Loucura, Sexualidade e Legados da Discriminação Estratégica

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Em julho de 2018, o governo britânico emitiu um plano de ação LGBT. Isso veio em resposta aos resultados de uma pesquisa nacional de pessoas LGB e T que indicou que, entre muitas outras coisas, 5% dos entrevistados LGB tinham recebido terapia de conversão e outros 2% haviam recebido tal terapia. Isso levou o governo a incluir a proibição da terapia de conversão na Grã-Bretanha em seu plano de ação de 75 pontos para melhorar a vida das pessoas LGB e T. Há provas contundentes de que as pessoas LGB e T estão em maior risco de sofrer de sofrimento mental, desenvolvendo problemas de saúde mental, dependência química, automutilação e suicídio, do que a população em geral. Na Grã-Bretanha, também é provável que sofram discriminação nos serviços de saúde mental. Dada esta situação, por que os ativistas usuários e sobreviventes que frequentam os serviços na Grã-Bretanha têm permanecido relativamente quietos sobre essa forma de opressão psiquiátrica em geral e sobre esta campanha específica para proibir a terapia de conversão?

Organizações LGBT e grupos profissionais de saúde mental têm estado na vanguarda de campanhas para proibir a terapia de conversão e pelo fornecimento de melhores serviços de saúde mental para pessoas LGB e T na Grã-Bretanha. Em 2014, o Departamento de Saúde solicitou que o Conselho de Psicoterapia do Reino Unido, juntamente com vários outros órgãos profissionais de saúde mental, emitisse uma declaração de consenso sobre a terapia de ‘conversão’ ou ‘reparadora’. Eles foram claros que é antiético e errado oferecer “um tratamento para o qual não há doença”. Esta posição originou-se dos profissionais do campo da saúde mental e dos ativistas LGBT. Então, há alguma questão em jogo a ação política dos sobreviventes em psiquiatria com relação ao tratamento de LGB e T? Até à data, tem havido pouco trabalho em conjunto entre os movimentos de sobreviventes e os movimentos LGBT, apesar de haver um interesse comum em criticar e resistir ao projeto de normalização das disciplinas psi – isto é, as categorizações clínicas da psiquiatria e da psicologia do que é ‘normal’ e ‘anormal’ ou ‘saudável’ e ‘doente ‘. Uma posição comum e interseccional ainda está por ser desenvolvida entre os dois movimentos e suas organizações.

Por que isso pode ocorrer? Eu e Helen Spandler realizamos um estudo de arquivos sobre o tratamento da homossexualidade feminina nos serviços de saúde mental do Reino Unido dos anos 50. Isso se baseia em nosso trabalho anterior nessa área e esperamos que ele contribua para as histórias interconectadas da opressão LGBT e Loucura. Nossa pesquisa nos levou a pensar, junto com a historiadora norte-americana Regina Kunzel, se a situação atual pode ter sido influenciada pelas táticas dos ativistas lésbicos e gays das décadas de 1960 e 1970 em suas campanhas para desqualificar a homossexualidade enquanto doença mental.

Campanhas para despatologizar a homossexualidade envolvida, como Kunzel diz, “esforços para distanciar a homossexualidade do estigma da doença mental”. Por exemplo, durante os anos 60 e 70, ativistas de direitos gays e lésbicas que fizeram campanha para a desclassificação (retirada da homossexualidade do DSM) se apresentaram como “Gay, com Orgulho e Saudável”, essencialmente argumentando que “gay é normal e saudável” em oposição a “gay é anormal e doente”. Embora essa estratégia possa ser uma reação compreensível à patologização, apesar de suas melhores intenções, esses ativistas foram colocados em uma armadilha binária psiquiátrica em seus argumentos de campanha sobre quem deveria ser classificado como ‘doente’ ou ‘saudável’? Em 1965, Franklin Kameny, líder da campanha de libertação gay americana, escreveu sobre essa tensão na revista lésbica The Ladder , dizendo:

“Se permitirmos que o rótulo da doença se sustente, teremos duas batalhas para combater – aquela contra o preconceito aos homossexuais enquanto tal e aquela para  combater o preconceito contra os doentes mentais – seremos páriase marginalizados duas vezes. Uma dessas batalhas já é o bastante.”

Da mesma forma, na Grã-Bretanha, para evitar a desqualificação psiquiátrica e para o avanço da credibilidade política, ativistas como Jackie Forster, do Grupo de Pesquisa das Minorias, também promoveram os homossexuais como mentalmente normais quando ela escreveu: “não estamos doentes. . . nossa orientação sexual não nos impele a nos comportar de tal maneira a ferir ou afligir os outros.” Apesar do resultado momentaneamente importante dessa campanha – a desclassificação da homossexualidade como uma doença mental – essa tática implicava que as pessoas com problemas de saúde mental eram anormais ou perigosos e que as pessoas LGB que experimentam sofrimento mental devem ser estrategicamente não incluídas em nome de uma causa maior.

