamos estas abordagens correspondendo às nossas necessidades e construímos a nossa própria abordagem de casa de fuga. Originalmente havia duas concessões no nosso grupo: a primeira incluía uma equipa paga, as pessoas têm os seus empregos, trabalham dia e noite, alternando, e têm as suas férias, porque é um trabalho duro. A segunda vinha daquela parte do grupo que dizia “Oh, queremos ter uma casa onde vivemos com pessoas loucas. Se alguém fugir do manicômio, ele ou ela também pode ir para lá”. Mas era – como se pode chamar? – talvez uma forma contemplativa. Eles publicaram um breve artigo sobre os seus desejos, mas não fizeram nada mais. Finalmente, aquela parte do grupo com a concessão com equipa paga e assim por diante recebeu um cheque de um milhão de marcos alemães para comprar uma casa… sim… foi um conto de fadas, esta doação de um milhão de marcos.
TPM – De um financiador privado?
PL – De um pai cujo filho não sobreviveu ao manicômio. O pai recebeu uma herança quando os seus pais morreram. Ele tinha três milhões de marcos alemães e distribuiu-os por três projetos alternativos em Berlim. Ele fazia parte do nosso grupo, aquele com equipa paga e assim por diante. Não sabíamos que ele tinha muito dinheiro. Então aquela parte do grupo que favorecia a via contemplativa queria ter acesso à conta bancária, embora a doação não fosse para a sua concessão. A Direção da organização não lhes deu este acesso, além do fato de que o milhão não estava sequer na conta, mas tinha apenas sido garantido para a compra de uma casa. Então o grupo dividiu-se e construímos uma nova organização e a chamamos de Organização para a Proteção Contra a Violência Psiquiátrica [Organisation for Protection Against Psychiatric Assault]. No total, demorou 15 anos desde a primeira ideia de ter a casa de fuga e sete anos de luta desde a data da doação com a Administração de Saúde do Senado de Berlim até recebermos a licença para gerir a casa de fuga e a sua abertura em 1996.
TPM – E você ficou no primeiro grupo, o que implementou a casa…
PL – Eu estava no grupo que queria ter uma concessão com empregos pagos. Eu não queria trabalhar lá, mas para mim era claro que é um trabalho duro estar junto com pessoas loucas dia e noite sem drogas sedativas. As pessoas que trabalham lá têm de ter um rendimento. E resolver problemas sem ser pago que outros criam sendo pagos também não é a minha onda.
TPM – Certo.
PL – E estive na Direção durante os primeiros anos. Também tive de garantir empréstimos de mais de 100.000 marcos alemães com os meus bens pessoais, porque os salários e outros custos tinham de ser financiados antecipadamente através de empréstimos bancários, já que as autoridades só cumpriam as suas obrigações de pagamento após um atraso bastante longo.
TPM – E como foram os primeiros anos? Foi duro, imagino…
PL – Sim, foi um trabalho árduo, claramente, e alguns usuários/ sobreviventes abandonaram os seus empregos após um dia, após dois dias… Algumas pessoas nem sequer começaram a trabalhar lá porque quando se trabalha numa instituição formal como uma Casa de Fuga tem que enfrentar direitos civis ou deveres civis, não se pode dizer, quando um habitante da Casa de Fuga diz “Vou me matar”, “Sim, tem o direito de fazer isso”. Tem que se garantir a vida dessa pessoa. Isso significa que tem que fazer de tudo para que esse homem ou mulher não se mate. Você vai para a prisão se não impedir as pessoas de se matarem, se forem clientes na sua instituição. Portanto, a Casa de Fuga fez um bom trabalho e continua fazendo, um trabalho realmente bom, foi aceita e também apoiada por organizações psiquiátricas sociais, e não houve problemas, apenas com alguns vizinhos, porque eles tinham medo que o preço do terreno baixasse com a Casa de Fuga na vizinhança e talvez que pessoas loucas corressem pelas suas ruas e os massacrassem com facas como em ridículos filmes de Hitchcock. A casa está numa zona bastante burguesa, alguns vizinhos se juntaram com um democrata-cristão conservador [ri] para cancelar a licença, a nossa licença, foram à delegacia local e disseram: “Ah, nos digam alguns crimes que estas pessoas cometeram…” Mas a polícia respondeu “Eles fazem um bom trabalho”. Depois foram à administração psiquiátrica comunitária e tentaram o mesmo, mas as pessoas dessa administração também disseram: “Não podemos reclamar, eles fazem um bom trabalho.” Tudo correu bem, a casa ficou cada vez mais cheia ao longo do tempo. O financiamento foi calculado com 80% de utilização da capacidade, e quando estava cheia a 100%, fizemos um grande excedente. Mas depois começou uma luta sobre quem decide como usar esse dinheiro.
TPM – O dinheiro é sempre o grande culpado!
PL – Sim, muito triste, a nossa conversa se quebrou. Foi por volta de 2001, e a geração fundadora saiu. Agora há outras pessoas, a segunda ou terceira geração. Nós que saímos fundamos um novo grupo, chamado Em Qualquer Caso, e trabalhamos com investigação liderada por sobreviventes e formação complementar. Mas eramos um grupo pequeno. Depois uma mulher, Hannelore Klafki, que estava bastante ocupada, morreu de um aneurisma. Finalmente, eu era o único fazendo a formação. Era demasiado cansativo para mim. E uma mulher não quis entregar os resultados do trabalho de investigação bem pago sem receber dinheiro extra dos cofres da associação, embora tivesse concordado contratualmente em entregar o seu trabalho concluído na data acordada. Tínhamos pago a ela o salário acordado demasiado cedo e negligenciamos incluir uma penalização contratual no acordo de honorários caso não entregasse conforme o contrato. Perdemos o interesse em trabalhar mais e dissolvemos o Em Qualquer Caso.
TPM – E a Casa de Fuga era gerida apenas por sobreviventes?
PL – Não, não. Era uma organização mista desde o início. Nos estatutos, dizem que os sobreviventes têm direito de veto. Originalmente, 50% das pessoas empregadas deveriam ser utilizadores e sobreviventes da psiquiatria. Claro, a qualificação é diferente. Se é pago, referido como a qualificação formal, isso significa que se estudaste psicologia, recebe mais. Ao início, havia um equilíbrio financeiro interno. Havia e há diferentes empregos, empregos com segurança social, e empregos que são pagos como um trabalho honorário. Isso significa que não há dinheiro para pensões e direito a subsídio de desemprego. Havia um pagamento especial referente à experiência de anos de trabalho na Casa de Fuga, e também para pessoas com filhos. Entretanto, são os psicólogos que têm os empregos com segurança social, e o equilíbrio de pagamento já não existe. Claro, eles têm problemas em encontrar usuários e sobreviventes da psiquiatria para trabalhar lá porque é um trabalho duro e é melhor estar emocionalmente estável.
Lidando com as crises: alternativas ao manicómio
TPM – Peter, na Casa de Fuga, como é que se lidava com as crises dos usuários?
PL – À partida – quando não se usa força, quando não se discrimina com diagnósticos – não há grande razão para crises. E quando as pessoas não gostavam umas das outras, havia outro centro de crise para onde as pessoas podiam mudar… Mas as pessoas trazem agressão de outras experiências para a Casa de Fuga. Podem ser agressivas contra outros ou contra a equipa, e houve pessoas que foram expulsas. Também as pessoas loucas se podem comportar mal, neste aspecto não são tão diferentes das pessoas normais. Era difícil se não queriam sair porque a equipe não pode chamar o serviço psiquiátrico comunitário, isto não é possível… Talvez se possa chamar a polícia e dizer que as pessoas devem deixar a casa, temos o direito de decidir, por favor as levem com vocês. É um problema, e então a polícia tem de gerir este problema.
TPM – E as pessoas com ideação suicida forte? Alguém chegando muito deprimido e…
PL – Sim, a depressão… acho que não era o maior problema. Uma vez houve um problema com uma pessoa que era suicida e, tanto quanto sei, procuraram um psiquiatra; ele deu neurolépticos, e o homem foi para um lugar alto e saltou para a morte. Isto aconteceu uma vez… Os neurolépticos podem ter fortes efeitos suicidas intrínsecos, e em caso de tendências suicidas, administrar essas substâncias não parece a melhor ideia. Mas eu não conhecia este homem. Tenho de especular…
…Lembro-me que, uma vez num verão muito quente, há alguns anos… A casa é construída com muita madeira, e uma mulher fez fogo perto da parede da casa. Detectaram o fogo suficientemente cedo e o extinguiram. Foi dito à mulher que se acontecesse novamente teria de sair imediatamente. Ela fez novamente. Eu estava na Direção e a minha mulher trabalhava lá numa posição de liderança. Quando íamos de carro para o nosso jardim fora de Berlim, a minha mulher me disse “Oh, ela fez fogo novamente”. Dei meia-volta com o carro, liguei ao advogado, perguntei o que fazer, e ele disse: “Sim, és membro da Direção, tens o dever de cuidar da equipa e dos habitantes. A situação é clara. Diz à equipa para expulsar esta mulher imediatamente, porque é demasiado perigoso”. Mas a equipa não o fez. Então tive de repreender o membro responsável da equipe dizendo que perderia o emprego se ignorasse aquele perigo novamente. Claro que a equipe se solidarizou com esse membro. Eu estava na Direção, e eles não gostaram nada, mas eu não tinha o que fazer senão decidir junto com os outros membros da Direção desta forma.
TPM – Então ela foi expulsa?
PL – Ela não foi expulsa, mas a casa não ardeu…Talvez ela tenha saído ou… não me lembro, mas foi um grande problema e eu teria então de ir ao tribunal, fazer registos para estar seguro, e, claro, estava com medo pelas pessoas que trabalhavam lá e as pessoas que viviam lá.
TPM – Estava com medo?
PL – Claro! Claro! Quando há alguém que faz fogo repetidamente, era no pico do verão; era num período com um risco extremamente alto de incêndio… Sim, também temos estas coisas na Alemanha, não só em Portugal. Tinha de corresponder à minha responsabilidade, de cuidar de vidas lá, facilmente…
TPM – Havia algum grau de disciplina, afinal…
PL – Sim… Na verdade, todos deveriam fazer [riso]… Se algo acontece, e não se cuida, tem o risco de acabar na prisão. Não tem graça nenhuma. As pessoas podem morrer. Sei de um grupo de ativistas antipsiquiátricos em Colônia, eles podiam usar uma casa do vencedor do Prêmio Nobel, Heinrich Böll, onde ex-internados psiquiátricos podiam viver. Uma vez um deles ateou fogo, duas crianças de pessoas que trabalhavam lá morreram. O fogo é um grande problema também em manicômios o tempo todo, o fogo é um grande perigo. E este problema com a equipe da Casa de Fuga nunca foi resolvido. Eu era o que tinha que fazer o “trabalho sujo”.
TPM – E essa foi uma das causas para a divisão do grupo?
PL – Não, a divisão foi por causa do dinheiro. Quem decide na organização? As pessoas que construíram a organização, fizeram trabalho de relações públicas durante quinze anos, negociaram o contrato com o senado, garantiram financiamento público e assumiram total responsabilidade legal? Ou as pessoas que trabalham na casa, porque elas criam o dinheiro, como dizem. Finalmente, os trabalhadores tomaram o poder. Entretanto, as pessoas com educação acadêmica tinham empregos com segurança social completa. Esta é a minha impressão de fora. Às vezes ouço de pessoas que estão ligadas à Casa de Fuga o que se passa lá. Especialmente o meu amigo Ludger Bruckmann que era membro da Direção nessa organização informava-me de tempos a tempos.
Lehmann com Ludger Bruckmann (1947-2020) em 1984 em Berlim, Alemanha
TPM – Então, mudou bastante.
PL – Sim, em 2017, a Casa de Fuga tem mais de 20 anos. Mudou, e claro que a situação política também mudou. Durante todos os anos de preparação e nos primeiros anos após o início da Casa de Fuga, havia um grupo considerável de indivíduos, a que chamávamos “padrinhos”. Eles apoiavam a Casa de Fuga com pequenas doações regulares para financiar a lacuna que se desenvolve quando o financiamento não está completo. Por exemplo, algumas pessoas mudam-se para a casa e a equipa solicita o pagamento ao departamento social, mas este não paga. As pessoas ficam na casa, então o dinheiro tem de vir de algum lado. Por fim, esses padrinhos foram embora porque não eram cobertos com informação e solidariedade. Não digo que a organização da Casa de Fuga esteja agora isolada, mas nos anos anteriores, a ligação entre as pessoas progressistas do sistema de reforma era mais forte, por isso não era tão fácil atacar. Por exemplo, além do Conselho, tínhamos o Conselho Consultivo. Um membro era o Presidente da Organização de Médicos de Berlim. Tínhamos advogados, e esses membros do Conselho Consultivo nos acompanhava nas negociações com a Administração de Saúde do Senado de Berlim para nos apoiar. Eles já não estão lá.
TPM – Há experiências semelhantes em outros países. Sei que há uma na Suécia, o Hotel Magnus Stenbock…
PL – … que também mudou. Também foi assumido pela segurança social… Não sei se estou correto. Eles tiveram problemas com o sistema de financiamento. Em 2004, tiveram de se adaptar às regras complicadas da União Europeia relativas a contratantes. Foi uma pena, então…
TPM – É comparável à Casa de Fuga? Funcionava da mesma maneira?
PL – Pode ler sobre isso no livro “Alternativas Além da Psiquiatria”. Há um capítulo sobre a Casa de Fuga de Berlim (8) e há um capítulo de Maths Jesperson sobre o Hotel Magnus Stenbock em Helsingborg (9). É um pouco diferente: É um hotel, ou enquanto existia, era um hotel, não uma Casa de Fuga. Podia-se fazer check-in no hotel, mas não era preciso fazer check-out [risos]. As pessoas podiam ficar e viver lá, outros utilizadores e sobreviventes da psiquiatria trabalhavam lá. A administração local viu que é mais barato ter as pessoas lá do que ter de pagar e financiá-las individualmente em casas protegidas dispendiosas.
Lehmann com Maths Jesperson 2014 numa reunião da ENUSP em Hillerød, Dinamarca
PL – Na Holanda, ainda pode haver uma ou duas, mas não têm pessoal pago. Isso significa que as pessoas que estudam podem trabalhar lá numa espécie de estágio, mas não se preocupam com os medicamentos psicotrópicos administrados. Os moradores têm de tratar deles com os seus médicos prescritores. Isso significa que as pessoas mudam do manicômio para a casa de fuga, podem ir para lá, e talvez seja mais fácil para elas, não tão controlado, mas depois têm de cozinhar e fazer as coisas sozinhas. Então, finalmente, muitas pessoas voltam para o manicômio, porque no manicômio a comida é servida. Isto é o que eu ouvi. E se estiver sob a influência de medicamentos psicotrópicos que alteram a personalidade, é difícil ficar na casa de fuga ou em qualquer outro lugar onde se tenha de cuidar de si mesmo. Não ouvi nada nos últimos anos sobre as casas de fuga holandesas em Amesterdã e Utreque. Acho que são as únicas duas que ainda existem, mas não tenho certeza.
TPM – E aquela na Holanda? A casa de fuga?
TPM – Mas a função da casa de fuga é fornecer um lar para pessoas, os chamados loucos?
PL – A função da Casa de Fuga de Berlim é dar abrigo a pessoas que fogem do manicômio, do tratamento forçado formal. Esta foi a ideia original. Quando negociamos com a Administração de Saúde do Senado de Berlim, eles disseram: “Não podemos pagar para este propósito porque teríamos então de admitir que vale a pena fugir dos nossos manicômios”. Após longas negociações, disseram: “Podemos pagar com base no fato de que as pessoas podem perder ou perderam o seu apartamento devido à loucura e não querem mais ficar na clínica ou viver na rua”. Esse foi o acordo substantivo com a Administração de Saúde. Este acordo nem sequer chamava casa de fuga à Casa de Fuga. A administração de saúde do Senado odiava essa palavra. Como compromisso, a chamamos de “Villa Stöckle”, em honra de Tina Stöckle, um membro inicial, empenhada na Irren-Offensive, que também estava fortemente empenhada na visão da Casa de Fuga, e que morreu em 1992.
