Recompensando as Empresas que mais Enganaram em Pesquisas com Antidepressivos

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peter-gotzscheÉ bem sabido que não podemos confiar nos dados que as empresas farmacêuticas publicam [1], e parece que, em pesquisas de drogas psiquiátricas, as manipulações com os dados são particularmente pronunciadas. [2] Para dar apenas um exemplo, metade das mortes e metade dos suicídios que ocorrem em ensaios randomizados não são publicados. [3]

Quando a FDA em 2006 publicou sua meta-análise de 100.000 pacientes que receberam comprimidos de depressão ou placebo em ensaios randomizados, depois de ter perguntado às empresas quantos suicídios ocorreram em seus testes sem verificar a veracidade da informação, a taxa de suicídio em pílulas foram de 1 por 10.000 pacientes.[4] No entanto, cinco anos antes, Thomas Laughren, que presidiu a grande meta-análise da FDA, havia publicado sua própria meta-análise das drogas, com base em dados em posse da FDA, e desta vez a taxa de suicídio em pílulas foram de 10 por 10.000 pacientes, ou seja, 10 vezes mais. [5]  É difícil compreender discrepâncias de tamanha magnitude, mas o que é bastante claro – e que tem sido demonstrado por muitos pesquisadores – é que as empresas dissimularam deliberadamente muitos casos de suicídio e tentativas de suicídio em seus julgamentos e em seus relatórios enviados aos reguladores de drogas. Em muitos casos, isso equivale a fraude.

Quando, o que é muito raro, os pesquisadores independentes têm a possibilidade de analisar os próprios dados da pesquisa, os resultados são muitas vezes diferentes dos que as empresas publicaram. Este foi, por exemplo, o caso da reanálise do teste 329 da GlaxoSmithKline em crianças e adolescentes. [6] A empresa informou que a paroxetina administrada a crianças e adolescentes era eficaz e bem tolerada, mas isso em nada era verdadeiro. A paroxetina foi ineficaz e prejudicial, assim como também ela é prejudicial para adultos.

A meta-análise da Lancet feita por Cipriani et al.

A fraude e os relatos seletivos, naturalmente, não se limitam aos resultados mais sérios, já que também afetam os outros resultados da pesquisa. Vários dos autores de uma metanálise de rede 2018 na Lancet estão bem cientes de que os relatórios de avaliação publicados de comprimidos para a depressão não podem ser confiáveis. Por isso, não entendo por que eles são autores neste artigo. Erick Turner, por exemplo, foi um revisor para a FDA e ele mostrou em 2008 que o efeito das pílulas de depressão era 32% maior nos ensaios publicados do que em todos os testes na posse da FDA. [7 ] E John Ioannidis publicou um artigo em 2008 intitulado ” Eficácia dos antidepressivos: um mito de evidência construído a partir de mil ensaios randomizados?”, onde ele mencionou no resumo que “relatórios de resultados seletivos e distorcidos criaram e alimentaram um mito aparentemente baseado em evidências sobre a eficácia do antidepressivo”. [8]

No entanto, os autores incluíram 421 pesquisas do banco de dados, 86 estudos não publicados dos registros de pesquisas e dos sites de empresas farmacêuticas, e 15 de comunicação pessoal ou pesquisa de outros artigos de revisão. [9] De longe, a maioria dos dados veio de relatórios de avaliação publicados, o que nós sabemos não serem seriamente confiáveis para as pesquisas de depressão. O exercício meta-analítico dos autores é acadêmico, sem valor clínico, e esconde os muitos vieses estatísticos nas pesquisas, que por serem são tão complicados é impossível saber ao que tudo isso leva. Não obstante, sabemos que manobras estatísticas não podem tornar confiáveis pesquisas não confiáveis.

Os autores incluíram comparações tanto das drogas entre si quanto de drogas com placebo. Eles encontraram um efeito comparado ao placebo de 0,30, o que é muito similar a numerosas meta-análises anteriores. [10]

No entanto, eles foram muito além disso. Apesar do efeito duvidoso, que está muito abaixo do que é clinicamente relevante, classificaram as drogas de acordo com seus efeitos e aceitabilidade (abandono por qualquer motivo).

