DESPATOLOGIZA

Movimento pela Despatologização da Vida

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As sociedades ocidentais vivem processo de patologização de todas as esferas da vida, associado à busca de padronização e homogeneização dos diferentes modos de viver. A diversidade e as diferenças que caracterizam e enriquecem a humanidade são tornadas problemas. Ocultam-se as desigualdades, reapresentadas como doenças. Problemas de diferentes ordens são transformados em doenças, transtornos, distúrbios que escamoteiam as grandes questões políticas, sociais, culturais, afetivas que afligem a vida das pessoas. Questões coletivas são tomadas como individuais; problemas sociais e políticos são tornados biológicos.

Reduzida a vida a seu substrato biológico, está preparado o terreno para a medicalização, ideário em que questões sociais são apresentadas como decorrentes de problemas de origem e solução no campo médico.

Deve ser ressaltado que quando se fala em reducionismo e medicalização, está-se referindo à concepção de medicina enraizada no paradigma positivista.

Ao ser a primeira ciência ligada aos seres humanos a se constituir como ciência moderna, a medicina se constitui, por sua vez, em modelo epistemológico para as ciências do homem. Daí decorre que os processos de medicalização da vida são concretizados por profissionais da medicina, da psicologia, da educação, da fonoaudiologia, de todas as áreas quando pensam e atuam em conformidade com o positivismo… Por este motivo, as expressões medicalização e patologização têm sido amplamente utilizadas como sinônimos.

Por sua vez, os discursos de inclusão, tão comuns nos processos patologizantes, ocultam uma segunda exclusão realizada pelo estigma da doença (ou do transtorno) daqueles já excluídos, social, educacional ou afetivamente. Hoje, esse processo vem, de modo crescente, se articulando à judicialização das relações, dos conflitos e dificuldades que permeiam o viver em sociedade; o passo seguinte, que vem sendo atingido com grande facilidade, consiste na criminalização das diferenças, das utopias e dos questionamentos à ordem estabelecida.

Especificamente em relação à medicalização da vida de crianças e adolescentes, ocorre a articulação com a medicalização da educação na invenção das doenças do não-aprender e das doenças do não-se-comportar. Os campos da saúde afirmam há mais de um século que os graves – e crônicos – problemas do sistema educacional e da vida em sociedade seriam decorrentes de doenças que eles seriam capazes de resolver; criam, assim, a demanda por seus serviços, ampliando a patologização.

O Brasil é um dos países em que a patologização da vida tem sido mais intensa e extensa, despontando em todas as estatísticas como um dos maiores consumidores de substâncias psicoativas legais. Também é um dos países em que a crítica à medicalização tem se fortalecido nos últimos anos, em diferentes campos do conhecimento.

O DESPATOLOGIZA – Movimento pela Despatologização da Vida – filia-se à utopia de outros futuros possíveis, de vidas despatologizadas, reunindo profissionais de diferentes áreas para refletir sobre processos de patologização e medicalização da vida, e propor e realizar enfrentamentos a esses processos.

O DESPATOLOGIZA é composto por vários grupos, em diferentes regiões, que se articulam pelas mesmas concepções de sujeito, de mundo e de ciência, embasados em referenciais epistemológicos e políticos semelhantes; cada grupo se organiza com reuniões periódicas, sempre abertas a todos os interessados.

Uma das ações mais visíveis do DESPATOLOGIZA tem sido a realização de encontros profissionais e acadêmicos, com o propósito de divulgar e aprofundar as discussões sobre o tema, sempre com a participação de profissionais e pesquisadores renomados e reconhecidos, das áreas de Educação, Fonoaudiologia, Medicina, Psicologia, Direito, entre outras. Entre esses eventos, destacamos aqui os “Encontro Despatologiza”.

Além disto, os membros do DESPATOLOGIZA têm participado de inúmeros eventos, organizados por outras entidades e movimentos; sempre que o tema da patologização está em pauta, estamos dispostos a colaborar com as reflexões e avanços nos modos de organização e propostas de ações no campo das políticas públicas.

Toda elaboração teórica e prática resultante do trabalho do grupo deve servir como suporte de qualidade para ações despatologizantes em diversas áreas de conhecimento e regiões do país.

Ao longo desses anos, o DESPATOLOGIZA já promoveu inúmeros debates, sempre buscando construí-los frutíferos, contando com contribuições riquíssimas de pesquisadores e profissionais reconhecidos em suas áreas de atuação. Os eventos  buscam sensibilizar profissionais e usuários e a sociedade em geral para temas polêmicos, geralmente naturalizados pela forma de vida que se adota hoje. Assim, temos discutido o conceito de patologização/medicalização e formas de enfrentamento; distúrbios de aprendizagem X fracasso escolar X supostos transtornos; os impactos da medicalização na educação e na saúde; a possibilidade de atuar de forma despatologizada e despatologizante em serviços públicos de diferentes campos; a judicialização da vida; relações do poder legislativo com os processos de patologização da sociedade; processos de subjetivação e a construção de vidas despatologizadas; medicina do marketing e marketing da medicina; medicalização e racismo;  disputas capitalistas e biomedicalização da infância; a  produção de sofrimento psíquico; pseudociência e o terrorismo nutricional; sociedade de desigualdades e seus produtos; preconceitos de todas as formas – as relações raciais, étnicas, de gênero, … Os temas elencados  para cada encontro têm sido selecionados em consonância com as discussões mais pertinentes daquele momento. Um tema recorrente tem sido as crianças e adolescentes encaminhadas aos equipamentos de saúde com a queixa de dificuldades de aprendizagem, transtornos e distúrbios, que nós, do DESPATOLOGIZA preferimos chamar de “crianças que não aprendem na escola”.

Um princípio fundante do DESPATOLOGIZA é a compreensão de que não se deve – nem se pode – criar amarras burocratizantes que dificultem ainda mais o trabalho em um terreno já tão minado e cheio de armadilhas, posto que situado contra hegemonias e interesses financeiros. Assim, entendemos que o grupo que constitui o DESPATOLOGIZA em cada região é quem pode saber das possibilidades e limites de suas ações a cada momento, pela avaliação de condições concretas, internas e externas ao grupo. Cada grupo constrói seu próprio caminho caminhando, não há metas pré fixadas, não há obrigatoriedade outra que o compromisso contra os processos que, pela naturalização, patologização, judicialização, retiram a vida de cena.

Venha também colaborar com a construção de vidas despatologizadas!

Próximo fórum: Políticas Públicas Socialmente Compromissadas, Vidas Despatologizadas. 29 e 30 de novembro. Auditório do Instituto de Economia – IE – UNICAMP.

 

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Maria Aparecida Affonso Moysés. Médica, Pediatra. Com doutorado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (1979) e Livre-Docência em Pediatria Social na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (1998). É professora Titular em Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É autora do livro A institucionalização invisível: crianças que não aprendem na escola.