Tina Stöckle (1948-1992) em Chihuahua, México, em 1987
O acordo também tinha uma vantagem. Quando os residentes se candidatavam ao seu próprio apartamento, não tinham de dar “Weglaufhaus” [Casa de Fuga] como seu endereço, mas podiam usar “Villa Stöckle”, assim não tinham de se identificar como pacientes psiquiátricos e estavam assim protegidos da discriminação habitual. E em público, claro, falávamos sempre da “Casa de Fuga” ou da “Casa de Fuga Villa Stöckle”.
Se os trabalhadores na Casa de Fuga sabem que as pessoas que chegam estão internadas numa clínica psiquiátrica por decisão judicial, elas não podem ficar na Casa de Fuga a menos que o tribunal decida retirar a decisão de internamento psiquiátrico involuntário. Quando as pessoas vinham para a Casa de Fuga e diziam “Oh, um juiz me internou”, os trabalhadores da Casa de Fuga tinham de ligar para o manicômio e dizer: “Agora este homem ou mulher está aqui. Concordam em ir ao tribunal e dizer que não há mais razão para tratamento involuntário?” A internação involuntária por lei exige que não haja outra possibilidade para o propósito pretendido, geralmente combinado com tratamento forçado. Mas agora há uma Casa de Fuga, segura, com pessoal, pessoal educado. Em geral, o psiquiatra dizia: “Ok, deixamos eles livres”. Às vezes diziam: “Não, não concordamos”. Então as pessoas tinham de fugir da Casa de Fuga antes que a polícia chegasse.
No início, em geral a administração social aceitava pagar por uma estadia de seis meses ou mais seis meses e até outros seis meses, porque as pessoas que vinham para a Casa de Fuga frequentemente retiravam os seus medicamentos psicotrópicos prescritos, o que podia levar tempo, e depois havia a questão da habitação, de recuperar os direitos civis, e talvez um emprego e assim por diante, e durante este tempo as pessoas podiam ficar na Casa de Fuga. Mas era diferente… Algumas pessoas só queriam estar lá e ir embora ou voltar para a rua, algumas a usavam como um suporte para encontrar um apartamento.
As redes internacionais de usuários e sobreviventes da psiquiatria
TPM – Peter, gostaria agora de trazer outro tópico, um lado muito importante do seu trabalho também, a rede internacional que começou nos anos 1990, a ENUSP [European Network of Users and Survivors of Psychiatry] Como começou? E quem eram os seus aliados?
PL – Quando nós começamos a organizar na Alemanha no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, não sabíamos nada do que se passava no estrangeiro. Quando comecei a minha luta para ter acesso aos meus registos de tratamento psiquiátrico, escrevi um artigo para uma pequena revista de esquerda, que se chamava “Arbeiterkampf”, que significa “Luta dos Trabalhadores”. Aí mencionei a Irren-Offensive – em português Ofensiva dos Lunáticos – que fundei em 1970 em Berlim juntamente com outros sobreviventes da psiquiatria. Havia uma mulher na Holanda, Dunya Breur, que veio para Berlim em 1981 porque estava escrevendo um livro sobre a história da sua mãe, que era uma sobrevivente do campo de concentração de Ravensbrück.
Lehmann com Dunya Breur (1942-2009) em Amesterdã, Holanda, por volta de 2005
Ela queria entrevistar outra sobrevivente de Ravensbrück. Dunya veio a Berlim – ela entendia o alemão – tinha lido o meu artigo no Arbeiterkampf e visitou aquele centro de comunicação onde a Irren-Offensive também tinha as suas reuniões. Entrei em contato com ela lá por acaso. Dunya estava ligada ao movimento americano, com Judi Chamberlin e outros ativistas.
Lehmann com Kerstin Kempker, Judi Chamberlin (1944-2010) & Gábor Gombos (1954-2022) 2000 em Nashville, Tennessee
O resultado deste encontro foi que houve uma ligação internacional aos EUA e à Holanda. Naquele país eles tinham o Clientenbond, em português, a União dos Clientes, que era então uma organização forte. Eles – ou outra organização, talvez as pessoas da Casa de Fuga de Amesterdã e os seus apoiadores – me convidaram para esta conferência sobre alternativas em novembro de 1982 na sua casa. Alguns membros do nosso grupo – tínhamos uma pequena caminhonete, uma doação da administração local de saúde em Berlim-Schöneberg que era liderada por um médico do partido Verde – conduziram até Amesterdã para esta conferência. Lá conhecemos pessoas da Dinamarca, da Inglaterra. Mantivemos esta ligação, antes do fax, antes da Internet e tudo, e nos reunimos à margem de conferências, que eram realizadas pela Mental Health Europe. A Mental Health Europe era então a seção europeia da Federação Mundial para a Saúde Mental e é uma associação europeia guarda-chuva de organizações não-governamentais nacionais que trabalham na área da saúde mental. Eles precisam da presença de usuários e sobreviventes da psiquiatria para obter financiamento da Comissão Europeia, e nós usamos estas possibilidades para nos encontrar à margem das suas reuniões. Reunimo-nos em Brighton, Inglaterra, reunimo-nos em Prato, Itália, e decidimos ter uma reunião de fundação em Zandvoort, Holanda. O governo holandês deu o dinheiro para a conferência. Havia intérpretes em diferentes línguas, e usámos as nossas ligações privadas para convidar pessoas de muitos países. Finalmente, 39 representantes de 16 países europeus participaram e fundaram a Rede Europeia de Usuários e Ex-Usuários em Saúde Mental, como se chamava no início.
A reunião de fundação da ENUSP em Zandvoort, Holanda, em 1991
TPM – E em que ano foi isso?
PL – Em 1991. Pode ler um capítulo sobre essa reunião, que escrevi em conjunto com o Maths Jesperson da Suécia. Este capítulo contém a “Declaração de Zandvoort sobre Interesses Comuns” no livro “Alternativas à Psiquiatria” (10).
TPM – E desde então a organização tem crescido?
PL – Desde então, a organização cresceu, cresceu e cresceu. A Direção devia organizar uma assembleia de membros de dois em dois anos, mas isto é difícil porque é preciso ter financiamento. Nos primeiros anos, o governo holandês deu dinheiro para estas reuniões e também para o secretário da Direção. Isto era um pouco estranho porque era a União de Usuários holandesa que decidia sobre o secretário da Direção da Rede Europeia e não os nossos membros da Direção. Nós, quero dizer, a Direção da Rede Europeia – não tínhamos influência. Havia uma tensão, mas mesmo assim funcionou mais ou menos bem. Podíamos estar ativos a nível internacional e tivemos algumas conferências. Pode ler tudo neste capítulo…
TPM – A fundação da Rede foi então financiada pelo governo holandês?
PL – A reunião de fundação da Rede Europeia foi financiada pelo governo holandês, o seu secretário também. Mais tarde eles disseram: “Por que razão sempre nós, por que não outro governo nacional?” E nos anos seguintes, às vezes quando um governo nacional de um Estado-membro da União Europeia tinha a liderança – sabe, muda a cada meio ano – então havia um pouco de dinheiro. Por vezes o governo dinamarquês dava dinheiro, o movimento dinamarquês é forte e bem conectado. Eles conseguiram o dinheiro para as reuniões de membros.
TPM – Vi que a ENUSP está sediada em Copenhague.
PL – Agora estão sediados lá. Falo agora “deles”, porque entretanto tornei-me apenas um membro individual. Uma vez a reunião de membros foi em Tessalônica, Grécia, de outra vez foi no Luxemburgo, outra em Reading, Inglaterra, e outra ainda em Vejle, Dinamarca. Foi sempre um problema obter financiamento da Comissão Europeia. Por um lado, eles deviam pagar pela organização de pessoas com trastornos mentais ou com diagnósticos psiquiátricos, mas dão sempre o dinheiro à Mental Health Europe, que é uma associação de grupos de profissionais. Somos apenas um apêndice da Mental Health Europe. Eles ficam com todo o dinheiro e nos dão um pouco, mas todo o dinheiro devia ser nosso. Eles ficam com o nosso dinheiro. Mas temos de ser simpáticos, manter uma ligação amigável, caso contrário não receberíamos nada deles.
TPM – É gerida por psiquiatras?
PL – Não, não por psiquiatras, mas para psiquiatras, ou por profissionais… Não conheço a situação atual. Em 1997, me adotaram como membro da Direção por três anos. Eu era o Presidente da Rede Europeia nessa altura. A Mental Health Europe recebe bastante dinheiro da Comissão Europeia. A sua Direção faz reuniões em lugares agradáveis [risos], refeições, e voos, são os médicos voadores… Por vezes também fazem coisas boas. Uma vez fizemos juntos uma investigação sobre a discriminação de pacientes psiquiátricos na área médica e propusemos medidas para combater a discriminação (11). Claro que eles são mais fortes do que as organizações de usuários e sobreviventes da psiquiatria; têm mais dinheiro para cofinanciar programas. Mas eles ficam com o dinheiro. Têm o seu escritório em Bruxelas, onde está sediada a Comissão Europeia. Uma vez estava discutindo com uma mulher da Comissão e disse: “Sim, para eles é fácil, vocês têm uma ligação próxima com eles”, mas ela contradisse indignada: “Não, somos muito neutros”. Para mim, é claro que a Mental Health Europe fica com o dinheiro mesmo quando há programas que são claramente dirigidos para organizações de pacientes psiquiátricos. Não é diferente de qualquer outro lugar, sim, o dinheiro não chega às pessoas para quem é realmente destinado.
TPM – Há mais algumas organizações internacionais de usuários e sobreviventes da psiquiatria?
PL – Sim, a Rede Mundial de Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria. Outra é a GAMIAN. Esta sigla significa Rede Global de Defesa dos Doentes Mentais. É financiada pela Bristol-Myers, uma empresa farmacêutica em Londres. A GAMIAN recebe muito dinheiro de empresas farmacêuticas, por exemplo, da GlaxoSmithKline, Eli Lilly Benelux, Organon, Pfizer Janssen, Lundbeck, Otsuka e Shire (12). Quando os membros da sua Direção se reúnem, pelo que ouvi, encontram-se nos hotéis mais caros. São dominados por profissionais, podem ter um paciente psiquiátrico como testa de ferro na sua direção, fingem representar os interesses dos pacientes psiquiátricos atuais e antigos a nível mundial, e são frequentemente convidados para conferências internacionais. Irritante.
TPM – E a Intervoice?
PL – A Intervoice é para pessoas que ouvem vozes, foi fundada pelo Marius Romme. Há também usuários e sobreviventes da psiquiatria, o Ron Coleman de Inglaterra é o mais conhecido. O Marius Romme tem também um capítulo no livro “Alternativas à Psiquiatria” junto com a sua colega Sandra Escher (13). Sim, mas eles se comportam de forma bastante apolítica, pelo menos a organização de Ouvidores de Vozes na Alemanha, eles não lidam com o chamado transtorno mental, eles ouvem vozes, não há muita solidariedade com outros sobreviventes da psiquiatria, por exemplo, com pessoas que veem imagens e visões ou sentem perseguição. Eles lidam com ouvir vozes, lidar com vozes, com psicoterapia. Direitos humanos não são o seu tema. Se eu estiver errado e eles mudaram, ficaria feliz.
TPM – E encontrei outra, chamada Hamlet Trust. Conhece?
PL – A Hamlet Trust não é uma organização de usuários e sobreviventes da psiquiatria. Eles apoiam o desenvolvimento de iniciativas de saúde mental baseadas na comunidade e lideradas por usuários em países em desenvolvimento.
TPM – Ainda está funcionando?
PL – Saí da Direção da Rede Europeia em 2010. Pelo que sei, a Hamlet Trust está apoiando bem a Rede Europeia, mas não estou atualizado.
TPM – A Rede Europeia tem uma ligação com os americanos, como a MindFreedom International?
PL – Sim, David Oaks era secretário-geral da MindFreedom, esteve em Berlim, reuniu-se com o Conselho da Rede Europeia e perguntou se a Rede quer tornar-se membro da MindFreedom. Perguntámos, como podemos estar envolvidos nos processos de tomada de decisão? Ele não conseguiu responder a esta pergunta. David é um homem brilhante, mas não conseguiu explicar os seus processos de tomada de decisão. Então, devido à falta de transparência para nós, não havia base para nos juntarmos a eles.
Lehmann com David Oaks 2000 em Nashville, Tennessee
Psiquiatria e Direitos Humanos
TPM – Estamos em Berlim, e eu percebi que a Casa de Fuga foi fundada próximo da queda do muro de Berlim…
PL – Isso foi em 1989.
TPM – Tens alguma recordação dessa época? A Casa de Fuga tinha pessoas vindas dos dois lados de Berlim?
PL – Quando ainda havia um muro, pessoas da Alemanha Oriental podiam atravessar a fronteira para Berlim Ocidental, usuários e sobreviventes da psiquiatria, para nos visitar, quando eram reformados ou reformados antecipadamente. Podiam sair da RDA, pois o seu governo queria se livrar deles. Também levamos material antipsiquiátrico para Berlim Oriental. Isto era ilegal, tal como as suas reuniões na Alemanha Oriental também o eram, porque estas reuniões não eram anunciadas ao governo da RDA. Tinham sempre medo de serem presos quando se reuniam.
TPM – Havia uma grande diferença entre a psiquiatria praticada no Ocidente e no Oriente?
PL – Sim, no Oriente não tinham de lidar tanto com internações forçadas porque eram todos prisioneiros do seu governo [riso]. As pessoas não podiam fugir para muito longe. E as clínicas psiquiátricas não tinham tantas alas fechadas porque o seu Estado era um Estado fechado [riso]. Mas não tem graça. Para onde haveriam de fugir? E tudo estava sob controle lá fora, então… Lembro-me de declarações de ativistas da Alemanha Oriental do gênero “Sim, vocês têm o bom Haldol Ocidental, nós só temos o mau Haldol Oriental”. O bom Haldol! [Risos] Suponho que quando experimentaram o tratamento com o Haldol Ocidental, rapidamente aprenderam o contrário. Não há muito para rir.
TPM – E a psiquiatria mudou muito desde que teve contato com ela?
PL – Sim, há um grande retrocesso, eletrochoques por todo o lado, os medicamentos são mais tóxicos, a mortalidade sobe cada vez mais devido aos novos chamados atípicos, que são muito mais venenosos. E as taxas de internações forçadas sobem, tem a ver com o sistema psiquiátrico comunitário; o controle é maior; encontram pessoas a enlouquecer mais cedo, por isso muitas pessoas são internadas à força. A força informal não mudou, as pessoas têm de tomar medicamentos psicotrópicos sem informação adequada sobre riscos e alternativas, e continuam a ser enganadas sobre o perigo da dependência de medicamentos. É diferente de região para região, tem a ver com a abordagem de cada líder de cada conselho do manicômio. Há alguns poucos manicômios sem tratamento com força formalizado, e há manicômios com taxas enormes. Varia.
TPM – E em termos de direitos humanos?
PL – Em geral, os direitos humanos são violados na maioria das clínicas psiquiátricas, enfermarias, consultórios. Não em todo o lado, há poucas exceções. Na Alemanha não é diferente do resto do mundo. E, claro, a Organização Alemã de Psiquiatras ignora a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Não admitem qualquer violação dos direitos humanos. É sempre no estrangeiro, na Rússia, na China, mas não aqui na Alemanha.
