Precisamos Falar sobre Diego?

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Rita AlmeidaTrabalho como profissional da saúde mental e sou militante da Reforma Psiquiátrica Brasileira desde 1995. Já fui coordenadora de CAPS e supervisora institucional em saúde mental indicada pelo Ministério da Saúde. Minha dissertação de mestrado tratou sobre o lugar e a função da “loucura” nas instituições e na cultura. No meu doutorado (em curso) também vou tratar da maneira como lidamos com nossos mal-estares na contemporaneidade, mais precisamente, vou pensar sobre a medicalização como estratégia para tal lida. Digo isso porque o que vou escrever a seguir parte da minha prática e, também, do meu percurso acadêmico.

Existem, basicamente, dois modos de pensar a “loucura” ou mesmo as formas de delinquência. O mais comum é pensarmos em tais “desvios” como um problema meramente individual, ou seja, aquele sujeito desviante é uma espécie de “maçã podre” decorrente da sua condição ou escolha particular, nesse caso, precisa ser eliminado, ser retirado da convivência das demais “maçãs” ou ser transformado numa “maçã saudável”. Este é um modo simplista de pensar e que gera propostas igualmente simplistas, como, por exemplo, a de que combateremos a criminalidade eliminando (matando, prendendo, exilando) os criminosos ou a de que teremos uma sociedade mais saudável eliminando (matando, prendendo, exilando) os doentes mentais.

Um outro ponto de vista – que eu partilho, e a partir do qual pensamos quando defendemos a mudança do modelo manicomial para um modelo aberto – entende que um possível “desvio”, apesar de manifestar num indivíduo singular, quase sempre é resultante daquilo que acontece em seu meio social e cultural. Tal modo de pensar não desresponsabiliza o sujeito pelos seus atos desviantes ou criminosos, mas convida a sociedade a compartilhar a responsabilidade pelo mesmo, na medida em que todo sujeito – em especial os que estão fora da curva – funcionam como uma espécie de “para-raios” do modus operandi da sociedade em que vivem. Pensando desse modo, é possível analisar uma sociedade ou uma instituição a partir dos seus pontos desviantes, ou seja, muito mais do que singularizar uma doença social, o sujeito desviante denuncia as falhas e os pontos cegos de uma sociedade ou cultura. Inclusive, é importante destacar – porque isso varia muito – o que uma determinada sociedade considera desviante diz muito sobre como ela é.

Mas, vamos ao ponto que interessa aqui que é tratar do caso exaustivamente debatido e escarafunchado esta semana, o caso de Diego Novais, de 27 anos, mais conhecido como o “tarado” que ejaculou numa mulher no ônibus. Independente do crime, do ato antissocial, imoral, machista, ou como queiram chamar, de Diego, vou me propor a pensar o Brasil atual a partir dos últimos acontecimentos envolvendo tal sujeito. Como faria no meu trabalho de supervisora/analista – no qual tentamos verificar quais os problemas institucionais e relacionais determinado caso denuncia e aponta – vou inverter meu olhar e, ao invés de focar em Diego e seu comportamento sexual desviante, vou me dirigir para o modo como a sociedade lidou com Diego, e analisá-la.

Primeiramente, é importante dizer que esta não pretende ser uma análise científica ou acadêmica, será apenas uma avaliação superficial feita a partir da minha Linha do Tempo do Facebook e de comentários que li em notícias na internet nos últimos dias. Vamos às análises que fiz:

  1. Somos machistas:

Ainda que o ato de Diego não tenha sido motivado por machismo, mas, ao que parece, por uma disfunção cerebral pós-cirúrgica (e isso é totalmente possível), seu ato trouxe a tona a fato de inúmeras mulheres serem molestadas e assediadas em transporte público e se sentirem vulneráveis e sem apoio para fazerem denuncia quando se sentem abusadas e violentadas, nessas e em outras situações. Além do mal-estar e do constrangimento do abuso e da violência, sofrem também por não se sentirem acolhidas e respeitadas pelos instrumentos da justiça. A elas cabe, invariavelmente, a culpa pelo abuso ou violência masculina.