Este é um exercício fútil, e quando vi pela primeira vez esta meta-análise de rede, meu pensamento era que os autores haviam recompensado as empresas que mais haviam enganado com suas provas. Minha suspeita foi fortalecida quando eu olhei os resultados em seu resumo. Os autores afirmam, por exemplo, que nos ensaios presenciais, agomelatina, escitalopram e vortioxetina foram mais eficazes do que outros antidepressivos, e que os mesmos três fármacos também eram mais toleráveis do que outros antidepressivos. Não é necessário ser um farmacologista clínico para saber que isso parece bom demais para ser verdade. As drogas que são mais eficazes do que outras (que muitas vezes é uma questão de dar-lhes em doses mais altas e não equipotentes), e geralmente também serão mais mal toleradas. É altamente improvável que algumas pílulas para a depressão sejam ao mesmo tempo mais eficazes e melhor toleradas do que outras. Por isso, estudei mais atentamente essas três drogas.

Não posso saber se as empresas que estão por trás dessas drogas são piores do que outras ou se as descobertas estranhas apenas refletiram erros fundamentais na meta-análise da rede. Eu não acuso ninguém, eu apenas apresento alguns fatos abaixo.

Agomelatina

A agomelatina é comercializada pela Servier. Foi promovida em 2011 por dois autores na Lancet como sendo uma droga excepcional [11], incluindo o principal psiquiatra australiano Ian Hickie que tinha inúmeros conflitos de interesses financeiros. Os autores alegaram que menos pacientes com agomelatina recaíram (24%) do que aqueles em placebo (50%), mas uma revisão sistemática por outros psiquiatras não encontrou nenhum efeito na prevenção da recaída, nenhum efeito avaliado na escala de depressão de Hamilton e que nenhuma das pesquisas negativas foram publicados. [12] Três páginas de cartas – o que é extraordinariamente muito – foram enviadas para o editor da Lancet (em 21 de janeiro de 2012) apontando as muitas falhas na revisão da Hickie.

Escilatopram e Vortioxetina

Essas drogas são comercializadas pelo laboratório Lundbeck. É realmente um enorme exagero querer acreditar que o escitalopram possa ser melhor do que o citalopram, porque a substância ativa é a mesma. Citalopram é um estereoisômero, constituído por uma parte ativa e uma molécula de espelho inativa, e escitalopram apenas contém a substância ativa. Quando estudado por Lundbeck em seus próprios ensaios clínicos comparando uma droga com a outra, a molécula ativa é melhor do que ela própria.

No entanto, quando pesquisadores independentes fizeram uma metanálise baseada em comparações indiretas, comparando Escitalopram com placebo e Citalopram com placebo, não houve diferença [13]. Seus resultados são muito reveladores. Em uma metanálise de sete ensaios comparando drogas (2.174 pacientes), a eficácia foi significativamente melhor para o escitalopram do que o citalopram (odds ratio 1,60; intervalo de confiança de 95% 1,05 a 2,46). Para a comparação indireta ajustada de 10 ensaios controlados de citalopram com placebo e 12 de escitalopram com placebo (2.984 e 3.777 pacientes, respectivamente), o escitalopram não foi melhor do que o citalopram (indireto OR 1.03, 0.82 a 1.30). Uma discrepância semelhante foi encontrada para a aceitabilidade do tratamento. Tais resultados colocam sérias dúvidas sobre a confiabilidade das metanálises de redes com comprimidos para a depressão.

A vortioxetina parece ser uma droga muito pobre. Quando pesquisadores independentes compararam a vortioxetina com duloxetina e venlafaxina em metanálises, esses fármacos foram significativamente mais eficazes do que a vortioxetina em três dos quatro níveis de dose testados.[14]  É de se notar que cada um dos autores de todos os ensaios de curto prazo publicados tinha significativos vínculos comerciais com o laboratório Lundbeck. Esta é uma forma segura de controlar que o que é publicado dê sustentação às ambições de marketing da empresa.

Tais vínculos também foram evidentes na metanálise de Lundbeck que comparou escitalopram com citalopram. Todos os três autores trabalharam para Forest, o parceiro dos EUA da Lundbeck, um como consultor e os outros dois na própria empresa. O que devemos fazer de um artigo publicado em um suplemento comprado para uma revista editada por uma pessoa que também é comprada pela empresa?[15] Nada.