TPM – É triste ouvir isto, depois de tantos anos de luta.
PL – O maior sucesso que tivemos na Alemanha, na minha opinião, é uma lei sobre diretivas antecipadas. Isso significa que as pessoas, independentemente dos seus diagnósticos, podem fazer uma diretiva antecipada e decidir que não querem ser tratadas com isto ou aquilo. Têm de fazer as suas declarações, claro, antecipadamente, por escrito, num estado lúcido. A Alemanha é o primeiro país no mundo onde este direito existe sem discriminação de pessoas com diagnósticos psiquiátricos (14). Não é preciso um parecer especializado de um psiquiatra para isto. Tínhamos começado em 1981, depois do nosso grupo receber um artigo de Thomas Szasz. Ele tinha adotado a ideia do economista libertário Walter Block, e este homem teve a ideia “Por que é que as pessoas que pensam que podem enlouquecer não escrevem uma espécie de testamento vital onde explicam como querem ser tratadas ou não?” Szasz escreveu um artigo, “O testamento psiquiátrico”. Eu tinha contato com ele, e ele nos enviou para tradução. O nosso grupo traduziu-o, depois também foi publicado na minha editora como um folheto. Distribuímos milhares de folhetos, e em 2009, de repente, o governo alemão, um governo conservador, decidiu por esta lei sobre a proteção de diretivas antecipadas. Felizmente, a Organização Alemã de Psiquiatras estava desorganizada nessa altura, por isso não perceberam. Finalmente, ficaram surpresos quando perceberam esta lei, mas funciona.
TPM – Vi no livro que menciona, “Alternativas à Psiquiatria”, que enfatiza a importância da Internet para a comunicação e para o tema da autoajuda. O livro foi publicado em 2007. Como avalia o uso da Internet? Cumpriu a sua promessa?
PL – O nosso grupo chamado Psychexit – fora do sistema psiquiátrico – está planejando desenvolver um novo site sobre apoio para deixar os medicamentos psiquiátricos. Há alguns bons sites em diferentes línguas. Começamos uma ronda de especialistas com psiquiatras, terapeutas, advogados, familiares, usuários e sobreviventes da psiquiatria, cuidadores e outros. Primeiro, queríamos desenvolver um currículo interativo para apoio competente na retirada. Depois decidimos fazer este currículo como um site, onde queríamos desenvolver e oferecer informação sobre como diferentes medicamentos podem ser retirados com baixo risco, e também com outros tópicos sobre deixar os medicamentos psiquiátricos. Deveria dizer melhor – medicamentos psicotrópicos – porque os médicos de clínica geral prescrevem a maioria deles. E temos uma reunião anual, recebemos financiamento de uma organização de assistência social de Berlim. A próxima reunião faremos na Charité Berlin, uma grande clínica universitária. Tínhamos convidado o diretor da sua clínica psiquiátrica, Andreas Heinz. Ele ofereceu as suas instalações inclusive o catering e participará novamente. Andreas Heinz será o Presidente da Organização Alemã de Psiquiatras em outubro. Ele ofereceu também um simpósio internacional sobre deixar os medicamentos psiquiátricos na conferência mundial de 2017 da Associação Mundial de Psiquiatria em Berlim. Eu vou liderar o simpósio junto com ele. Peter Gøtzsche do Instituto Internacional para a Retirada de Medicamentos Psiquiátricos também participará. Eu pude decidir sobre os meus participantes nesse simpósio. Um grupo radical e, a meu ver, dogmático de ativistas antipsiquiátricos fez um apelo para boicotar esta conferência.
TPM – É uma conferência pública?
PL – É a Associação Mundial de Psiquiatria [World Psychiatric Association – WPS]. Essas pessoas também tinham feito um apelo para boicotar a sua Conferência de 2007 em Dresden, Alemanha, onde Judi Chamberlin e também Dorothea Buck deram palestras principais. Dorothea é a fundadora e antiga presidente da Associação Alemã de Usuários e Sobreviventes da Psiquiatria. Agora é a Presidente Honorária. Ela sobreviveu à esterilização forçada durante o sistema de terror psiquiátrico na era nazi, depois eletrochoques. Pode ler a história da sua vida no seu capítulo “Setenta anos de coerção em instituições psiquiátricas, vividos e testemunhados” em “Alternativas à psiquiatria” (15). Dorothea tem 100 anos…
Dorothea Buck
TPM – Ainda está viva, mesmo?! Li o seu testemunho no livro.
PL – Ela ainda está viva, e fez um apelo público para que as pessoas fossem a essa conferência da WPA. E a Direção da organização alemã de usuários e sobreviventes da psiquiatria fez um apelo para boicotar essa conferência. Em Dresden, organizei um simpósio sobre alternativas à psiquiatria com os oradores Mary Nettle, Robert Whitaker e Peter Stastny.
Lehmann com Robert Whitaker 2016 em Phoenix, Arizona
Em Berlim vou organizar dois simpósios também com usuários e sobreviventes da psiquiatria como Laura Delano, Salam Gómez e Darby Penney. Vou dar uma palestra principal sobre como responder à redução catastrófica da expectativa de vida entre pacientes psiquiátricos. Eles vão boicotar.
Lehmann com Darby Penney (1952-2021), 2017, em Berlim, Alemanha
TPM – Porque o acusam de compactuar com o sistema?
PL – Sim, claro. Eles só falam sobre força psiquiátrica formal, não a informal. O webmaster da Casa de Fuga de Berlim me chamou “especialista em tratamento coercivo”, que procurava “formas de tortura controlada pelo usuário na psiquiatria”. (16, 17) A Direção da Casa de Fuga não se distanciou desta calúnia, mesmo depois eu pedi para o fazerem. Permaneceram em silêncio. Então fizeram. Me Pergunto se essas pessoas também vão comparecer no próximo simpósio por ocasião do 100º aniversário de Dorothea Buck em Hamburgo e protestar.
TPM – Eu gostaria de participar nesta conferência…
PL – Sim, é no dia 6 de abril de 2017 em Hamburgo como uma grande reunião pública. Sou um dos muitos oradores. Dorothea queria que eu estivesse lá, vou falar sobre psiquiatria sem violência. Tenho uma ligação de confiança com a Dorothea.
Produzindo outros saberes sobre os modos de lidar com o transtrono mental
TPM – Li no seu e-mail que gosta de receber ideias de países do Sul, da África, sobre como lidar com o chamado transtorno mental. Eles apresentaram modelos que podem ser interessantes.
PL – Sim, claro. Escrevi um capítulo sobre alternativas de tratamento aos medicamentos psiquiátricos, com particular referência a países de baixa e média renda, para o “Manual Routledge de Desenvolvimento Internacional, Saúde Mental e Bem-estar”, que será publicado pela Routledge (18). É sobre como alcançar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 3 das Nações Unidas, chamado “ODS3”, da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Exige que os estados melhorem o bem-estar dos cidadãos e combatam as doenças mais importantes que levam as pessoas à morte. Claro que se pode perguntar, quem são os alemães para dizer aos africanos o que devem fazer. Mas eles têm boas ideias. O mesmo na Ásia, por exemplo, em Pune, na Índia. Eles também têm boas ideias, podemos aprender uns com os outros. Quando escrevi este capítulo – e foi também a base para a minha palestra principal na conferência da WPA – perguntei por todo o mundo sobre métodos de trabalho para combater a reduzida expectativa de vida dos pacientes psiquiátricos. Assim, acabei por ter a informação de Bhargavi Davar sobre a sua organização Seher – “Aurora” em português – em Pune, que oferece apoio holístico para pessoas em sofrimento emocional. Também uma abordagem promissora da MindFreedom Ghana com apoio social e econômico, ajudando as pessoas simplesmente a sobreviver. Portanto, tenho alguns bons exemplos de como as pessoas psiquiatrizadas fora do mundo ocidental podem fazer.
TPM – Viajou para ver?
PL – Não! Por exemplo, fui convidado para Pune para participar na conferência da Rede Internacional para Alternativas e Recuperação em novembro de 2016. Eles queriam pagar os custos do voo, mas os outros custos eram enormes, 200 dólares por noite num hotel. 200 dólares uma noite. Perguntei-lhes se podiam organizar um hotel barato para mim, porque não preciso de um hotel de luxo, mas não conseguiram. Disseram-me que não eram capazes de reduzir os custos. Por isso não fui à Índia. Não tenho de ir a todo o lado.
TPM – Peter, uma última pergunta, sobre os saberes. Que novo tipo de conhecimento é que o movimento produziu? Saberes baseados na experiência?
PL – O movimento, a troca, produziu conhecimento de que há muitas pessoas com experiências importantes e pode-se aprender tanto com os outros, que têm ainda vidas diferentes, experiências diferentes. E pensar que você – com as suas próprias experiências, pequenas, limitadas e especialmente com poucos recursos – tem o conhecimento para resolver e compreender todos os problemas, é uma situação delicada. E o maior progresso que fiz, na minha opinião, vem dos muitos encontros com usuários e sobreviventes de todo o mundo. Podemos ter experiências semelhantes, podemos ter estado em manicômios ou ter sido tratados à força, formal ou informalmente, mas somos tão diferentes, nas nossas culturas, nas nossas opções, na forma como processamos as nossas experiências e nas consequências que tiramos… Ter o mesmo diagnóstico não significa nada.
TPM – Me parece que este conhecimento é valioso para além do domínio do transtorno mental. A sociedade, a sociedade em geral, pode aprender com estes movimentos e estou tentando pensar em formas de levar este tipo de conhecimento a outras áreas da vida.
PL – Sim, lutar para ter uma vida livre, melhores condições de vida, combater as violações dos direitos humanos, expressar e satisfazer as suas necessidades se não suprimir outros… Sim, as pessoas podem aprender conosco, mas isto não é novo.
TPM – Usou a palavra “louco”, como estar… alguém estava louco por um momento, pessoas loucas na Casa de Fuga… O que é a loucura, na sua opinião, ou estar louco?
PL – Com estes tópicos sutis, sinto que as minhas capacidades linguísticas não são suficientes para explicar. Loucura significa atravessar os limites da vida normal e limitada, e inclui quebrar correntes, mas também inclui riscos e perigos, claro. Mas sem saltos incivilizados para se desenvolverem, para muitas pessoas não há desenvolvimento da personalidade. Nos nossos estilos de vida e formas de perceber relacionados com a socialização cimentada há, dificilmente, alguma hipótese de nos libertarmos das restrições que adquiriram. Algumas pessoas falam sobre encontrar e libertar o “verdadeiro eu”, mas na minha opinião, o “eu padronizado” não é menos verdadeiro. Em qualquer caso, estou contente por ter deixado o meu “eu normal” para trás; mas teria dispensado de bom grado os maus-tratos psiquiátricos.
…Ou na depressão. As pessoas podem estar num círculo de exigências sobre o que devem fazer e funcionar e eventualmente, se as exigências são demasiado grandes, a alma reage e diz “Para, já não aguento mais”. Pessoas loucas ou deprimidas podem ser um sinal para a sociedade e dizer o que está errado. Karl Bach Jensen da Dinamarca escreveu um artigo extraordinário sobre esta questão para o meu livro “Deixar os medicamentos psiquiátricos” (19).
Lehmann com Karl Bach Jensen em Kolding, Dinamarca, por volta de 1994
TPM – Muito obrigado, Peter. Não vou tomar mais do seu tempo.
P.S. de 3 de novembro de 2024.
Já se passaram sete anos desde a entrevista. Aqui estão algumas atualizações:
1) Devido à falta de financiamento, a Psychexit não conseguiu desenvolver um website interativo para apoio competente na retirada de medicamentos psicotrópicos prescritos. Em 2022, a Psychexit terminou as suas conferências anuais de especialistas. Todas as informações estão disponíveis em www.absetzen.info e www.peter-lehmann.de/psychexit, mas apenas em alemão.
3) A celebração do 100º aniversário de Dorothea Buck realizou-se a 6 de abril de 2017 na Universidade de Hamburgo, sem problemas. A aniversariante participou através de ligação online. Dorothea Buck faleceu a 9 de outubro de 2019, aos 102 anos.