Na convenção da Associação Americana de Psiquiatria (APA) de 1971, Kameny e outros ativistas da libertação gay dos EUA que procuravam remover a homossexualidade como uma doença mental do Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM) forçaram os organizadores a deixar homens e mulheres gays falarem por si em um painel chamado ‘Estilo de vida do homossexual não-paciente’. Aqui, é importante destacar a conceptualização do homossexual ‘não-paciente’. Na época, muito da pesquisa sobre a homossexualidade era feita sobre ‘populações de pacientes’, o que era visto como fazer os homossexuais parecerem mais ‘doentes’; mas ao definir o ‘homossexual não paciente’, os ativistas da libertação gay construíram uma entidade ‘discriminadora’ em sua negociação? A defesa intransigente da normalidade psicológica foi uma condição para a libertação das pessoas LGB da psiquiatria?

Kunzel acredita que um dos principais problemas é o uso de “um único eixo de opressão baseado na saúde prejudicada dos outros”, onde “a saúde deixa de ser um estado desejado ou um bem evidente, mas uma ideologia que mobiliza um conjunto de normas, prescrições e hierarquias de valor.”  Cat Fitzpatrick e Jijian Voronka, escrevendo sobre campanhas contemporâneas para despatologizar identidades e vidas trans, instaram os ativistas trans a terem cuidado para não se “imitar os ativistas gays a jogar pessoas loucas para fora do ônibus, para assim serem respeitadas”. Para parafrasear a escritora feminista lésbica Adrienne Rich, que escreveu sobre o poder opressivo da “heterossexualidade compulsória”, as pessoas e comunidades LGB também não experimentam o poder opressivo da “sanidade compulsória”?

Dado este legado e contexto, parece necessário perguntar sobre a relação do movimento de sobreviventes do Reino Unido com a história de sobreviventes LGB e com as lutas sociais e políticas contemporâneas das comunidades LGB e T com relação à psiquiatria, à terapia e à saúde mental. O movimento de sobreviventes do Reino Unido não tem tido um papel proeminente na campanha contra o renascimento religioso contemporâneo do tratamento terapêutico para a homossexualidade, ou na crítica ao tratamento homofóbico de pessoas LGB em serviços de saúde mental. Ainda não há uma crítica adequada do poder opressivo da heteronormatividade, vinda de dentro do movimento (assim como da própria sociedade), a respeito das disciplinas ‘psi’. Aqueles que se identificam como lésbicas, gays, bi ou queer e os loucos habitam um espaço interseccional entre os dois movimentos e podem ser marginalizados em ambos. No entanto, podemos agora estar entrando na Grã-Bretanha em uma nova era de ativismo e política queer sobrevivente. Há um número emergente de ativistas sobreviventes, muitos deles mulheres mais jovens, muitas dos quais se identificam como queer e feministas, que estão desafiando os rótulos “transtorno de personalidade limítrofe” e “transtorno de personalidade emocionalmente instável”. Ativistas estão chamando os rótulos misóginos de “insultos ao caráter”.  Se você é não-heterossexual, você pode estar em maior risco de receber esses rótulos. Um dos critérios diagnósticos é ter uma autoimagem ou senso de self “instável”, interpretado por alguns médicos como sendo indicado para orientação sexual e identidade de gênero. Perguntas novas e importantes sobre as definições de ‘normal e anormal’ e ‘doente e saudável’ do psiquismo estão sendo feitas.

Em 1965, Kameny disse que os ativistas da libertação gay “devem argumentar a partir de uma posição positiva de saúde”. Há agora razões altamente convincentes para que as colaborações defendam uma posição crítica sobre saúde, pois as concepções de saúde dependem de normatividades construídas clínica, social e culturalmente e que continuam a oprimir e excluir. Regina Kunzel nos lembra que “ os estudos sobre incapacidades e a loucura nos ajudam a entender a saúde não apenas como uma afirmação de orgulho contra o estigma, mas também como um projeto de normatividade e exclusão”. Helen Spandler e Meg-John Barker discutiram algumas das complexidades e semelhanças entre as duas disciplinas radicais para explorar potenciais visões compartilhadas entre os dois. É importante notar que elas explicam que Queer and Mad Studies criticam as formas dominantes e culturalmente aceitas do que é ser ‘normal’. . . elas questionam entendimentos dominantes e construções do que significa ser psicologicamente ou sexualmente normal. . . ambas compartilham a ideia de que as ‘normatividades’ são mantidas por meio de oposições binárias, em que “um lado é privilegiado em detrimento do outro.” Dadas as lutas contemporâneas e intersecionais que existem para pessoas LGBT que vivenciam sofrimento mental ou recebem um rótulo de diagnóstico, o movimento dos sobreviventes e as comunidades LGBT na Grã-Bretanha podem estar juntos em solidariedade aberta, a partir de posições criticas, para construir e argumentar sobre questões da saúde, desafiando o poder de psiquiatras e psicólogos em determinar a ‘normalidade’ e a ‘sanidade’.