Recentemente, em 3 de agosto de 2017, um juiz de Massachusetts julgou uma suposta ‘garota malvada’, pelo crime de homicídio culposo de seu namorado. Na época, a jovem tinha apenas dezessete anos de idade. E ele tinha dezoito anos. Ela poderia ter recebido 20 anos na prisão estadual, pelo ‘crime’ alegado de haver incentivado o seu namorado a se suicidar, ao dizer a ele que voltasse ao seu caminhão cheio de monóxido de carbono. Em vez disso, o juiz deu a ela apenas 15 meses em uma casa de correções. Agora, o juiz suspendeu a prisão, até que o processo seja plenamente concluído, permitindo que ela volte para casa com liberdade condicional.
Eu fui o único perito em psiquiatria e em medicação ao mesmo tempo, e testemunhei em defesa de Michelle. Além de talvez seus próprios advogados, provavelmente seja eu quem mais saiba sobre a história verdadeira.
Este blog será o primeiro de uma série de relatórios sobre o processo. Quase tudo nesta série de relatórios foi revelado e documentado no julgamento, muitas vezes através do meu testemunho. Documentos para o caso Michelle Carter e links para vídeos da audiência do pré-julgamento e o posterior julgamento podem ser encontrados no arquivo do caso que estou criando no meu site www.breggin.com.
Michelle Carter para a impressão pública
Nos últimos tempos, tenho viajado muito para depor em tribunais, enquanto especialista em psiquiatria e para dar workshops e me apresentar em conferências. Porque o caso dela não saía da minha mente, e por ele haver ocupado tanto a minha atenção e o meu tempo, eu perguntava às pessoas nos aeroportos, nos aviões, nos táxis e nos hotéis, se elas já tinham ouvido falar de uma jovem que supostamente havia dito ao seu namorado para que se matasse.
Para minha surpresa, quase todos recordavam algo sobre a história. A cobertura de notícias tem sido extensa aqui nos Estados Unidos. Para vocês brasileiros que não conhecem o caso, a cobertura dada aqui foi desde a mídia impressa como o New York Times e o Washington Post ao People, e na TV desde ABC e NBC à CNN e Fox News. Curiosamente, ninguém parecia saber nada além da ideia de que uma adolescente havia dito ao seu namorado para se matar, e que ele havia feito isso. Eles tinham certeza de que ela era uma garota muito má.
As pessoas ficavam interessadas quando eu mencionava que tanto a garota como seu namorado estavam tomando há anos drogas antidepressivas que eram quase que idênticas. Havia consternação quando eu começava a dar detalhes sobre a relação deles. Isso não se encaixava no imaginário que as pessoas tinham criado. Elas se sentiam enganadas pelos meios de comunicação.
Quase ninguém podia lembrar seu nome. É Michelle Carter. Ninguém conhecia o nome do jovem falecido. Foi Conrad Roy. Era o início de julho de 2014, e Michelle estava se preparando para começar seu último ano de ensino médio, enquanto lutava com um transtorno alimentar. Conrad estava trabalhando para seu pai, batalhando e tentando encontrar o seu caminho após haver se formado no ensino médio.
As informações mais reveladoras estavam contidas em mais de mil páginas de mensagens de texto com as dezenas de centenas de comunicações entre Michelle e Conrad, bem como entre Michelle e seus muitos amigos. Se tratava de um mundo digital vertiginoso de adolescentes, com uma impressionante falta de presença de adultos. Os textos foram muito importantes no julgamento, porque Michelle e Conrad não se viram durante um ano antes da morte dele. Antes desse longo hiato, eles só se encontraram em quatro ocasiões por um ou dois dias, com pouca chance de intimidade e de mesmo de algum contato sexual.
No meu trabalho forense, no trabalho de reconstrução do que os indivíduos estavam pensando e comunicando levando-os ao desfecho trágico – como assassinato, suicídio ou morte, enquanto efeitos psiquiátricos de drogas -, eu nunca tinha tido em minhas mãos tanta documentação como agora eu tinha com este caso. Eu estava entrando em contato não somente com as intactas trocas íntimas de mensagens entre Michelle e Conrad, mas também aquelas entre Michelle e seu extenso grupo de colegas.
A maioria das pessoas com quem conversava enquanto viajava sabia que o caso era sobre mensagens de texto. Eles quase que unanimamente ficaram com a impressão errada de que Michelle enviara mensagens de texto para Conrad que foram aparentemente fatais.
Depois que o advogado de defesa, Joe Cataldo, contatou-me e me forneceu a documentação inicial, eu assumi o caso como especialista em medicina, sabendo que talvez eu nunca teria de volta as minhas despesas pagas, muito menos receberia algum honorário. Eu fiz isso porque rapidamente me dei conta que, no que diz respeito a este caso, não se tratava de uma ‘garota malvada’. À medida que as pilhas de documentos cresciam em pacotes ou eram baixadas da ‘nuvem’, a história foi se transformando em uma tragédia americana – e Michelle Carter tornando-se o mais inocente de todos os muitos participantes na morte de Conrad Roy.