Referências
(1) Lehmann, Peter (2004): “Relapse into life” (pp. 47-56). Em: Peter Lehmann (ed.): “Coming off psychiatric drugs: Successful withdrawal from neuroleptics, antidepressants, lithium, carbamazepine and tranquilizers”. Berlin, Eugene & Shrewsbury: Peter Lehmann Publishing. Última edição atualizada do e-book: Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing 2024. Informação online em http://www.peter-lehmann-publishing.com/withdraw.htm. Edições em francês, alemão, grego e espanhol ver http://www.peter-lehmann-publishing.com/coming-off.htm
(2) Lehmann, Peter / Newnes, Craig (eds.) (2021): “Withdrawal from prescribed psychotropic drugs”. E-book. Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing. Última edição atualizada do e-book 2024. Informação online http://www.peter-lehmann-publishing.com/withdraw.htm. Edição impressa: Lancaster: Egalitarian Publishing 2023. Informação online em https://www.egalitarianpublishing.com/books/withdrawal.html / Edição alemã: “Psychopharmaka reduzieren und absetzen – Praxiskonzepte für Fachkräfte, Betroffene, Angehörige”. Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Antipsychiatrieverlag / Cologne: Psychiatrieverlag 2024. E-Book: Psychiatrieverlag 2004. Informação online em https://antipsychiatrieverlag.de/lehmann-newnes.htm / Edição espanhola: “Dejar los psicofármacos: Conceptos prácticos para profesionales, pacientes, familiares” (em preparação)
(4) Stastny, Peter / Lehmann, Peter (eds.) (2007): “Alternatives beyond psychiatry”. Berlin, Eugene & Shrewsbury: Peter Lehmann Publishing. Edição atualizada do e-book: “Alternatives beyond psychiatry. The great book of alternatives to psychiatry around the world”. Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing 2022. Informação online em http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives-beyond-psychiatry.htm / Informação sobre edições em alemão, grego e marata ver http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives.htm
(5) Lehmann, Peter (2024): “Psychiatry stripped naked: Current human rights violations in psychiatry in Germany, Greece and the rest of the world”. Em: Journal of Critical Psychology, Counselling and Psychotherapy, Vol. 24, pp. 16-37. Recurso online http://www.peter-lehmann-publishing.com/articles/lehmann/pdf/stripped-naked.pdf
(6) “The legacy of Chicago’s Abraham A. Low, MD: Recovery, Inc., an affordable mental health resource for patients” (2002). Reimpressão após Chicago Medicine, Vol. 105, No. 1
(7) Wehde, Uta (1991): “Das Weglaufhaus – Zufluchtsort für Psychiatrie-Betroffene. Erfahrungen, Konzeptionen, Probleme”. Berlin: Peter Lehmann Antipsychiatrieverlag. Informação online em http://www.peter-lehmann-publishing.com/books/wehde-e.htm
(8) Hartmann, Petra / Bräunling, Stefan (2007): “Finding strength together – The Berlin Runaway House” (pp. 188-199). Em: Peter Stastny / Peter Lehmann (eds.) (2007): “Alternatives beyond psychiatry”. Berlin, Eugene & Shrewsbury: Peter Lehmann Publishing. Edição atualizada do e-book: “Alternatives beyond psychiatry. The great book of alternatives to psychiatry around the world”. Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing 2022. Informação online em http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives-beyond-psychiatry.htm / Informação sobre edições em alemão, grego e marata ver http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives.htm
(9) Jesperson, Maths (2007): “Hotel Magnus Stenbock – A user-controlled house in Helsingborg, Sweden” (pp. 161-168). Em: Peter Stastny / Peter Lehmann (eds.): “Alternatives beyond psychiatry”. Berlin, Eugene & Shrewsbury: Peter Lehmann Publishing
(10) Lehmann, Peter / Jesperson, Maths (2007): “Self-help, difference in opinion and user control in the age of the Internet” (pp. 366-380). Em: Peter Stastny / Peter Lehmann (eds.): “Alternatives beyond psychiatry”. Berlin, Eugene & Shrewsbury: Peter Lehmann Publishing. Edição atualizada do e-book: “Alternatives beyond psychiatry. The great book of alternatives to psychiatry around the world”. Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing 2022. Informação online em http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives-beyond-psychiatry.htm / Informação sobre edições em alemão, grego e marata ver http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives.htm
(11) Action Project against “Harassment and Discrimination Faced by People with Mental Health Problems in the Field of Health Services”, organizado no âmbito do “‘Community Action Programme to Combat Discrimination in 2001-2006’ com apoio da União Europeia” (2005): “Recommendations to combat harassment and discrimination in health and mental health services” pela Mental Health Europe, LUCAS (Bélgica), Pro Mente Salzburg (Áustria), MIND (Inglaterra e País de Gales), Clientenbond (Países Baixos), FEAFES (Confederación Española de Agrupaciones de Familiares y Personas con Enfermedad Mental – Espanha), BPE (Bundesverband Psychiatrie-Erfahrener e.V. – Alemanha) e ENUSP (European Network of [ex-] Users and Survivors of Psychiatry). Recurso online http://www.peter-lehmann-publishing.com/articles/enusp/recommendations.htm
(13) Romme, Marius / Escher, Sandra (2007): “Intervoice – Accepting and making sense of hearing voices” (pp. 131-137). Em: Peter Stastny / Peter Lehmann (eds.): “Alternatives beyond psychiatry”. Berlin, Eugene & Shrewsbury: Peter Lehmann Publishing. Edição atualizada do e-book: “Alternatives beyond psychiatry. The great book of alternatives to psychiatry around the world”. Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing 2022. Informação online em http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives-beyond-psychiatry.htm / Informação sobre edições em alemão, grego e marata ver http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives.htm
(15) Buck-Zerchin, Dorothea S. (2007): “Seventy years of coercion in psychiatric institutions, experienced and witnessed” (pp. 19-28). Em: Peter Stastny / Peter Lehmann (eds.): “Alternatives beyond psychiatry”. Berlin, Eugene & Shrewsbury: Peter Lehmann Publishing. Edição atualizada do e-book: “Alternatives beyond psychiatry. The great book of alternatives to psychiatry around the world”. Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing 2022. Informação online em http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives-beyond-psychiatry.htm / Informação sobre edições em alemão, grego e marata ver http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives.htm
(18) Lehmann, Peter (2019): “Paradigm shift: Treatment alternatives to psychiatric drugs, with particular reference to low- and middle-income countries” (pp. 251-269). Em: Laura Davidson (ed.): “The Routledge Handbook of International Development, Mental Health and Wellbeing”. London & New York: Routledge. Recurso online http://www.peter-lehmann-publishing.com/articles/lehmann/pdf/sdg3-psychiatry-treatment-alternatives.pdf
(19) Bach Jensen, Karl (2004): “Detoxification – in the large and in the small: Towards a culture of respect” (pp. 303-309). Em: Peter Lehmann (ed.): “Coming off psychiatric drugs: Successful withdrawal from neuroleptics, antidepressants, lithium, carbamazepine and tranquilizers”. Berlin, Eugene & Shrewsbury: Peter Lehmann Publishing. Última edição atualizada do e-book: Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing 2024. Informação online em http://www.peter-lehmann-publishing.com/withdraw.htm. Edições em francês, alemão, grego e espanhol ver http://www.peter-lehmann-publishing.com/coming-off.htm
Os participantes do painel discutem a abordagem da Soteria para o tratamento da psicose, explorando as casas de Soteria existentes e os esforços para expandir sua disponibilidade. (Faça sua inscrições aqui)
Data e horário: Sábado, 22 de fevereiro, das 15h às 17h.
Localização: Online
Política de reembolso
Reembolsos até 1 dia antes do evento
A taxa da Eventbrite não é reembolsável.
Sobre este evento
O evento tem duração de 2 horas
Mad in America apresenta um painel de discussão especial:
O caso da soteria:Passado, presente e futuro
As evidências mostram que as casas de Soteria são um tratamento mais eficaz para a psicose do que o tratamento convencional – no entanto, há apenas uma nos Estados Unidos, que está operando com sucesso em Burlington, VT, há 9 anos.
Neste webinar, os participantes do painel da Soteria Vermont e de outros projetos da Soteria em andamento descreverão a abordagem da Soteria ao tratamento e o que a torna tão eficaz. Eles também contarão a história das casas da Soteria e compartilharão detalhes sobre a Soteria Vermont, a Soteria Alaska, que já esteve em funcionamento, e os esforços atuais para criar a Soteria Las Cruces. Por fim, os participantes do painel discutirão o que será necessário para expandir a disponibilidade de casas da Soteria nos EUA e tornar essa opção uma possibilidade para todos.
Ingresso único: $10 USD. Os fundos apoiarão o trabalho da Mad in America como uma organização sem fins lucrativos. Entendemos que nem todos podem arcar com essa despesa no momento. Digite o código soteria para obter um ingresso gratuito, conforme necessário.
OBTENHA ACESSO GRATUITO AOS EVENTOS! Como alternativa à compra de um único ingresso, você pode optar por se tornar um doador da MIA por US$ 5 por mês ou US$ 20 por ano. Todos os doadores ativos da MIA recebem acesso gratuito aos nossos eventos e acesso irrestrito ao nosso conteúdo. Consulte nossa página de doações para se inscrever. Uma vez inscrito como doador, você receberá um e-mail automático com seu código de acesso gratuito ao evento. Você digitará esse código no checkout da Eventbrite em vez de usar um cartão de crédito.
Faça uma pergunta: Se você quiser enviar uma pergunta para o painel, envie-a por e-mail para [email protected] pelo menos 48 horas antes do início do evento. Analisaremos todas as perguntas e escolheremos as mais relevantes para o público e o tópico. Haverá também a oportunidade de fazer perguntas durante a discussão. Obrigado!
Sobre os participantes do painel
Al Galves é psicólogo em Las Cruces, Novo México. Foi presidente da MindFreedom International e diretor executivo da International Society for Ethical Psychology and Psychiatry. Ele faz parte de um grupo que está criando uma casa de Soteria em Las Cruces. É autor do livro Harness Your Dark Side (New Horizon Press, 2010).
Susan Musante, MS, LPCC ajudou a desenvolver e foi a diretora fundadora da Soteria-Alaska, um modelo altamente eficaz para pessoas que vivenciam o que a maioria de nós rotula como psicose e usa pessoas com experiências semelhantes como apoio. Como a primeira diretora em tempo integral do CHOICES, uma alternativa ao tratamento ambulatorial convencional liderada por colegas, ela ajudou a desenvolver a força de trabalho de colegas no Alasca. Ela é educadora e defensora de apoios voluntários, informados e compassivos que funcionam. Suas atividades de consultoria concentram-se no treinamento e no desenvolvimento de programas para alternativas dirigidas à recuperação e fornecidas por colegas. Susan trabalhou em universidades, centros comunitários e serviços administrados por consumidores. Ela formou profissionais de nível superior e de nível de mestrado. Ela tem várias apresentações e publicações e, recentemente, foi convidada a falar na International Society for Psychosocial Approaches em Helsinque, Finlândia, e na New Mexico Behavioral Health Social Services Conference em Albuquerque. Seu compromisso é respeitar a “experiência vivida” e apoiar a recuperação e a saúde integral.
Gene Larkin esteve diretamente envolvido na Soteria House, primeiro como voluntário e depois como funcionário. Ele deixou a Soteria House para ir a São Francisco e ajudar a estabelecer o Diabasis, um programa de tratamento semelhante, de base junguiana, com o renomado psiquiatra junguiano John Weir Perry. Em 1974, foi trazido de volta por Alma Menn, diretora do Projeto Soteria, e Loren Moher, diretor do Center for the Research of Schizophrenia no NIMH, para estabelecer e se tornar o diretor do programa Emanon, o estudo de replicação da Soteria House financiado pelo NIMH. Em 1976, ele foi levado para os Programas Phoenix no Condado de Contra Costa, na área da baía, para ajudá-los a converter seus programas residenciais existentes nesse modelo de tratamento mais humano e eficaz. Em 1978, tornou-se Diretor Clínico de todos os Programas Phoenix e atuou como consultor de vários programas novos e culturalmente específicos. Esses programas incluíam Nyumba Chuki, um programa de tratamento residencial para afro-americanos em Richmond, Califórnia, e Casa Cecilio Chi, um programa de tratamento residencial para latinos em San Pablo, Califórnia.
Gene é membro de várias organizações sem fins lucrativos voltadas para o apoio e a promoção do Modelo de Soteria e atualmente está trabalhando para estabelecer uma Casa de Soteria em Las Cruces, Novo México. Além disso, seu livro de memórias pessoais, Seeking Soteria, Being in Process, sobre sua experiência na Soteria House e o que o levou até lá, está programado para ser publicado este ano.
Katie Bourque (ela/ele) está envolvida em trabalhos sem fins lucrativos há quinze anos e gerencia projetos e programas inovadores há nove anos. As paixões de Katie são o cuidado com o encarceramento, a redução de danos/riscos, a liberdade cognitiva e a centralização das vozes de pessoas com experiências vividas. Katie experimentou o poder da mutualidade e da cura coletiva com o apoio de colegas. Ela trabalhou com indivíduos encarcerados ou que já estiveram encarcerados por mais de uma década em prisões, hospitais e na comunidade. Katie tem experiência em vários ambientes residenciais, inclusive como diretora da Soteria Vermont por muitos anos e, mais recentemente, na Rosewood Cottage Peer Respite em Vermont, inaugurada no outono de 2024. Katie desempenhou um papel de liderança no espaço de apoio psicodélico aos colegas durante um ano e está particularmente interessada na ibogaína como ferramenta para pessoas que lutam contra os opiáceos. Ela oferece consultoria na Islândia há dois anos e atualmente atua como professora (e é ex-bolsista) da Lived Experience Transformational Leadership Academy da Universidade de Yale para o grupo de 2025 da Islândia. Katie se identifica com uma série de experiências vividas, incluindo: rótulos psiquiátricos, trauma, uso de substâncias pessoais e relacionais, encarceramento dos pais e tentativa de suicídio e morte de entes queridos. Katie deseja reformar os sistemas que perpetuam a opressão e criar espaços comunitários inclusivos e dinâmicos.
3d illustration of pawns over black background and a red circle with the text bipolar disorder. Mental illness concept.
Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele aborda o diagnóstico do transtorno bipolar, incluindo em crianças, e a ausência de evidências que comprovem qualquer benefício do lítio. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
Transtorno Bipolar
O centro de psiquiatria de base hospitalar em uma das cinco regiões da Dinamarca menciona em sua página inicial que “Drogas para transtorno bipolar – estabilizadores de humor – podem prevenir e curar a depressão, a mania e condições mistas na maioria das pessoas”|416|.
Isso é muito enganoso. Drogas psiquiátricas têm apenas efeitos sintomáticos. Elas não modificam a doença e não podem curar as pessoas; apenas podem atenuar alguns dos sintomas da dor emocional. Da mesma forma, aspirina não pode curar uma perna quebrada, apenas reduzir a dor física. Drogas psiquiátricas também não podem prevenir transtornos psiquiátricos.
Sobre o transtorno bipolar em crianças, um manual mencionou que o risco é aumentado se as crianças apresentarem sintomas hipomaníacos ou maníacos após o tratamento com uma pílula para depressão, e que há uma “relação familiar” entre TDAH e bipolar |19:216|.
Não está claro o que os autores quiseram dizer com isso, por exemplo, se é uma questão genética ou ambiental que eles descrevem. Eles não mencionaram que os danos das pílulas para TDAH são muito semelhantes aos critérios diagnósticos para o transtorno bipolar, e que muitas crianças, portanto, receberão um diagnóstico falso de bipolaridade que as prejudicará, pois serão tratadas com lítio, drogas para psicose e antiepilépticos.
Essas são omissões graves. Nos EUA, particularmente Joseph Biederman promoveu o diagnóstico de bipolaridade em crianças, que era virtualmente desconhecido há meio século atrás. Ele e seus colegas diagnosticaram transtorno bipolar em 23% de 128 crianças com TDAH e relataram isso em um artigo com o título sugestivo, Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e mania juvenil: uma comorbidade negligenciada|417|? Não há comorbidade negligenciada, apenas danos negligenciados.
Um manual mencionou que betabloqueadores, alfabloqueadores, prednisolona e citostáticos podem provocar e manter tanto mania quanto depressão|17:370. Em outro, o mesmo primeiro autor, Lars Kessing, observou que betabloqueadores, alfabloqueadores, hormônios do córtex adrenal e citostáticos podem desencadear e manter a mania; que, de acordo com a experiência clínica, pílulas para depressão podem desencadear mania durante o tratamento de depressão bipolar; e que a intoxicação com estimulantes centrais gera um quadro clínico que se assemelha confusamente à mania|16:292|.
Essas informações são seriamente enganosas. Kessing protegeu os interesses corporativos da psiquiatria. Ele deveria ter dito que pílulas para depressão e drogas para TDAH em dosagem usual podem causar mania ou hipomania quando administrados a qualquer pessoa (até mesmo a voluntários saudáveis).
O aumento dramático no número de pacientes diagnosticados com transtorno bipolar, anteriormente chamado de depressão maníaca, é uma catástrofe fabricada. Como observado acima, essa epidemia afetou particularmente as crianças nos Estados Unidos, onde a prevalência aumentou 35 vezes em apenas 17 anos.1 O fato de que médicos nos Estados Unidos fazem esse diagnóstico em crianças 100 vezes mais frequentemente do que no Reino Unido|418| também ilustra que se trata de um diagnóstico falso na maioria dos casos.
Um estudo nos EUA com quase 90.000 pacientes de 5 a 29 anos mostrou que o tratamento com pílulas para depressão causou uma taxa de conversão para bipolar de cerca de 5% ao ano.262 Uma revisão sistemática de estudos em crianças e adolescentes mostrou que 8% das pessoas tratadas com pílulas para depressão desenvolveram mania ou hipomania com a droga e apenas 0,2% com placebo.419 Uma revisão sistemática incluindo todas as idades também encontrou uma taxa de 8%.420 Como já mencionado, drogas para TDAH causam sintomas que são diagnosticados erroneamente como bipolaridade e também podem induzir transtorno bipolar, já que são estimulantes.
Lítio: nenhuma evidência confiável de que previne suicídio ou demência
Os manuais didáticos recomendam que pacientes com transtorno bipolar sejam sempre tratados com drogas estabilizadoras [sic] de humor (por exemplo, lítio)|17:371|, ou que sejam inicialmente tratados com lítio|16:297|, incluindo crianças a partir dos 12 anos|19:220|. Para depressão resistente ao tratamento, um manual observou que a combinação com outro tipo de droga foi melhor documentada para o lítio|16:275|.
Tentei descobrir se essas recomendações são baseadas em evidências sólidas, mas isso foi difícil, pois a maioria dos estudos e meta-análises é de baixa qualidade.
Uma das melhores meta-análises foi sobre a prevenção de recaídas no transtorno bipolar|421|. Os autores excluíram estudos que randomizaram pacientes para interromperem abruptamente o lítio no grupo placebo, o que foi prudente, pois os sintomas de interrupção abrupta do lítio podem ser graves|422-427|. Os autores relataram um efeito substancial do lítio continuado em recaídas, com razão de risco de 0,65 (0,50 a 0,84). No entanto, eles não relataram quais regimes de descontinuação foram usados nos ensaios para os randomizados para placebo, tornando impossível saber se havia um verdadeiro efeito na recaída ou se os estudos apenas mediram o que acontece quando pacientes no placebo são expostos a uma interrupção abrupta. Além disso, os critérios para recaída eram muito subjetivos, e esses estudos não são adequadamente cegados. Concordo com os autores quando observaram que “uma medida completamente imparcial da eficácia preventiva média exigiria o recrutamento de pacientes sem exposição ao lítio antes do estudo”.