  1. Não somos republicanos:

É um argumento recorrente quando tratamos de casos que causam comoção, tal como este, trazer a questão para o âmbito da nossa vida privada, como se isso devesse fazer diferença. “E se fosse sua filha?” “E se fosse sua mãe?” – são perguntas frequentes. Nossa confusão histórica entre o público e o privado, nos faz imaginar que um juiz ou um profissional da saúde pública, por exemplo, deverão decidir de modo diferente, caso se trate de alguém do seu círculo privado. Não digo que isso não aconteça por aqui, exatamente pela nossa cultura do “jeitinho”, mas não devíamos contar com isso, e muito menos com tal argumento. É claro que, se fosse membro da minha família, eu poderia estar emocionalmente afetada o que, provavelmente, me impediria de ter uma intervenção republicana. Talvez, tal fato me levasse a um ato desesperado e intempestivo, mas eu, sinceramente, espero que alguém que esteja com a “cabeça fria”, que tenha conhecimento de causa, que pense nos dois ou mais lados da questão e que leve em conta as leis vigentes (ainda que eu não concorde com elas), possa tomar a melhor decisão possível.

  1. Somos violentos:

Ao menor sinal de desagravo nosso potencial violento alcança níveis alarmantes. Lógico que muitos valentões e valentonas de rede social são, na verdade, covardes que usam da mediação digital para dizerem o que não teriam coragem de dizer em outra situação, e muito menos fazer, mas, de todo modo, o que as pessoas dizem que desejariam fazer com um sujeito como Diego é bem pior do que o que ele fez. Acreditamos na intervenção violenta como medida corretiva, mas, sobretudo, como aceitável e justificável em muitos casos.

  1. Somos punitivistas:

A maioria de nós ainda defende que as medidas tomadas pela justiça devam ter caráter de punição e não de ressocialização ou reintegração. E em casos como o de Diego, a justiça deve se parecer como algo próximo à vingança. Seguindo a premissa da punição, esperamos que a justiça aja rapidamente e não deixe “furos”, ou até que ela seja capaz de prever um crime que não aconteceu, baseada num acontecimento anterior. A reintegração e a ressocialização demandam mais cuidado e tempo, a punição é mais rápida e imediata. Optar pela ressocialização, apesar de ser mais saudável para toda a sociedade, pode deixar mais lacunas e questões em aberto, por exigir uma maior cautela e tempo para agir. Todavia, nesses casos onde a comoção social é grande exigimos uma punição rápida e eficaz, e que feche totalmente a questão.

  1. Somos manicomiais:

A Reforma Psiquiátrica Brasileira levou anos de muito debate e luta para se estabelecer e evitar algumas das atrocidades que vitimavam os doentes mentais. Em nome do bem estar da sociedade, os manicômios se tornaram um depositário daquilo que dela era considerado dejeto e escória; uma verdadeira máquina de matar e violar os Direitos Humanos. Pela via da Reforma, o Brasil (apesar dos retrocessos que estamos assistindo depois do Golpe Parlamentar que instituiu o Governo Temer) possui uma política de saúde mental avançada em termos de humanização e garantia de direitos e cidadania. O encarceramento do doente mental ainda é uma prática comum mundo afora. Nesse sentido, o manicômio é uma instituição que vive seus últimos suspiros por aqui, no entanto, ao menor sinal de comoção coletiva, diante de atos de loucura, clamamos por ele. Ou seja, apesar de todos os avanços das últimas décadas, o isolamento e o encarceramento do “louco” ainda são vistos como saída, não para cuidar do doente, mas, simplesmente, para proteger a sociedade do mesmo.