Quem é Michelle Carter?
Tenho sido um expert em centenas de casos legais, com 100 ou mais que foram a julgamento, a maioria dos casos por crime, negligência ou processos de responsabilidade por produtos. Esses casos muitas vezes me exigem entrevistar inúmeros amigos, famílias, e indivíduos que passaram pela mesma situação, pessoas com vínculos com adultos e crianças que sofreram severas reações adversas fazendo uso de drogas. Em casos civis de negligência ou responsabilidade do produto, o indivíduo pode estar morto ou vivo. De qualquer forma, eu tenho que reconstruir suas histórias de vida, a partir de todas as evidências disponíveis. Se os indivíduos foram acusados de um crime, e as drogas psicoativas podem ter contribuído para isso, eu faço o mesmo processo de construção de sua biografia. Em nenhum momento eu já experimentei tanta convicção sobre um indivíduo. Quando comecei a investigar, a história da vida de Michelle ela parecia literalmente boa demais para ser verdade, e de certa forma assim o era.
Michelle antes dos 14 anos era uma excelente atleta que estrelava no softball. Em sua pequena cidade de Plainville, Massachusetts, o que não era um insignificante feito. A escola e a comunidade com cerca de 8 mil habitantes se orgulhavam de ganhar campeonatos de softball e de enviar garotas para a faculdade para continuar suas carreiras como atletas. Os treinadores de Michelle, que eram empresários, me disseram que ela era a companheira de equipe mais atenciosa e prestativa com quem já haviam tido o prazer de trabalhar.
Em suas equipes altamente competitivas, embora fosse uma jogadora muito melhor do que a maioria das suas colegas, Michelle nunca colocou a vitória acima dos sentimentos de seus companheiros de equipe. Quando uma jogadora tinha um desempenho fraco, ela não poupava esforços para tranquilizá-la e confortá-la. Quando perguntei a um treinador se ele podia nomear uma outro atleta-estrela que nunca se queixava sobre outras jogadoras, ou mesmo sobre as outras equipes, ele fez uma breve pausa para sondar a sua memória e disse: “Nenhuma”. Treinadores e professores também me disseram que Michelle saía do seu caminho em sala de aula para ajudar outros alunos e também para ajudar seus professores.
Vários treinadores e professores contaram a mesma história sobre encontros com ela nos corredores ou em um jogo de bola. Ela sempre era a única aluna a se separar de seu grupo de colegas para perguntar aos outros se estavam bem, para dar um ‘oi’. Ao entrevistar Michelle, notei que ela conhecia muitas vezes melhor os nomes e as pessoas da sua comunidade do que seus próprios pais, os quais também sempre estiveram muito envolvidos nas atividades da sua pequena cidade.
Um professor da escola secundária, cuja classe havia ganho um prêmio em um projeto em que Michelle participou, a conhecia muito bem. Ele me contou que Michelle o ajudou de forma altruísta e a outros alunos, sem preocupar-se com as suas próprias notas. Ele foi efusivo sobre o quanto ele a respeitava e a apreciava. Textos entre Michelle e seus colegas mostram que ela oferecia apoio a outros estudantes que estavam trabalhando no projeto.
A preceptora mais antiga da escola secundária, e que foi transferida como professora para uma escola em uma comunidade próxima, permaneceu amiga de Michelle. Quando ela se formou na faculdade e começou a ensinar, Michelle começou a orientá-la em troca e apoiá-la no tratamento de seus próprios medos e preocupações sobre como começar a ensinar. A ex-preceptora de Michelle a via como uma jovem, única, carinhosa, amorosa e solidária.
Uma mãe que morava ao lado da sua casa, e cuja filha frequentemente trazia Michelle para a sua casa, disse que não via grande diferença em Michelle quando criança e agora no presente. O que estivesse acontecendo dentro de Michelle estava fora da vista dos adultos. Os parentes e os pais de Michelle também não viam nenhuma grande mudança ocorrendo nela. Ela era tão brilhante e alegre quanto sempre havia sido, e sempre ansiosa para agradar e ajudar. Michelle continuou para os seus olhos a merecer nota dez em bondade, carinho e solidária.
Perguntei às pessoas que entrevistei se elas sabiam ou tinham ouvido falar de alguém em sua cidade de 8. 000 pessoas que teria uma palavra ruim a dizer sobre Michelle. Alguns pensavam por um segundo, outros ponderavam, e todos responderam com efeito, “Não nunca”. Eles fizeram esta observação apesar da torrente de informações negativas sobre ela veiculadas pela imprensa.
O que emerge das entrevistas, da escola e dos registros médicos e textos é que se trata de uma menina cuja principal intenção na vida é amar e ajudar as pessoas. Milhares de textos com seus amigos confirmam quanto amor eles compartilhavam entre si, e como seus amigos em particular viam Michelle como uma pessoa atenciosa. Conrad Roy, o menino que cometeu suicídio, acabaria por usar suas inclinações naturais contra ela com consequências desastrosas.