As metanálises de rede de dados de avaliação que foram publicadas não são confiáveis

Em um estudo de metanálises de rede, os autores utilizaram dados de 74 ensaios controlados por placebo registrados na FDA de 12 comprimidos para a depressão e suas 51 publicações correspondentes. [16]  Para cada conjunto de dados, a metanálise de rede foi utilizada para estimar os tamanhos de efeito para 66 possíveis comparações por pares dessas drogas. Para avaliar como o viés no relato de apenas uma droga pode afetar o ranking de todas as drogas, eles realizaram 12 metanálises de redes diferentes para análise hipotética. Para cada uma dessas metanálise de rede, eles usaram dados publicados para um medicamento e os dados da FDA para os outros 11 medicamentos. Eles descobriram que os tamanhos de efeito em pares para drogas derivadas da metanálise de redes de dados publicados e aqueles da metanálise de rede de dados da FDA diferiram em valor absoluto em pelo menos 100% em 30 de 66 comparações par pares (45%).

Extensa propaganda na mídia

A metanálise da rede publicada em Lancet não contém nada de novo, e o que é afirmado como sendo novo é tão pouco confiável que devemos ignorá-lo. Esses fatos não impediram o primeiro autor dessa metanálise, Andrea Cipriani, exagerar o artigo ao extremo, p. ex. na BBC News. [17]

“O pesquisador principal, Andrea Cipriani, da Universidade de Oxford, disse à BBC: ’Este estudo é a resposta final a uma controvérsia de longa data sobre se os antidepressivos funcionam na depressão’ … Os cientistas dizem que resolveram um dos maiores debates da medicina após um estudo de grandes proporções haver descoberto que os antidepressivos funcionam. O estudo … mostrou grandes diferenças na eficácia de cada droga “.

“Os autores do relatório, publicado na Lancet, disseram que foi mostrado que muitas mais pessoas poderiam se beneficiar das drogas … O Royal College of Psychiatrists disse que o estudo ‘finalmente põe um fim na polêmica sobre os antidepressivos’. ”

“Pesquisadores acrescentaram … Pelo menos um milhão a mais de pessoas no Reino Unido se beneficiariam com tratamentos, incluindo os antidepressivos”.

Qual é a realidade?

É ainda realidade, além das sérias falhas nas pesquisas com depressão – entre as quais as mais importantes são a falta de duplo cego devido aos evidentes efeitos colaterais das pílulas, os sintomas de abstinência no grupo placebo devido a que as pessoas já se encontravam tomando pílulas para a depressão antes da randomização, o financiamento da indústria, o relato seletivo e a manipulação dos dados – que o efeito médio é consideravelmente inferior daquele clinicamente relevante. Na metanálise de rede da Lancet, a média da base de dados dos escores de gravidade na Escala Hamilton de Avaliação da Depressão foi 25.7, que é considerada depressão muito severa de acordo com o Manual de Medidas Psiquiátricas da Associação Americana de Psiquiatria. [18] A afirmação que repetidamente é feita de que essas drogas funcionam para a depressão grave é errada. E mais ainda, quando algumas vezes é descoberto em metanálises que o efeito parece ser mais amplo na depressão severa do que na moderada, isso não passa de um artifício matemático: quanto maior o escore de depressão na base de dados, mais os vieses irão distorcer o resultado. [19]

Se o equilíbrio entre benefícios e danos das pílulas para a depressão fosse positivo, menos pessoas cairiam foram enquanto em drogas do que aquelas em placebos. A metanálise de rede não relatou em parte alguma a média dos indicadores de abandono do tratamento com as drogas, mas parece haver sido muito próximo a 1, o que significa que as drogas não eram melhores do que o placebo. Mas é pior do que isso. Nós temos acesso aos relatórios de estudos clínicos feitos para drogas psiquiátricas das agências europeias de regulação, que são mais confiáveis do que as empresas farmacêuticas publicam. Eles também nos permitem incluir pacientes que as empresas farmacêuticas excluíram para a análise. A despeito dos vários vieses nas pesquisas, que incluíram os efeitos da abstinência no grupo placebo, nós achamos significativamente maior número de pessoas que abandonaram o tratamento com drogas do que com placebo (Tarang Sharma, comunicação pessoal, submetida à publicação). O que significa que placebo é melhor do que droga.

Use psicoterapia para a depressão, não pílulas, e ajude as pessoas a deixarem de tomar as pílulas  

A minha conclusão é que os pacientes não devem ser tratados com pílulas para a depressão. Eu não mais as chamo de antidepressivos, na medida em que são ineficazes e aumentam o risco de suicídio e violência, que é o pior caso a levar ao homicídio, não havendo limite de idade. [20,21]   E mais ainda, essas pílulas têm numerosos outros efeitos colaterais, p. e., disfunção sexual em pelo menos a metade dos pacientes que tinham uma vida sexual normal antes de haverem começado a tomar as pílulas.