Um livro afirmou que o lítio previne o comportamento suicida em crianças|19:220|, mas não há evidências confiáveis de que isso esteja correto|428|. Outro afirmou, sem especificar grupos etários, que estudos dinamarqueses e estrangeiros sugerem que o lítio previne o suicídio|16:306|, o que foi chamado de “efeito antissuicida único” 280 páginas adiante|16:586|.
Em um capítulo sobre transtornos afetivos, outro manual didático também afirmou que o lítio reduz o risco de suicídio, segundo um estudo estrangeiro e um dinamarquês|17:376|. O estudo estrangeiro não foi referenciado, mas provavelmente era uma meta-análise dos ensaios randomizados por Cipriani e colaboradores|429|, que não foi convincente. Em vez de referenciar esse estudo, um dos dois autores citou seu próprio estudo, embora fosse observacional|430|.
Foi relatado que a compra de lítio pelo menos duas vezes estava associada a uma redução pela metade da taxa de suicídio em comparação com a compra de lítio apenas uma vez, com uma taxa reduzida de 0,44 (0,28 a 0,70). Esse resultado é pouco confiável. Os autores observaram que “fatores individuais indefinidos associados à aceitação e adesão ao tratamento a longo prazo podem tender a selecionar um menor risco de suicídio durante o tratamento” e que “a não adesão pode estar associada, por exemplo, ao alcoolismo, dependência de drogas e transtornos de personalidade que, por si só, estão associados a um aumento no risco de suicídio”.
Além disso, a relação entre o número de prescrições e suicídio não era simples. Os autores notaram que “para homens, a taxa de suicídio foi maior para pacientes que compraram lítio de 2 a 5 vezes, enquanto pacientes que compraram lítio de 6 a 10 vezes, ou de 6 a 11 vezes ou mais, apresentaram taxas reduzidas em comparação com os que compraram lítio apenas uma vez.” Eles não apresentaram dados para essa curiosidade nem explicaram como se salta de uma compra para pelo menos 6 compras sem passar pelo território perigoso de 2 a 5 compras a caminho da segurança.
Mais importante, embora eles tenham mostrado dados para a mortalidade total, exceto suicídio, não disseram nada sobre eles. Somei os suicídios (23 vs. 79) às mortes por outras causas para obter as taxas de mortalidade total, que foram de 14,7% (198/1348) entre aqueles com apenas uma compra e 10,5% (1239/11838) entre aqueles com duas ou mais compras (P = 0,000006). Assim, o grupo com apenas uma compra teve um prognóstico extremamente pobre. Esse estudo é tão enganoso que nunca deveria ter sido publicado.
A alegação de que o lítio previne suicídios tem uma longa e complicada história. Um dos livros mencionou que o psiquiatra dinamarquês Mogens Schou incluiu placebo em seus estudos em 1954. Observou-se que 80% dos pacientes se recuperaram|17:910|, o que é enganoso, pois não leva em conta a recuperação no grupo placebo. Os autores observaram que Schou publicou seus resultados em |1967,431| que posteriormente foram criticados pela metodologia. Eles não revelaram quais foram os problemas.
A história do lítio começou um pouco antes dos estudos de Schou. O médico australiano John Cade administrou lítio a porquinhos-da-índia e observou que isso os tornava dóceis|5:183|. Em 1949, ele relatou ter tratado com sucesso dez pacientes maníacos com lítio. Mas ele esqueceu de mencionar em seu artigo publicado que matou um paciente e deixou dois outros gravemente doentes.
Em 2019, publiquei uma revisão sistemática com um psiquiatra sueco sobre os efeitos do lítio no suicídio e na mortalidade|428|. Estávamos incertos sobre se o lítio funcionava, enquanto líderes da psiquiatria não tinham essa incerteza. De acordo com as diretrizes de prática de 2003 da American Psychiatric Association, “há evidências fortes e consistentes em pacientes com transtorno bipolar recorrente e transtorno depressivo maior de que o tratamento de manutenção a longo prazo com sais de lítio está associado a grandes reduções no risco de suicídio e tentativas de suicídio.”
Uma revisão sistemática que incluiu 37 estudos observacionais e 8 ensaios randomizados atesta que o risco anual de suicídio foi de 0,4% com tratamento com lítio e de 2,6% sem lítio|433|. No entanto, havia uma probabilidade elevada de viés de indicação, como a falha em seguir o tratamento com lítio, que poderia estar associada a uma condição mais grave e com pior prognóstico.
Em uma revisão sistemática de 2013, Andrea Cipriani e colaboradores incluíram 48 ensaios, dos quais 24 eram controlados por placebo, e encontraram que o lítio reduz o suicídio em pessoas com transtornos de humor, com uma razão de chances de 0,13 (0,03 a 0,66) |429|.
Porém, os ensaios eram pequenos e houve apenas seis suicídios no total, todos no grupo placebo. Os autores destacaram que apenas um ou dois ensaios de tamanho moderado com resultados neutros ou negativos poderiam afetar materialmente os resultados deles. A estimativa para a mortalidade total também era incerta, com uma razão de chances de 0,38 (0,15 a 0,95), baseada em apenas 5 mortes nos grupos de lítio e 14 nos grupos de placebo.
Há outras razões para cautela. Conforme mencionado anteriormente, cerca de metade das mortes e metade dos suicídios em ensaios com drogas psiquiátricas foram omitidos nos relatórios publicados dos ensaios|125|. Para abordar esse problema, Cipriani e outros contataram todos os autores dos estudos e fabricantes. Relataram que informações não publicadas foram obtidas para “a maioria dos estudos”, o que foi importante para o desfecho de autoagressão intencional, para o qual nenhum benefício estatisticamente significativo foi encontrado. Não está claro se os poucos suicídios foram incluídos nesse desfecho e apenas um ensaio forneceu dados para ambos|434|. Cipriani e colaboradores não relataram se os contatos com autores e empresas resultaram em informações adicionais sobre mortes e suicídios; se todos os autores e fabricantes responderam; ou se consideraram que as respostas eram confiáveis e abrangentes.
Eles também não explicaram que incluíram ensaios onde os pacientes já estavam em tratamento com lítio antes de serem randomizados. A interrupção do lítio pode desencadear depressão e mania|422-427|. o que pode explicar o aumento do risco de suicídio após a retirada do lítio|426|. Um estudo observacional encontrou que o tempo médio para a recorrência da doença foi de 4 meses após a descontinuação abrupta do lítio (de 1 a 14 dias) e 20 meses após uma descontinuação mais gradual (15 a 30 dias)|425|, o que ainda foi rápido demais.
Os efeitos de retirada podem ocorrer rapidamente. Em um estudo com 18 pacientes eutímicos (17 com diagnóstico de transtorno bipolar e um com transtorno unipolar) que receberam lítio por 3 a 58 meses, um desenvolveu mania e dois desenvolveram depressão nos primeiros quatro dias após a descontinuação do lítio|422|. Outro estudo constatou que o número de atos suicidas por ano antes do início do lítio foi menor do que durante o primeiro ano após a descontinuação do lítio (2,3% versus 7,1%)|426|.
Havia problemas adicionais nos ensaios incluídos por Cipriani. Não está claro se os pacientes foram acompanhados após o término do ensaio e se eventos desse acompanhamento foram incluídos. Se as pessoas interrompem abruptamente o lítio, isso aumentará o risco de suicídio no grupo de lítio. Além disso, a revisão incluiu “estudos enriquecidos”, um eufemismo para ensaios falhos onde apenas pacientes que respondem ao lítio e o toleram são randomizados.
Incluímos 45 ensaios em nossa revisão onde nenhum dos pacientes estava usando lítio antes de serem randomizados para lítio (1978 pacientes) ou placebo (2083 pacientes). Eles cobriam uma ampla variedade de diagnósticos e fases dos transtornos, e alguns eram terapêuticos, outros sobre a prevenção de recaídas. Eles eram de qualidade muito baixa. Apenas quatro dos 45 ensaios elegíveis relataram dados sobre mortalidade total ou suicídios em um total de apenas |449| participantes; as causas das mortes não eram claras; e o risco de viés era alto ou incerto em todos os quatro ensaios.
Em um dos ensaios, houve diferenças pronunciadas na linha de base entre o grupo de lítio e o grupo placebo em relação a tentativas de suicídio anteriores e transtornos de personalidade. Com um truque estatístico notável e incorporando “anos de acompanhamento disponível” na análise, embora fosse um ensaio randomizado, os autores conseguiram transformar três suicídios contra nenhum em uma diferença estatisticamente significativa (P = 0,049). Usamos o teste exato de Fisher nos mesmos dados, que é a análise apropriada, e obtivemos P = 0,12. A mortalidade total foi significativamente menor no grupo de lítio do que no grupo placebo (dois contra nove óbitos, razão de chances 0,28, mas o intervalo de confiança de 95% era muito amplo, de 0,08 a 0,93). Se incluirmos mais quatro óbitos com lítio em um dos ensaios que excluímos de acordo com nosso protocolo porque não tinham comorbidade depressiva, a razão de chances foi de 0,70 (0,27 a 1,85). Apenas um estudo relatou suicídios (nenhum contra três); razão de chances 0,13 (0,01 a 1,27).
Que o lítio reduziu a mortalidade total, mas não os suicídios, é o oposto do que se esperaria se o lítio aliviasse os sintomas bipolares, especialmente a mania aguda, mas com danos somáticos. Nossos resultados podem estar relacionados ao fato de que baseamos nossa revisão em relatórios de ensaios publicados. Relatórios de estudos clínicos provavelmente não existem mais, pois o lítio é uma droga muita antiga. Perguntamos à EMA (European Medicines Agency – Agência Europeia de Medicamentos), que respondeu dez meses depois que eles não os tinham.
Os investigadores podem achar que não é importante relatar uma ou duas mortes com lítio, especialmente se acreditam que as mortes não estão relacionadas ao lítio e também porque os psiquiatras acreditam há muitos anos que o lítio salva vidas. Não podemos saber quantas mortes estavam faltando nos 41 ensaios com lítio onde não havia informações sobre óbitos.
A resposta para a pergunta se o lítio diminui o risco de suicídio e mortalidade total é: Não sabemos. Novos ensaios controlados por placebo são necessários com pacientes não tratados e sem nenhum período de adaptação onde todos os pacientes recebem lítio e se tornam estabilizados na droga. A titulação da dose deve ocorrer após a randomização.
Para manter o mascaramento, os valores plasmáticos de lítio devem permanecer ocultos para o médico que trata. Se não houver mascaramento, ou se houver mascaramento inadequado devido aos danos do lítio, o uso de outros tratamentos, por exemplo, drogas para psicose e eletrochoque, pode diferir nos dois grupos.
Os ensaios devem ser muito grandes, uma vez que o suicídio é um evento raro, e devem durar vários anos, pois o resultado pode ser influenciado pela duração do estudo. Se, por exemplo, o lítio reduz os sintomas maníacos, isso pode levar a menos acidentes com desfechos fatais, mas também a uma mortalidade mais alta a longo prazo devido à toxicidade do lítio. Além disso, para obter informações sobre os danos e efeitos clínicos de longo prazo do lítio, os ensaios devem terminar com um longo período de descontinuação, e os pacientes devem ser acompanhados por vários anos após a interrupção da droga ou placebo. Por fim, a análise dos dados e a redação do manuscrito devem ser realizadas em condições de ocultação para reduzir o risco de viés de relato;435 detalhes sobre as causas das mortes devem ser publicados; e todos os dados brutos e anonimizados dos pacientes devem ser disponibilizados gratuitamente para que outros pesquisadores possam verificar por conta própria se concordam com os autores.
O lítio faz mais bem do que mal? Não podemos usar os quatro ensaios que encontramos para responder a essa pergunta. Eles tiveram desfechos altamente subjetivos, como se os pacientes tiveram recaídas ou melhoraram em certa medida, e os ensaios devem ter sido mal mascarados, pois os danos do lítio são pronunciados. Se quisermos saber o que o lítio faz às pessoas, precisamos de grandes ensaios com algo no placebo que cause efeitos adversos, tornando mais difícil quebrar o mascaramento.
Um manual didático observou que o transtorno bipolar causa demência, que pode ser provavelmente prevenida com medicação, incluindo lítio, que possui propriedades neuroprotetoras|18:118|. Outro livro repetiu isso|16:294,16:586| e afirmou que o lítio parecia reduzir ou eliminar totalmente o risco de demência.16:294 Um terceiro alegou que estudos mais recentes indicam que o lítio tem um efeito protetor sobre as células cerebrais em pacientes bipolares|17:662|.
Não havia documentação para esse pensamento otimista.
Um livro afirmou que o efeito do lítio na mania aguda era certo|18:115|. Mas o que significa ter um efeito na mania aguda? Há uma revisão Cochrane sobre isso, que incluiu 36 ensaios.436 É um documento de 300 páginas, do tamanho de um livro, e há 390 análises. Isso é ciência Cochrane em seu pior estado. Considerando quão pouco confiáveis são os ensaios com drogas psiquiátricas e quão comum é o relato seletivo, isso é exagerado.
O lítio foi mais eficaz do que o placebo em induzir uma resposta, razão de chances 2,13 (1,73 a 2,63), mas foi menos eficaz do que a olanzapina, razão de chances 0,44 (0,20 a 0,94) e a risperidona, diferença média de 7,28 (5,22 a 9,34). A resposta é um resultado muito subjetivo e tendencioso em ensaios que não são adequadamente mascarados, e ser menos eficaz do que os tranquilizantes maiores, que não têm efeitos clinicamente relevantes na psicose, não é uma conclusão convincente.
Os autores da Cochrane protegeram o grupo psiquiátrico ao propagar a tolice que eu desmistifiquei anteriormente neste livro. Eles escreveram que o lítio é um agente neuroprotetor no cérebro que reduz a morte celular e aumenta o crescimento neuronal; que estudos de imagem funcional mostraram que pessoas tratadas com lítio têm um aumento global na matéria cinzenta, especialmente concentrada no córtex pré-frontal, amígdala e hipocampo, o que é importante porque o transtorno bipolar pode ser uma condição neurodegenerativa. Eles também afirmaram que o lítio reduz o risco de suicídio.
Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.
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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.
Há desafios éticos, morais e legais em andamento em torno da prescrição e descontinuação de medicamentos antipsicóticos — desafios que um novo artigo sugere que podem ser abordados pela lente da injustiça epistêmica.
Publicado no Community Mental Health Journal, o artigo argumenta que a injustiça epistêmica é um conceito útil para entender situações em que clientes e profissionais de saúde mental discordam sobre a descontinuação ou manutenção de medicamentos antipsicóticos.
A autora principal, Helene Speyer, psiquiatra e professora associada da Universidade de Copenhague, argumenta que entender a descontinuação de antipsicóticos pela lente da injustiça epistêmica pode transformar a maneira como clínicos e pacientes navegam nas decisões sobre medicamentos. Mas a perspectiva de Speyer não é apenas acadêmica — é profundamente pessoal.
Sua experiência pessoal com antipsicóticos embasa sua crítica a um sistema que frequentemente privilegia a autoridade clínica sobre a voz do paciente. A perspectiva dupla de Speyer como profissional e alguém que “já passou por isso” dá um peso único ao seu apelo por mudança. Os autores escrevem:
“As decisões sobre o tratamento de longo prazo com medicamentos antipsicóticos continuam complexas e carregadas de emoção, especialmente com a prioridade atual sobre os direitos do paciente, autonomia e tomada de decisão compartilhada. Argumentamos aqui que o debate atual sobre os riscos e benefícios associados aos medicamentos antipsicóticos pode ser analisado proveitosamente através das lentes da injustiça epistêmica.”