Em sua escola e comunidade, ninguém poderia acreditar nas histórias de notícias horríveis sobre Michelle. O Estado de Massachusetts processou-a na mídia através de vazamentos seletivos e parciais de seus textos enviados para Conrad Roy, que a fazia parecer como alguém muito má; mas não era tão assim como parecia. Pelos vazamentos cuidadosamente orquestrados no escritório do procurador judicial a impressão que ficava é que não havia dúvidas sobre o que aconteceu – que ela tenha lhe dito essas palavras e que elas foram postadas em seus textos enviados a ele.
A escola de Michelle confiava tanto nela, que mesmo quando ela estava sob a acusação de homicídio culposo no início do último ano, a convidou para voltar para o seu último ano do ensino médio. Em seu último ano, antes de ir a julgamento, a sua turma lhe deu uma série de prêmios estudantis de prestígio. Michelle Carter, conhecida na mídia como a menina má, recebeu o prêmio de seus colegas de classe por ser o aluno “Mais Provável de Iluminar seu Dia”. Ela também obteve um segundo prêmio por “Palhaço da Classe”, não por ser perturbadora ou fora dos padrões, mas por fazer as pessoas sorrirem. Os advogados do Estado de Massachusetts nunca deram essa informação à imprensa.
A acusação da promotoria
O que aconteceu com Michelle Carter, que aparentemente se tornou um ser humano destrutivo e inclinado a empurrar seu namorado para se matar? A promotoria alegou que ela era uma pessoa egoísta incentivando seu namorado a se suicidar, a fim de ganhar atenção e simpatia. Esse era o único motivo que poderia explicar um ato tão horrível.
Durante os últimos meses que antecederam a trágica morte de Conrad, Michelle começou a se cortar. Ela frequentemente enviava mensagens de texto a seus amigos sobre seus problemas de alimentação e os cortes feitos em seu próprio corpo, até que um deles veio até à sua casa para sumir com a faca, e outro disse que não aguentaria mais que isso viesse a ocorrer. Em seu contra-interrogatório no final do primeiro dia do meu testemunho, a acusação afirmou que Michelle compôs todos os textos sobre se cortar apenas para obter simpatia e atenção de seus amigos, exatamente como “causou” a morte de Conrad pelos mesmos motivos egoisticamente perversos.
Naquela noite, preparei-me para a continuação do meu interrogatório no dia seguinte. Dentro da enorme quantidade de documentos que continham milhares de mensagens de texto, consegui localizar dois episódios separados, onde as amigas viram seus cortes e cicatrizes na escola e expressaram sua preocupação com ela. Na manhã seguinte, no julgamento, pude desconstruir o falso argumento da acusação de que Michelle nunca havia se cortado e, em vez disso, havia fingido ter se cortado para ganhar simpatia e atenção.
Eu citei os números de página dos textos, de modo que os advogados da acusação pudessem localizá-los e lê-los, o que lhes tomou um tempo. Eles pararam de alegar que ela tinha fingido tudo; mas eles nunca reconheceram que estavam errados ou se desculparam por criticá-la de forma tão negativa.
Essas mensagens de texto e outras fontes relevantes podem ser encontradas no meu Arquivo do Caso Michelle Carter, que estarei atualizando à medida que eu continuar com esta série de blogs.
Perguntas que precisam ser respondidas
Então, o que aconteceu com Michelle Carter para que ela tenha se tornado participante – mesmo que apenas por telefone e textos – nos planos suicidas de Conrad nos últimos dez dias de sua vida? Ela não o viu por um ano, e teve apenas alguns breves encontros com ele nos primeiros anos. Por que ela tinha alguma coisa a ver com ele?
Adolescentes na época, Michelle e Conrad serão encontrados envolvidos e dominados por forças além de sua compreensão ou controle – uma situação que afeta inúmeras outras crianças, adolescentes e até muitos adultos em todo o mundo hoje em dia. Algumas dessas vítimas estão presas, algumas em hospitais psiquiátricos ou casas adotivas. Muitas pessoas sofrem danos físicos e mentais persistentes, e muitas estão mortas. Enquanto isso, a grande maioria está sobrevivendo o melhor que pode em suas comunidades e famílias, enquanto tentam continuar na escola ou empregos.
Muito poucos têm alguma ideia do que aconteceu com eles. Muito poucos têm alguma idéia de que a deterioração da qualidade de vida é muitas vezes devida aos medicamentos psiquiátricos que estão recebendo. Em vez disso, com as drogas prejudicando o seu julgamento, as pessoas erroneamente se culpam e dizem que é a sua ‘doença mental’.
São muito poucos aqueles que narram as suas histórias, como eu tentarei fazer o melhor possível nesta série. A história de Michelle Carter não foi contada na mídia convencional. Como muitas outras vítimas da psiquiatria, os resultados trágicos das drogas usadas em larga escala na vida de nossos filhos e adultos não são revelados. Espero corrigir essa omissão.