Os pacientes deveriam ser tratados com psicoterapia, que suspende o risco de nova tentativa de suicídio naqueles que foram admitidos após uma tentativa de suicídio. Com respeito aos que estão atualmente tomando pílulas para a depressão, se deveria ajudar a diminuir lenta e seguramente a sua prescrição até poder deixar definitivamente de tomá-las, e deveríamos todos ter como foco a oferta de cursos sobre a desmedicação (veja www.iipdw.com e www.deadlymedicines.dk). Um dos meus alunos de doutorado e eu damos aulas em tais cursos e nós temos um título aprovado e submetemos um protocolo para Cochrane Review dos estudos sobre o desmame das pílulas para a depressão.

Referências Bibliográficas:

  1.  Gøtzsche PC. Deadly medicines and organised crime: How big pharma has corrupted health care. London: Radcliffe Publishing; 2013. 
  2.  Gøtzsche PC. Deadly psychiatry and organised denial. Copenhagen: People’s Press; 2015. 
  3.  Hughes S, Cohen D, Jaggi R. Differences in reporting serious adverse events in industry sponsored clinical trial registries and journal articles on antidepressant and antipsychotic drugs: a cross-sectional study. BMJ Open 2014;4:e005535. 
  4.  Laughren TP. Overview for December 13 Meeting of Psychopharmacologic Drugs Advisory Committee (PDAC). 2006 Nov 16. http://www.fda.gov/ohrms/dockets/ac/06/briefing/2006-4272b1-01-FDA.pdf 
  5.  Laughren TP. The scientific and ethical basis for placebo-controlled trials in depression and schizophrenia: an FDA perspective. Eur Psychiatry 2001;16:418-23. 
  6.  Noury JL, Nardo JM, Healy D, et al. Restoring Study 329: efficacy and harms of paroxetine and imipramine in treatment of major depression in adolescence. BMJ 2015;351:h4320. 
  7.  Turner EH, Matthews AM, Linardatos E, et al. Selective publication of antidepressant trials and its influence on apparent efficacy. N Engl J Med 2008;358:252–60. 
  8.  Ioannidis JPA. Effectiveness of antidepressants: an evidence myth constructed from a thousand randomized trials? Philosophy, Ethics, and Humanities in Medicine 2008;3:14. 
  9.  Cipriani A, Furukawa TA, Salanti G, et al. Comparative efficacy and acceptability of 21 antidepressant drugs for the acute treatment of adults with major depressive disorder: a systematic review and network meta-analysis. Lancet. Published Online February 21, 2018. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(17)32802-7. 
  10.  Jakobsen JC, Katakam KK, Schou A, et al. Selective serotonin reuptake inhibitors versus placebo in patients with major depressive disorder. A systematic review with meta-analysis and Trial Sequential Analysis. BMC Psychiatry 2017;17:58. 
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  13.  Alkhafaji AA, Trinquart L, Baron G, et al. Impact of evergreening on patients and health insurance: a meta analysis and reimbursement cost analysis of citalopram/escitalopram antidepressants. BMC Med 2012;10:142. 
  14.  Cosgrove L, Vannoy S, Mintzes B, et al. Under the influence: the interplay among industry, publishing, and drug regulation. Account Res 2017;24:99-115. 
  15.  Gorman JM, Korotzer A, Su G. Effi cacy comparison of escitalopram and citalopram in the treatment of major depressive disorder: pooled analysis of placebo- controlled trials. CNS Spectr 2002;7(4 Suppl. 1):40–4. 
  16.  Trinquart L, Abbé A, Ravaud P. Impact of reporting bias in network meta-analysis of antidepressant placebo-controlled trials. PLoS ONE 2012;7(4): e35219. 
  17.  Therrien A. Anti-depressants: Major study finds they work. BBC News 2018; 22 Feb. http://www.bbc.co.uk/news/health-43143889
  18.  Fournier JC, DeRubeis RJ, Hollon SD, et al. Antidepressant drug effects and depression severity: a patient-level meta-analysis. JAMA 2010;303:47–53. 
  19.  Gøtzsche PC, Gøtzsche PK. Cognitive behavioural therapy halves the risk of repeated suicide attempts: systematic review. J R Soc Med 2017;110:404-10. 
  20.  Bielefeldt AØ, Danborg PB, Gøtzsche PC. Precursors to suicidality and violence on antidepressants: systematic review of trials in adult healthy volunteers. J R Soc Med2016;109:381-92. 
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