“Concluindo, argumentamos que ambos os lados do debate sobre a descontinuação da medicação devem abordar as questões sobre a medicação com humildade epistêmica. Não há respostas certas ou erradas claras, e as pessoas devem ter a oportunidade de fazer suas próprias escolhas em seu caminho pessoal para a recuperação, seja envolvendo escolhas para arriscar uma recaída ou medicação de longo prazo.”
Helene Speyer, MD, PhD, is a consultant psychiatrist and associate professor in the Department of Medicine at the University of Copenhagen, Denmark. Her research centers on shared decision-making, antipsychotic treatment, and strategies for medication dose reduction.Helene Speyer, MD, PhD, is a consultant psychiatrist and associate professor in the Department of Medicine at the University of Copenhagen, Denmark. Her research centers on shared decision-making, antipsychotic treatment, and strategies for medication dose reduction.
Helene Speyer, MD, PhD, é uma psiquiatra consultora e professora associada no Departamento de Medicina da Universidade de Copenhague, Dinamarca. A sua investigação centra-se na tomada de decisões compartilhada, no tratamento antipsicótico e em estratégias de redução da dose de medicação.
O conceito de injustiça epistêmica de Miranda Fricker se refere ao tratamento inadequado de indivíduos como conhecedores ou transmissores de conhecimento. Na psiquiatria, isso é frequentemente visto em estereótipos prejudiciais de pessoas com psicose, como rotular aqueles com esquizofrenia como perigosos ou sem “insight”, o que leva à desconfiança em sua capacidade de fornecer conhecimento confiável e fidedigno.
A discussão se concentra em como a injustiça epistêmica se manifesta quando preconceitos ou estereótipos injustificados sobre psicose influenciam o processo de tomada de decisão em relação à continuação ou descontinuação da medicação antipsicótica, que frequentemente é uma tomada de decisão não compartilhada.
Os autores elaboram as duas principais categorias de injustiça epistêmica de Fricker — testemunhal e hermenêutica — para destacar como essas formas de injustiça prejudicam a voz e a autonomia do paciente no contexto da psicose e do gerenciamento de medicamentos.
Injustiça testemunhal, neste caso, é quando uma pessoa diagnosticada com esquizofrenia recebe menor credibilidade em relação à sua decisão de interromper a medicação devido a um estereótipo negativo de que o indivíduo tem falta de percepção. Historicamente, desacordos sobre diagnósticos ou planos de tratamento entre clínicos e pacientes eram rotulados como “falta de percepção”, um termo que desvaloriza as perspectivas dos pacientes e cria injustiça testemunhal.
Apesar das diretrizes recomendarem a adesão de longo prazo aos antipsicóticos, muitos indivíduos optam por parar de tomar seus medicamentos devido aos efeitos colaterais e da percepção dos riscos. Os profissionais de saúde, no entanto, muitas vezes relutam em apoiar essa decisão, vendo-a como algo fora de seu julgamento clínico, deixando os pacientes navegarem nessa decisão sozinhos e permitindo que os clínicos não se reaponsabilizem alegando a decisão como sendo “contra o conselho médico”.
“A ideia de injustiça epistêmica encoraja os clínicos a pensar de maneiras mais matizadas e se perguntar se a relutância em apoiar e supervisionar as pessoas durante a redução gradual pode ser baseada em estereótipos negativos injustificados, como periculosidade, preconceitos sobre como é uma vida boa ou preconceito sobre cronicidade. Outra questão obscura pode ser as tensões entre clientes e profissionais médicos em sua disposição de assumir riscos. Embora correr o risco de uma recaída possa ser um passo importante no caminho da recuperação pessoal da perspectiva de um cliente, ser o clínico responsável em um processo que não segue as diretrizes e pode levar à piora clínica pode representar questões legais e morais.”
A injustiça hermenêutica ocorre quando a falta de validação do desejo de um indivíduo de interromper a medicação influencia a produção de conhecimento dominante em torno dos antipsicóticos e seu uso.
Há uma falta de orientação sobre a redução segura de medicamentos antipsicóticos em diretrizes clínicas, uma questão amplamente ignorada pela comunidade científica, que se concentrou em melhorar a adesão à medicação. Não houve ensaios comparando estratégias de redução gradual; no entanto, existem vários estudos sobre o início da medicação.
Os autores atribuem essa injustiça a uma agenda de pesquisa tendenciosa que prioriza a adesão e a manutenção da medicação, influenciada pelo domínio do modelo biomédico e estereótipos negativos sobre a cronicidade do transtorno mental.
Se a psiquiatria quiser se alinhar aos valores da tomada de decisão compartilhada e da saúde mental orientada para a recuperação, então deve estabelecer processos de redução gradual mais seguros, maneiras mais seguras de identificar aqueles que não precisam de medicação sem comprometer a saúde daqueles que precisam e educar os médicos sobre a diferença entre recaídas e sintomas de abstinência.
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Speyer, H., Eplov, L. F., & Roe, D. (2024). Descontinuação de antipsicóticos através da lente da injustiça epistêmica. Community Mental Health Journal. https://doi.org/10.1007/s10597-024-01274-7 (Link)
KYIV, UKRAINE - FEBRUARY 28, 2024 Social Media icons group on Galaxy A04s smartphone display on MacBook keyboard and US Dollar bills
No campo contemporâneo da saúde mental, o debate sobre o uso/abuso de telas assumiu proporções bastante significativas. As novas dinâmicas subjetivas, relacionais, familiares, sociais, políticas que se instauraram com a utilização em massa dos dispositivos tecnológicos, disponíveis em diferentes aplicativos, redes sociais, jogos, vídeos curtos, entre outros, complexificam ainda mais o multifacetado campo da saúde mental e demandam análises minuciosas.
A preocupação com a saúde metal é expressa basicamente por meio de um discurso forjado pela assim chamada “psiquiatria biológica”, termo vago para designar a abordagem da doença mental em termos de transtornos/déficits e distúrbios atribuídos ao funcionamento cerebral, bioquímico, verificáveis experimentalmente, tratáveis prioritariamente pela intervenção química de fármacos e, por alguns tipos de psicoterapias, cujo foco é a mudança no comportamento de modo geral.
O apelo cada vez mais intenso direcionado ao campo da saúde mental nas redes seduz ao mesmo tempo em que cria, orienta, indica inúmeros tratamentos, profissionais (com e sem formações) que adquirem autoridade com base apenas no número de seguidores, prescrevendo e proscrevendo condutas, manipulando discursos, assim como promovendo engajamentos, compartilhamentos, likes, transformando os diagnósticos psiquiátricos em produtos mercantilizáveis e comercializáveis.
A associação entre Facebook e Instagram promoveu o aumento e o incremento de um colossal mercado de serviços, onde a oferta-procura tornam-se tão ou mais imbrincadas do que estas plataformas. Dentre as variadíssimas ofertas de serviços e produção de informações dirigidas àqueles que se engajam na busca virtual por “saúde mental” e “bem-estar”, encontram-se profissionais das mais diferentes áreas do conhecimento, empresários, leigos, pessoas que se identificam com determinados transtornos, além das “autoridades” virtuais que enfatizam a necessidade de disseminar um determinado tipo de conhecimento que ela possui ou pensa possuir.
Vemos, assim, a memificação da psiquiatria e a trendificação de transtornos mentais, cujas raízes se alicerçam na tríade patologização – medicalização -mercantilização da existência.
As formas como se tem experienciado as vivências singulares, relacionais e coletivas tornam-se solo fecundo para a ampla e veloz disseminação da psiquiatria biológica associada à lógica de mercado, à criação de protocolos tanto por profissionais das áreas mais variadas, como por pessoas que propagam o consumo de diagnósticos e a venda/oferta de serviços especializados.
Entretanto, apesar de muito se falar sobre “saúde mental” e a área estar em alta nas redes sociais, como também nos campos midiáticos, este movimento não tem como contrapartida a valorização do campo. Têm sido instalados e fomentados, cada vez mais, discursos baseados no rastreio e identificações de transtornos e distúrbios, alguns (muitos) criados nas próprias narrativas que circulam nas redes, sem respaldo nem mesmo nos manuais de psiquiatria. Outros, ainda que se ancorem em algum ponto da perspectiva psiquiátrica biologicista e normativa, em determinado momento se descolam e passam a se orientar pelo discurso religioso, pelo senso comum, ou pelo “achismo” de cada um que se propõe a estabelecer generalizações, universalizações e um para-todos que tende a simplificar temas complexos.
A crise na saúde mental é composta por diversos fenômenos que ocorrem simultaneamente: sobrecarga, exigências de performance, individualismo, fragilidades, precarizações nos investimentos em saúde, nas relações interpessoais, competitividade, disputa, falta de espaço para a criatividade, para a subjetividade, a singularidade, aquilo que marca o sujeito e o faz um.
A forte presença do imaginário nas redes sociais mediatizada por (muitos) filtros, recortes e discursos que reafirmam ser possível a vida plena, repleta de “felicidade”, “sucesso”, “bem-estar”, extirpam um aspecto fundamental desta análise: o sujeito. O sujeito que fala, se angustia, sente, cria e tem seu próprio estilo de produzir saídas quando as coisas não vão bem.
Em um multiverso hiperconectado, através do qual são produzidos poderosos e eficientes discursos que orientam as dinâmicas relacionais e parecem construir as subjetividades contemporâneas imersas na sociedade de consumo neoliberal, observamos um campo fecundo para a expansão e o consumo da psiquiatria neurobiológica em seus múltiplos vieses.
As redes sociais virtuais e os aplicativos são utilizados como mecanismos para obter informações sobre estratégias que melhoram o bem-estar e qualidade de vida. Entretanto, a polaridade do uso das tecnologias e redes sociais é notável. A associação de tecnologia e saúde não é somente benéfica, os malefícios desse uso são evidenciados diante da quantidade excessiva de informações circulantes, a incerteza sobre essas informações e seu impacto na saúde mental de crianças, adolescentes e adultos.
A indústria da tecnologia está transformando não somente a vida dos adultos, como também das crianças, além da forma como a infância vem sendo concebida e tratada na atualidade.
Antes de 2009, a principal função das redes sociais era manter contato com os amigos, posto que havia menos recursos de feedback instantâneo que geravam repercussões, o que significava que eram menos “tóxicas” do que as redes que utilizamos hoje em dia.
Teve início há pouco mais de uma década, com um impacto significativo na subjetividade de adultos e crianças, o aumento do número de publicações de selfies, depois que as câmeras frontais passaram a ser acopladas aos smartphones (2010) e o Facebook comprou o Instagram (2012), o que fez a sua popularidade explodir. As grandes reconfigurações não envolvem apenas mudanças nas empresas de tecnologia, mas transformações sociais profundas que passaram a moldar os dias e as subjetividades das crianças e dos seus cuidadores (Haidt, 2024).
Torna-se importante lembrar que diversos atores sociais comopais e familiares, profissionais de diversas áreas, acadêmicos, gestores, as próprias pessoas que se identificam com as condições psiquiátricas citadas acima, entre outros ativistas,mobilizam ações, a partir de diferentes posições sobre os possíveis fatores etiológicos das patologias, mobilizam a descrição nosográfica dos transtornos e as metodologias supostamente eficazes para os respectivos tratamentos, assim como a organização de políticas de cuidado e o arcabouço legal de garantia de direitos (Oliveira, Feldman, Couto & Lima, 2017). Estes atores sociais participam de forma ativa na seleção dos conteúdos e na construção de métodos e técnicas que compreendem ser mais efetivos no tratamento.
Assim, verificamos a grande magnitude dos efeitos das redes sociais tanto na produção dos conteúdos (informações sobre as condições descritas nos manuais psiquiátricos), como nas ofertas de tratamento, serviços especializados, técnicas e práticas de cuidados (Nittas, Lun, Ehrler, Puhan & Mutsch, 2019).
As ofertas de “pacotes prontos de cuidado” são oferecidas e divulgadas enquanto blocos de serviços, cuja promessa reside em moldar o desenvolvimento e a normalização de cada individualidade e suas relações interpessoais. Se por um lado as redes sociais possibilitam a veiculação de informações de forma rápida, por outro, a avalanche de informações e ofertas não possui cunho necessariamente eficaz. As redes sociais virtuais e os aplicativos são utilizados como mecanismos para obter informações sobre estratégias que melhorem o bem-estar e qualidade de vida. A associação de tecnologia e saúde não é somente benéfica, os malefícios desse uso são evidenciados diante a quantidade excessiva de informações circulantes, a incerteza sobre essas informações e seu impacto na saúde mental de crianças, adolescentes e adultos (Melo, Silva, Nitschke & Viegas, 2023).
O Complexo Industrial dos transtornos mentais seria uma maneira de compor um sistema que trabalha para fabricar a doença mental enquanto mercadoria, transformando categorias diagnósticas psiquiátricas como autismo, TDAH, ansiedade, depressão, TOD (Transtorno Opositor Desafiador) em matéria prima para extração de lucro e giro de capital. Esse requintado sistema tanto alimenta como é alimentado por narrativas culturais que giram em torno das ideias de reconhecimento e rastreio de patologias como que determinadas intervenções são as principais (talvez únicas) apropriadas para lidar com pessoas que passam a se reconhecer através da descrição destas condições. Assim, verifica-se o giro de uma economia/lógica de mercado que captura e transcende o campo da saúde mental.
Broderick (2022) sugere que essas narrativas sustentam um sistema complexo que pode não ser necessariamente do melhor interesse das pessoas autistas, deixando pouco espaço para agência autista ou para outros modos de cuidar, ou outros modos de ser que não se deixam capturar pela narrativa mercantilista hegemônica.
Identifica-se no contexto brasileiro que o cenário mercadológico do autismo tem permeado diferentes setores econômicos, que perpassam pelo campo privado (expansão das clínicas exclusivamente destinadas a autistas, oferta de inúmeros cursos de formação para pais e familiares, gastos com planos de saúde), pelo filantrópico (criação de serviços com destinação específica ao diagnóstico de autismo), e pela oferta de produtos/bens de consumo, até ao uso do autismo enquanto estratégia de marketing digital.
Conforme Paulo Amarante (2024), em seu artigo “Drogas psiquiátricas: como começou o pesadelo”, na década de 1980, o Prozac foi lançado com a propaganda associada a uma promessa de ser uma droga que produzia felicidade, supressão do sofrimento mental e a produção de um estado de bem-estar, com impacto social a partir de uma agressiva campanha não apenas nas publicações e meios científicos, mas na mídia de massa, na grande imprensa, televisão, na conversa entre amigos, familiares, trabalho etc. Contudo, hoje, em 2024, as promessas de felicidade, bem-estar e de se alcançar a tão desejada normalidade se multiplicaram, sendo as redes sociais veículos potentes para sua disseminação.
Assim como o Prozac mudou a rota associada as medicações, que deixaram de ser produzidas somente para tratar doenças e passaram a “produzir saúde”, os discursos falaciosos que circulam nas redes também se baseiam neste tipo de armadilha. Os efeitos colaterais e iatrogênicos do uso/abuso das redes sociais mostram-se antagônicos às promessas e orientações circulantes.
Nesse sentido, salientamos que a enxurrada de conteúdo caótico despejado nas redes sociais, assim como a sua dinâmica, precisa urgentemente ter como contraponto pesquisas consistentes associadas no campo do cuidado, fiscalização das práticas, e um olhar clínico orientado para além da lógica econômica mercadológica.
Estruturas de sujeito e configurações da coletividade estão em operação, não podendo – de modo algum – serem relegadas ao segundo plano. A lógica de mercado e consumo não pode sobrepujar o sujeito que nela habita, pensa, cria, deseja, vive, se relaciona, busca as suas próprias saídas e experimenta as arquiteturas do mundo contemporâneo.