  1. Somos moralistas:

Me chamou muita a atenção a desproporção da comoção social que o caso suscitou, comparada a gravidade do ato do infrator, isso num país que mata uma mulher a cada hora e meia por feminicídio (segundo dados do IPEA de 2013). Me pareceu que se a vítima tivesse levado um tiro na cara não estaríamos tão escandalizados. Além disso, pelos comentários que vi por aí, a sexualidade e o desejo sexual, incluindo os excessivos e desviantes da norma, são território eminentemente masculino. A moral que está posta ainda reprime e sufoca a sexualidade da mulher, discurso presente mesmo entre as feministas mais aguerridas. A sexualidade feminina ainda é recoberta de mitos. Resumindo um pouco: mulheres não tem desejo sexual, caso tenham, conseguem mantê-lo sempre sob controle e não são afeitas a “taras” e compulsões.

  1. Somos religiosos:

Para quase todos os problemas que surgem, a resposta, “tá faltando Deus no coração” parece caber, e, com relação a Diego, não tem sido diferente. O demônio também é constantemente convocado a ser o elemento explicativo para tal situação. Como não suportamos ver essa humanidade insana, indomável, trágica e errática que habita em todos nós e que pode vir à tona, tal como veio em Diego, preferimos delega-la ao outro estranho; ao diabo. Mas, curiosamente, mesmo os não religiosos, nutrem um modo de pensar mágico. Ainda que o cerne não seja Deus ou o Diabo, acreditam que haja um único responsável pela situação e, portanto, uma única solução que vai resolver todo o problema. Acreditam num ideal qualquer que nos salvará para sempre de todo e qualquer mal-estar e nos trará o paraíso na Terra; sem Diegos, sem juízes que liberam Diego, sem mães que não conseguem fazer Diego seguir tratamento, sem erros médicos em cirurgias de Diego, sem acidentes automobilísticos que desencadeiem uma doença orgânica em Diego; e por aí vai…

O título do meu texto é uma pergunta – Precisamos falar sobre Diego? – e não por acaso. Toda vez que um caso desses vem à tona, devíamos pensar sob que prisma devemos falar ou opinar publicamente. Este caso foi um exemplo maravilhoso para entendermos que, não devemos falar sobre Diego. Não conhecemos o sujeito, sua situação ou sua condição, não sabemos exatamente o que houve, desconhecemos seu diagnóstico, os processos que ele responde e suas particularidades, portanto, qualquer julgamento feito a Diego, ao seu laudo ou ao seu processo legal é irresponsável e infrutífero, podendo até mesmo gerar danos maiores. No entanto, podemos sim, falar a partir de Diego, assim como eu tentei fazer aqui. Desse modo, entendemos que Diego é apenas um catalizador das nossas chagas sociais e que, eliminá-lo não irá curá-las. Todavia, podemos pensar nossas mazelas a partir de Diego, assim, seremos capazes de fazer algo de produtivo e verdadeiramente terapêutico para a sociedade como um todo, e também para Diego.

Sei que é bem difícil pensar assim, mas faço um convite a tal exercício. Diego é uma espécie de dejeto, se pensarmos naquilo que almejamos para um ser humano, entretanto, ele fala mais das nossas fraquezas e misérias, do que gostaríamos. Por isso, rejeitamos Diego e queremos evitá-lo ou eliminá-lo de todo modo. Entretanto, uma sociedade minimamente saudável – e é só o que podemos almejar – entende que criar modos de lidar com Diego é fundamental para o bem de toda a coletividade, e não apenas dele. É fácil fazer isso? Não, é bem difícil! Mas quem disse que estou propondo o mais fácil?

Antes que usem o item dois e me perguntem: “Duvido se fosse você a levar uma esporrada de um estranho no coletivo?”, vou responder. Acharia péssimo. De um estranho, no coletivo, não curto. Nesse caso, pode ser que eu estivesse impossibilitada de ter qualquer atitude sensata, inclusive de escrever esse texto, mas, certamente, haveria alguém apta a escrevê-lo. É assim que funciona quando vivemos numa coletividade que se pretenda republicana.

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