Broderick, A. A. (2022). The autism industrial complex: How branding, marketing, and capital investment turned autism into big business.
Haidt, J. (2024). A geração ansiosa. São Paulo: Companhia das letras.
Melo, L. C. D. N., Silva, B. M. D., Nitschke, R. G., & Viegas, S. M. D. F. (2023). Redes sociais virtuais e tecnologias em saúde no quotidiano de usuários e famílias: cuidado e promoção da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 28(8), 2193-2202.
Oliveira, B. D. C. D., Feldman, C., Couto, M. C. V., & Lima, R. C. (2017). Políticas para o autismo no Brasil: entre a atenção psicossocial e a reabilitação. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 27, 707-726.
Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele descreve mais danos causados por pílulas para depressão, incluindo acatisia e sua conexão com homicídios, bem como demência e disfunção sexual. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
Mais sobre SSRIs e SNRIs causando homicídio
Alguns psiquiatras críticos acreditam que o risco de suicídio foi melhor documentado do que o risco de homicídio. Talvez sim, mas a principal razão é que os SSRIs e SNRIs causam suicídio com muito mais frequência do que causam homicídio, o que torna o último mais difícil de se provar.
As evidências, que descrevi detalhadamente em outro livro|7:103| são, no entanto, avassaladoras |2,6,7,21,401,402|.
Os principais mecanismos de ação são que as pílulas para depressão podem causar acatisia, embotamento emocional e psicose. Muitas pessoas que cometeram homicídio eram, por todas as medidas objetivas e subjetivas, completamente normais antes do ato, sem fatores precipitantes; elas tinham acatisia; e voltaram à sua personalidade normal quando deixaram de usar a droga em questão|135,402|.
Há inúmeros relatos na literatura e em sites de pessoas de todas as idades que mataram outras pessoas ou estiveram perto disso após terem experimentado acatisia. Muitas dessas pessoas estavam saudáveis e haviam sido receitadas com a droga por razões não relacionadas a doenças, por exemplo, por diversão, estresse, angústia, insônia, preocupação, assédio no trabalho, problemas familiares ou econômicos|2,6,277,402|.
Em muitos casos, o tratamento fornecido pelos psiquiatras constituiu negligência médica e contribuiu diretamente para as ações violentas. Fui testemunha especialista em um caso de duplo homicídio na Holanda em 2016 |255:114| e enfatizei em minha declaração por escrito que a negligência profissional desempenhou um papel crucial. Uma mãe matou seus dois filhos enquanto ela tinha sintomas indiscutíveis de acatisia com paroxetina, mas seus pedidos de ajuda foram ignorados. Após três meses com a droga, a mãe ficou suicida, mas ao invés de retirá-lo, seu psiquiatra a aconselhou a continuar usando.
A mãe contou a duas pessoas sobre pesadelos em que cortava a garganta dos filhos (o que ela acabou fazendo, e também tentou se suicidar). Dois dias antes dos homicídios, ela relatou ao seu “supervisor” que estava doente e disse a várias pessoas que não estava se sentindo bem. Ela também foi ao seu médico de família (que havia prescrito paroxetina) com suas queixas e visitou o médico da empresa, que a dispensou. Finalmente, ela entrou em contato com seu psicólogo, que não tinha tempo para ela.
Foi uma história horrível. Ela não estava em si mesma, o que um psiquiatra forense confirmou três dias após os homicídios. E seus médicos continuaram a prejudicá-la. Eles pararam abruptamente a paroxetina quando ela estava na penitenciária psiquiátrica seis meses após os homicídios, causando sérios danos que persistiram por cinco meses. Ela recebeu uma longa sentença de prisão, mas questões foram levantadas no parlamento sobre se o sistema judiciário na Holanda foi muito severo. De fato. Ela deveria ter sido libertada por motivo de insanidade induzida por drogas prescritas.
O especialista para a acusação, Anton Loonen, não apresentou bons argumentos contra o meu depoimento, que incluía uma crítica ao próprio relatório dele para o tribunal. No meio do processo, ele repentinamente entregou um documento ao tribunal onde ele havia escrito em holandês que suspeitava que eu sofresse de um transtorno mental que me tornava seriamente desinibido e aconselhava que eu fosse examinado por um médico para me proteger de mim mesmo. Esta foi a terceira vez que fui “diagnosticado” por alguém com formação psiquiátrica que não me conhecia e não havia me examinado, mas tinha algum ressentimento contra mim.
Outro exemplo de negligência médica é o de uma mulher de 26 anos que tentou matar seus dois filhos em duas ocasiões|7:105,402|. Ela foi prescrita com paroxetina para o estresse, mas experimentou um episódio de raiva e tentativa de suicídio e depois parou de tomar a droga. Apesar disso, ela foi prescrita com paroxetina novamente dois anos depois e foi tranquilizada quanto à sua segurança. Desta vez, ela experimentou intensa agitação, surtos de raiva e ira, ataques de pânico, gastos impulsivos descontrolados e ideação suicida constante. Ela fez uma overdose e foi internada no hospital onde a dose de paroxetina foi aumentada.
Ela tentou se suicidar novamente e foi diagnosticada com um “transtorno de ajuste”. Ela foi mudada para venlafaxina, e após cada aumento da dose, ela não conseguia sair da cama (acinesia). Seu estado mental se deteriorou e os acessos violentos e a ideação suicida se tornaram frequentes e graves. Incapaz de ficar parada, ela dirigiu centenas de quilômetros com seus filhos e tentou matá-los e a si mesma por meio de gases do escapamento do carro. Poucos dias depois, ela tentou matar seus filhos e a si mesma novamente.
Não havia outras drogas interagindo em seu regime e muitos dos danos descritos nas informações do produto para venlafaxina se encaixavam bem com suas experiências, como lesões intencionais, mal-estar, tentativa de suicídio, despersonalização, pensamento anormal, acatisia, apatia, ataxia, estimulação do sistema nervoso central, labilidade emocional, hostilidade, reação maníaca, psicose, ideação suicida, comportamento anormal, transtorno de ajuste (que se tornou um diagnóstico psiquiátrico para ela, embora fosse um dano causado pela droga), acinesia, aumento de energia, ideação homicida e dificuldades de controle de impulsos|402|.
Em 2001, pela primeira vez, um júri considerou uma empresa farmacêutica responsável por mortes causadas por uma droga para depressão, a paroxetina|7:106|. Donald Schell, com 60 anos, havia tomado a droga por apenas 48 horas quando atirou e matou sua esposa, sua filha, sua neta e depois se matou|403|. O cerne do caso foram documentos internos da SmithKline Beecham mostrando que a empresa estava ciente de que um pequeno número de pessoas poderia ficar agitado ou violento por causa da paroxetina, mas não alertou sobre isso. Documentos da empresa marcados como “confidenciais” mostraram que alguns voluntários experimentaram ansiedade, pesadelos, alucinações e outros danos — definitivamente causados pela droga — dentro de dois dias de uso, e dois dos voluntários tentaram suicídio após 11 e 18 dias, respectivamente.
No entanto, a GSK, que assumiu a SmithKline Beecham, mentiu descaradamente. Mesmo em 2011, dez anos após o veredicto, a GSK negou que a paroxetina possa levar as pessoas a cometerem homicídio ou suicídio e que haja problemas na retirada da droga|404|.
Na internet, há uma coleção de histórias na mídia sobre massacres, homicídios, suicídios e tiroteios em escolas e faculdades envolvendo drogas para depressão e para TDAH|405|.
É a doença em si ou as pílulas aumentam o risco de demência?
Existem três manuais didáticos que alertam que a depressão dobra o risco de demência |17:358,18:126,20:429|, e outro observou que alguns pacientes com depressão recorrente desenvolvem demência|16:260|. Também somos informados de que se a depressão não for tratada, o risco aumenta para novas depressões e redução permanente na capacidade de concentração|17:358,18:126,18:237|.
Apenas um manual didático tinha referências sobre a alegação de que a depressão dobra o risco de demência|20:429|. Havia duas referências, a primeira era para um estudo de registro dinamarquês que comparava pacientes admitidos em um hospital psiquiátrico com mania ou depressão com pacientes que tinham osteoartrite ou diabetes|406|. Os autores argumentavam que o tratamento das duas últimas condições não era conhecido por aumentar o risco de disfunção cognitiva, mas eles não mencionaram nada sobre o risco com as drogas psiquiátricas. Eles ajustaram suas análises para vários fatores de confusão e observaram que o abuso de drogas e álcool aumentava o risco de demência.
Na seção de discussão, eles citaram outro pesquisador que sugeriu que o tratamento para depressão poderia aumentar o risco de demência. Mas os pesquisadores dinamarqueses não tinham dados sobre o tratamento para seu próprio estudo. Eles tentaram contornar esse problema essencial de uma maneira muito notável:
“Se o tratamento explicasse as descobertas em nossos estudos de um aumento do risco de desenvolver demência em transtornos afetivos (hipótese 1), então esse tratamento deveria ser administrado por longos períodos de tempo para pacientes com transtorno unipolar ou bipolar. Antidepressivos, geralmente, são dados apenas por curtos períodos de tempo em pacientes com transtorno bipolar (Frances et al., 1998), no entanto, ansiolíticos frequentemente podem ser dados a ambos os grupos de pacientes por um período mais longo. Como indicado por Jorm, a literatura é inconsistente, pois o uso de benzodiazepínicos tem sido associado ao declínio cognitivo (Prince et al., 1998), assim como, a uma menor incidência de doença de Alzheimer (Fastbom et al., 1998).”
Essa explicação foi enganosa, por pelo menos cinco razões:
Não há evidências de que as drogas psiquiátricas precisem ser administradas por longos períodos antes de causarem demência.
É enganoso dizer que as pílulas para depressão geralmente são dados por curtos períodos de tempo para pacientes com transtorno bipolar, já que 84% dos pacientes incluídos em seu estudo não eram bipolares, mas tinham depressão.
As pílulas para depressão não são dadas por curtos períodos de tempo. Em 2006, apenas 20% dos pacientes na Dinamarca que receberam uma prescrição de uma droga para depressão eram usuários iniciantes.113 Dez anos depois, 33% de todos os pacientes que foram prescritos com uma droga em 2006 receberam uma nova prescrição a cada ano e ainda estavam em tratamento. E muitos deles estavam em tratamento também antes de 2006. Eu também estudei as pílulas para psicose e encontrei o mesmo padrão: 20% de usuários iniciantes em 2006 e 35% de todos os usuários ainda estavam tomando em 2016. Isso é um dano iatrogênico de proporções épicas.
Os autores escreveram que seus pacientes eram os mais gravemente afetados porque todos haviam sido hospitalizados. O uso das drogas seria, portanto, esperado ser muito mais pronunciado e prolongado em seus pacientes do que o que eu encontrei.
Independentemente do que os benzodiazepínicos fazem ao cérebro, isso é de menor importância neste contexto, pois os tratamentos padrão para depressão unipolar e bipolar não incluem essas drogas. Eles incluem pílulas para depressão e psicose.
O outro estudo ao qual os autores do manual didático se referiram não era melhor|407|. Era uma meta-análise de estudos de caso-controle e estudos de coorte, que não diziam nada sobre tratamentos anteriores. Não havia o menor indício de que o aumento do risco de demência pudesse ser devido à droga em vez da depressão, embora isso seja muito mais provável. Ao contrário do primeiro estudo, essa possibilidade nem foi considerada no artigo.
Poul Videbech, um influente pesquisador de depressão que editou um dos livros|18|, citou de forma acrítica essa meta-análise como evidência de que a depressão dobra o risco de demência|408|. Ele acrescentou que as pílulas para depressão podem ajudar o cérebro a se regenerar. O desejo de pensamento positivo na psiquiatria parece não ter limites.
Outros danos das pílulas para depressão
Outros danos das pílulas para depressão também foram consistentemente minimizados. Um manual didático afirmou que as crianças podem experimentar danos leves, muitas vezes temporários, no início do tratamento|19:294|. É muito mais importante conhecer os danos que não são temporários, mas não havia informações sobre eles. Um quadro de fatos mostrou danos que ocorrem em mais de 10% das crianças: fadiga, diarreia, náusea, boca seca, sonolência, dor de cabeça, tontura e insônia.
Um livro observou que danos sexuais são vistos em “algumas” crianças|19:294|. Algumas? As drogas perturbam a vida sexual de cerca de metade daqueles tratados|383|. Em um estudo cuidadosamente conduzido, 59% de 1022 pessoas que tinham uma vida sexual normal antes de começarem a tomar pílulas para depressão desenvolveram perturbações sexuais: 57% experimentaram libido diminuída; 57% tiveram orgasmo ou ejaculação retardada; 46% não tiveram orgasmo ou ejaculação; e 31% tiveram disfunção erétil ou diminuição da lubrificação vaginal|383|. Cerca de 40% dos pacientes consideraram sua disfunção sexual inaceitável.
A disfunção sexual pode persistir muito tempo depois que os pacientes deixam de tomar a droga causadora e pode se tornar permanente|409-411|. David Healy descreveu que, em alguns ensaios de fase 1 não publicados, mais da metade dos voluntários saudáveis tiveram disfunção sexual grave que, em alguns casos, durou após o término do tratamento|410|. Os ratos podem ficar permanentemente prejudicados sexualmente após terem sido expostos a ISRSs precocemente na vida, o que confirmamos em nossa revisão sistemática de estudos em animais|413|.
No mundo invertido da psiquiatria, as pílulas que destroem sua vida sexual – o que, ao contrário de seu efeito reivindicado sobre a depressão, as pessoas podem certamente sentir – são chamados de pílulas da felicidade.
Quando os pacientes descobrem que nunca mais serão capazes de ter relação sexual, por exemplo, devido à impotência, alguns se suicidam|8:170,409,410,414|. Quando dei palestras para psiquiatras infantis australianos em 2015, um deles disse que conhecia três adolescentes tomando pílulas para depressão que haviam tentado se suicidar porque não conseguiam ter uma ereção na primeira vez que tentaram ter relações sexuais. Isso é cruel.
Sobre os danos, outro manual didático também mencionou sedação, hipotensão ortostática, distúrbios de condução cardíaca, danos anticolinérgicos, danos gastrointestinais e síndrome serotoninérgica (que é muito perigosa e pode ser mortal)|16:582|.
Um terceiro, no qual todos os autores são psiquiatras, foi diferente dos outros dois. Ele afirmou que os ISRSs causam poucos danos, que raramente são graves|18:124|; e que são principalmente sexuais: ejaculação retardada, libido diminuída e dificuldade em obter orgasmo|18:238|.
Isso não é verdade. Em ensaios clínicos, um efeito colateral grave é aquele que incapacita com a impossibilidade de trabalhar ou realizar atividade habitual. Por essa definição, é um dano grave não ser capaz de ter relações sexuais, o que é uma atividade habitual para a maioria das pessoas. E essa incapacidade certamente não é rara.
As empresas também foram desonestas sobre esse problema predominante. Um cientista da FDA descobriu que elas haviam ocultado problemas sexuais culpando os pacientes em vez da droga, por exemplo, anorgasmia feminina foi codificada como “Transtorno Genital Feminino”|307|. As empresas alegaram que muito poucos pacientes apresentam distúrbios sexuais, por exemplo, apenas 1,9% no pedido de registro para fluoxetina|172|, enquanto a verdadeira ocorrência é 30 vezes maior.
Um manual didático observou que as pílulas para depressão podem causar mania|18:113| o que em outro foi minimizado para episódios hipomaníacos de curto prazo que podem ser ocasionalmente vistos em associação com pílulas para depressão|16:252|.
Sobre a prolongação do intervalo QTc, é dito que os tricíclicos podem ser fatais e que um ECG é necessário antes de começá-los (para ver se o paciente tem uma prolongação do intervalo geneticamente determinada)|18:124|. Mais tarde, o mesmo livro observou que outras drogas que não as tricíclicas podem causar prolongamento do QTc em casos raros e que um ECG é recomendado se o paciente tiver doença cardíaca, distúrbios eletrolíticos, algumas outras doenças ou estiver em tratamento com metadona|18:238|. Outro manual didático mencionou apenas o prolongamento do QT sob tricíclicos|17:660|.
Isso é confuso, e não é verdade que os ISRSs raramente causem prolongamento do QT. Isso é o que essas drogas fazem, e isso é conhecido há décadas|279|. Portanto, acredito que se os médicos quiserem prescrever drogas para depressão – o que não deveriam -, eles devem fazer um ECG antes, e não apenas se houver outros problemas.
Qualidade de Vida
Dado os danos comuns e graves dessas drogas, esperaríamos que eles diminuíssem a qualidade de vida. No entanto, isso foi bem escondido da visão pública. Mostramos em nossa grande revisão sistemática que há um grau extremo de relato seletivo de qualidade de vida não apenas na literatura publicada|326|, mas até mesmo nos relatórios de estudos clínicos controlados por placebo de pílulas para depressão|415|.
Essas drogas provavelmente diminuem a qualidade de vida. Descobrimos que 12% mais pacientes abandonaram o uso das pílulas do que o placebo (P < 0,00001)|301|. Os pacientes avaliam qualquer benefício percebido das pílulas contra seus danos quando decidem se querem continuar em um estudo até o fim planejado e a desistência por qualquer motivo é, portanto, um resultado altamente relevante. Os pacientes preferem ser tratados com um placebo!
Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.
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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.
Uma nova pesquisa examina os riscos de se confiar excessivamente em medicamentos psiquiátricos para sustentar o bem-estar emocional, deixando questões mais amplas sem solução.
A psiquiatria enquadra experiências emocionais incomuns ou extremas como disfunções internas e não como respostas a fatores sociais e ambientais complexos. Trabalhos recentes argumentaram que isso perpetua uma forma de “injustiça afetiva” que promove o estigma; enquanto vários estudiosos argumentaram que esse processo de enquadramento em si – também chamado de psiquiatrização – pode ter uma série de consequências negativas nas esferas social, política e individual, afetando a forma como entendemos a nós mesmos e aos outros.
Agora, um estudo a ser publicado por Zoey Lavallee argumenta que a psiquiatrização também afeta nosso “andaime afetivo”, ou seja, as diferentes maneiras pelas quais os agentes se envolvem, recrutam ou modificam seus ambientes para moldar ativamente suas emoções, humores ou outros fenômenos afetivos.
“Andaimes afetivos”, escreve Lavallee, ‘referem-se à variedade de maneiras pelas quais nos envolvemos ou estruturamos o ambiente para alterar nossas vidas afetivas – para melhorar, suprimir, regular ou induzir emoções, ou de outra forma, transformar a afetividade’.
“Os medicamentos psiquiátricos são projetados, comercializados e prescritos como tecnologias que têm o poder especial de transformar a vida afetiva ao intervir nas bases patológicas da angústia e do sofrimento ao mudar a forma como nos sentimos”, escreve Lavallee.“A psiquiatrização influencia os andaimes afetivos ao inclinar os indivíduos em direção aos medicamentos psiquiátricos para administrar uma gama crescente de experiências afetivas.”
Embora o autor sugira que o impacto dessa influência nem sempre seja negativo, o andaime farmacêutico ruim resulta quando nosso viés em relação aos medicamentos psiquiátricos leva à dependência excessiva desses medicamentos.
De acordo com Lavallee, esse excesso de confiança ocorre quando:
(1) pelo menos alguns dos principais determinantes dessas experiências afetivas são propriedades do ambiente do agente, em contraste com, em um sentido estrito, propriedades internas da pessoa, e
(2) o andaime farmacêutico elimina a necessidade ou substitui outras opções não farmacêuticas que atenderiam melhor às necessidades e aos interesses afetivos do agente.
Deixando de lado as questões sobre a suposição do autor de que há uma distinção entre o que conta como “propriedades do … ambiente” e “propriedades internas da pessoa” (feministas materialistas como Donna Haraway e Karen Barad apontaram que, em vez de uma distinção rígida, existe uma dinâmica de interdependência e emaranhamento mútuo entre a pessoa e o ambiente), a intervenção de Lavallee desafia nossa orientação para a psiquiatria ao colocar adequadamente os medicamentos psiquiátricos em um continuum de agentes afetivos:
“Seja bebendo cafeína para melhorar o humor pela manhã, tomando uma taça de vinho depois do trabalho para aliviar o estresse ou tomando um ansiolítico de prescrição diária para controlar a ansiedade, toda uma gama de substâncias que se enquadram no rótulo de ‘drogas psicoativas’ pode atuar como recursos para gerenciar a afetividade de forma estratégica e habitual.”
O autor considera muitos usos dessas drogas como andaimes benéficos e reconhece que consumimos substâncias psicoativas – prescritas ou não – “porque elas servem a propósitos valiosos, por exemplo, responder a um sofrimento real, angústia emocional, perturbação ou dor”.
No entanto, podemos ver como a opção farmacêutica pode nem sempre se alinhar às necessidades e aos interesses de alguém, dada a realidade dos efeitos colaterais persistentes, da prescrição excessiva, de um setor repleto de corrupção e de testes de medicamentos cientificamente questionáveis. Quando o uso de drogas resulta em andaimes afetivos ruins, argumenta Lavallee, ele substitui outras opções terapêuticas ou suportes ambientais, deixando sem solução os problemas sociais e estruturais mais amplos que podem levar uma pessoa a depender de drogas como andaimes afetivos em primeiro lugar.
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Lavallee, Z. (2025). There’s a Pill for That: Bad Pharmaceutical Scaffolding and Psychiatrization [Andaime farmacêutico ruim e psiquiatrização]. Topoi. (Link)
Texto traduzido para o português por Enzo Barletta e revisado por Camila Motta.
Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do Relatório escrito por James B. (Jim) Gottstein, Adv.; Peter C. Gøtzsche, MD; David Cohen, PhD; Chuck Ruby, PhD; Faith Myers. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
Sumário Executivo
Os tratamentos convencionais do sistema de saúde mental são imensamente danosos e contraproducentes, frequentemente impostos a pacientes que não os desejam. O enfoque excessivo em drogas psiquiátricas está reduzindo a taxa de recuperação de pessoas diagnosticadas com transtorno mental grave de possíveis 80% para 5%, e reduzindo suas expectativas de vida em cerca de 20 anos. O encarceramento psiquiátrico, eufemisticamente chamado “internação involuntária”, é igualmente contraproducente e prejudicial, aumentando os traumas dos pacientes e sendo maciçamente associado a suicídios. Intervenções psiquiátricas danosas vêm sendo impostas as pessoas sem considerar os fatos sobre os tratamentos e seus danos, em violação à Legislação Internacional.
Os elementos mais importantes para melhorar a vida dos pacientes são: Pessoas, Lugar e Propósito. Pessoas — inclusive pacientes psiquiátricos — precisam de relacionamentos (Pessoas), um lugar seguro onde morar (Lugar), e atividades que lhes sejam significativas, geralmente estudos ou trabalho (Propósito). É preciso oferecer às pessoas esperança de que estas coisas são possíveis. Abordagens voluntárias que melhoram a vida dos pacientes devem se tornar amplamente acessíveis, em vez do atual regime danoso e contraproducente de drogas psiquiátricas para todos, para sempre, ao qual muitos são frequentemente forçados. Entre estas abordagens estão Peer Respites, Casas Soteria, Diálogo Aberto, Hospitais sem Drogas, Housing First, Emprego, Warm Lines, Grupos de Ouvidores de Vozes, Equipes comunitárias e não-policiais de assistência, e CPR Emocional (eCPR).
Ao implementar essas abordagens, os sistemas de saúde mental poderão ir em direção à possível taxa de recuperação de 80%, e até mesmo alcançá-la.
Por pior que seja para os adultos, o encarceramento e prescrição psiquiátrica a crianças e adolescentes é algo ainda mais trágico e deve cessar. Crianças e adolescentes devem, em vez disso, ser ajudados no controle de suas emoções e a se tornarem bem-sucedidos, e seus pais devem receber apoio e assistência no alcance deste objetivo.
I. O Atual Sistema de Saúde Mental é Extremamente Contraproducente e Prejudicial
O uso excessivo de drogas psiquiátricas
É universalmente aceito o fato de o sistema de saúde mental ser um fracasso, especialmente em relação ao que foi alcançado com o aspecto mais notável do tratamento psiquiátrico desde os anos 1950, e de modo exponencial desde o início dos anos 1980: as drogas psiquiátricas. Às custas de grande despesa pública, a sua implantação ubíqua promovida pelo sistema atual, inclusive compulsoriamente em pacientes que não as desejam — muitas vezes segurando-os e injetando-os contra sua vontade, ou ameaçando fazê-lo para que se tornem “complacentes” — agrava drasticamente os resultados e o sofrimento.
Desde a introdução da Torazina (clorpromazina), chamada droga milagrosa, em meados da década de 1950, a taxa de incapacidade para pessoas diagnosticadas com transtorno mental grave aumentou em mais de seis vezes.1
É provável que pelo menos parte do aumento depois de 1987 tenha ocorrido porque as pessoas foram expulsas da assistência social sob a legislação welfare to work [bem-estar para o trabalho] aprovada em 1996,2 tendo que ser registradas como deficientes para continuar recebendo assistência financeira. Já a diminuição desde 2013 se deve, em grande parte, à maior dificuldade imposta pelo governo para o recebimento destes pagamentos por invalidez, o que, por sua vez, pode perfeitamente ter aumentado o número de pessoas sem teto.
Thomas Insel, que por 12 anos foi Diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), afirmou francamente em 2009 e repetidamente desde então que “apesar de cinco décadas de medicação antipsicótica e desinstitucionalização, há pouca evidência de que as perspectivas de recuperação tenham mudado substancialmente no último século”.3
Nós temos atualmente uma taxa de recuperação de apenas 5% para pessoas diagnosticadas com esquizofrenia e mantidas em neurolépticos.4,5
Isso é muito pior do que qualquer contexto visto antes do advento dos neurolépticos em meados da década de 1950.
Contudo, se tentarmos evitar o uso de neurolépticos após as pessoas vivenciarem seu primeiro episódio psicótico, uma taxa de recuperação de quase 80% pode ser alcançada. O gráfico a seguir mostra os resultados do programa “Diálogo Aberto” ao norte da Finlândia, onde o uso de neurolépticos é evitado sempre que possível.6
Resultados semelhantes foram alcançados durante o estudo da Casa Soteria na década de 1970, conduzido por Loren Mosher, MD, então Chefe de Pesquisa em Esquizofrenia do NIMH:
A taxa de recuperação de pessoas que interrompem o uso de neurolépticos após tê-los usado aumenta de 5% para 40%.7
Embora isso seja 8 vezes melhor do que continuar o uso (40% vs. 5%), é metade do que pode ser alcançado ao se evitar os neurolépticos em primeiro lugar (80%), conforme estabelecido pelos estudos de Diálogo Aberto e Casa Soteria.8 Isso demonstra a importância de se evitar o uso de neurolépticos, desde o início. Além de melhorar muito suas vidas, permitir que 16 vezes mais pessoas se recuperem, não apenas economiza uma enorme quantia de despesas com tratamento, como converte em cidadãos produtivos e contribuintes, pessoas que, do contrário, estariam recebendo subsídios e serviços financiados pelo público durante toda a vida.9
Os resultados de Harrow e Jobe foram tão inesperados e contrários às crenças da psiquiatria convencional que outras explicações foram propostas, como a de que as pessoas que deixaram os neurolépticos tinham, inicialmente, um melhor prognóstico, e por isso, tiveram melhores resultados, o que fez com que análises adicionais fossem realizadas. Nenhuma das explicações alternativas se mostrou verdadeira.10
Além de reduzir drasticamente a taxa de recuperação, o uso extensamente difundido de drogas psiquiátricas é extremamente prejudicial do ponto de vista físico, reduzindo a expectativa de vida em cerca de 20 anos.11 Em um dado período de tempo, o risco relativo de morte aumenta notavelmente com o aumento do número de neurolépticos que uma pessoa toma.12 Usuários de neurolépticos têm um risco elevado de mortalidade cardíaca, mortalidade por todas as causas e morte súbita cardíaca em relação a pacientes psiquiátricos que não o são.13
Pessoas prescritas com doses até mesmo moderadas de neurolépticos têm um grande aumento nos riscos relativos e absolutos de morte súbita cardíaca.14
Citando o livro de Robert Whitaker, Mad in America, de 2002, Gøtzsche escreveu recentemente sobre como as empresas farmacêuticas ocultam um grande número de mortes em seus ensaios clínicos de neurolépticos:
Um em cada 138 pacientes [número inicial, posteriormente atualizado para 145] que participaram dos ensaios clínicos de neurolépticos mais recentes morreu, mas nenhuma destas mortes foi mencionada na literatura científica, e a FDA não exigiu que isso fosse feito. Muitos pacientes se mataram, e a taxa de suicídio foi de duas a cinco vezes maior do que a taxa usual para pacientes com esquizofrenia. Um dos principais motivos foi a acatisia causada por síndrome de abstinência.15
O resultado da introdução de mais e mais psicofármacos é a piora da taxa de mortalidade padronizada entre pacientes com esquizofrenia com o passar do tempo, algo recentemente resumido por Robert Whitaker, autor de Mad inAmerica: 16
As taxas de mortalidade padronizada (SMRs) revelam taxas de mortalidade maiores entre grupos de pacientes em comparação com a população geral. Por exemplo, uma taxa de mortalidade padronizada de 2 para pacientes com esquizofrenia, significa que este grupo tem duas vezes mais chances de morrer em um dado período de tempo do que a população geral. As SMRs para pacientes com esquizofrenia e bipolaridade pioraram nos últimos 50 anos.
Em 2007, pesquisadores australianos realizaram uma revisão sistemática dos relatórios de taxas de mortalidade entre pacientes com esquizofrenia em 25 países. Eles descobriram que as SMRs para “mortalidade por todas as causas” aumentaram de 1,84 nos anos 1970 para 2,98 nos anos 1980 e 3,20 nos anos 1990.
Aqui está um resumo do aumento das SMRs para pessoas com transtorno mental grave de acordo com diversos estudos:
Em 2017, pesquisadores do Reino Unido relataram que a SMR para pacientes bipolares havia aumentado de modo constante no período entre 2000 e 2014, aumentando em 0,14 ao ano, ao passo que, para pacientes com esquizofrenia, ela havia aumentado de modo gradual entre 2000 e 2010 (0,11 ao ano) e depois mais rapidamente entre 2010 e 2014 (0,34 ao ano). “A discrepância na mortalidade de indivíduos com transtornos bipolares e esquizofrenia em relação à população geral está aumentando”, escreveram eles.
Além de matarem pessoas por meio de danos físicos diretos, como parada cardíaca e diabetes, os neurolépticos aumentam drasticamente a taxa de suicídio,17 assim como o fazem os chamados antidepressivos,18 os anticonvulsivos/antiepilépticos comercializados como “estabilizadores de humor”,19 e as benzodiazepinas.20 Além disso, como discutido na próxima seção, o encarceramento psiquiátrico por si só está associado a um enorme aumento dos suicídios.
Embora algumas pessoas as considerem úteis, no geral, estas drogas são prejudiciais e contraproducentes, reduzindo drasticamente as taxas de recuperação e a expectativa de vida. O uso forçado de drogas psiquiátricas é uma atrocidade.
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