Novas Diretrizes para a Atenção Primária do Canadá envolvendo a Desprescrição de Benzodiazepínicos

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CAMILASaiu recentemente um artigo sobre novas diretrizes para a atenção básica do Canadá, envolvendo os benzodiazepínicos (ARBs). Alguns médicos da University of Ottawa, em Ontário (Canadá), publicaram uma série de diretrizes clínicas, com o objetivo de auxiliar médicos a desprescrever, de forma segura, benzodiazepínicos. As diretrizes baseadas em evidências, foram publicadas na edição de maio do periódico Canadian Family Physician, onde observam que os benzodiazepínicos ainda são largamente prescritos para o tratamento a longo prazo da insônia em adultos.

Apesar dos benefícios a curto prazo, como maior rapidez em iniciar o sono e uma hora a mais na duração do sono, o uso crônico dos ARBs pode levar à dependência física e psicológica. Além de novas evidências mostrarem que sua eficácia diminui após 4 semanas e os efeitos adversos permanecem. Isso acontece porque agonistas de receptores de benzodiazepínicos se ligam a receptores de ácido y- aminobudírico tipo A, mas com seu uso excessivo por um prolongado período de tempo o receptor pode mudar fisicamente, diminuindo seu potencial para sedação. Pelos efeitos adversos – quedas, demência, acidentes automobilísticos, dependência física, entre outros –  e alta prescrição no tratamento da insônia, foi consenso entre familiares, médicos, enfermeiras e geriatras, que os ARBs são a classe de medicamentos mais importantes para o desenvolvimento de diretrizes de desprescrição.

O objetivo do artigo foi revisar sistematicamente os benefícios e danos da desprescrição de ARBs, usando a opinião dos pacientes e a literatura sobre o assunto, e assim  desenvolver um guia baseado em evidências que assista profissionais da saúde e usuários na tomada de decisão e na redução de ARBs. Essa iniciativa é de grande relevância, principalmente quando 13% da população do Canadá tem insônia, uma das mais numerosas demandas da atenção primária daquele país.

A equipe de desenvolvimento do guia (EDG) consistiu em 8  profissionais da saúde, 1 médico da família, 2 psiquiatras, 1 psicólogo clínico, 1 farmacologista clínico, 2 farmacêuticos clínicos, 1 geriátra e 1 metodologista. A equipe usou o sistema GRADE* para o desenvolvimento do guia e a lista de Schünemann e colegas, para orientar a construção de métodos para o desenvolvimento de diretrizes de descontinuidade. O EDG também formulou a principal questão de manejo clínico, da seguinte forma, utilizando a abordagem ‘PICO’ (população, intervenção, comparação e resultado): quais são os efeitos (benefícios e danos) da desprescrição de ARBs comparado com o uso continuado em adultos com insônia.

Antes de executar a pesquisa, a equipe realizou uma revisão sistemática para avaliar os efeitos das diferentes abordagens de desprescrição das ARBs, além de investigar os efeitos comparativos de diferentes intervenções de desprescrição, que incluíam interrupção abrupta, “afunilamento”, troca ou substituição de terapia, entre outros. Resultados primários incluíram qualidade de sono, efeito na cognição (melhora ou piora), eventos adversos de retirada de drogas, taxa de cessação (proporção de pacientes que pararam completamente as ARBs) e danos (sedação diurna, equilíbrio, acidentes com veículos motorizados, quedas, mortalidade, dependência). Já os resultados secundários incluíram a carga (burden) de pílula benzodiazepínica (média da dose de ARBs) e satisfação dos pacientes.

O público alvo do guia de desprescrição de benzodiazepínicos são adultos que tomam ARBs para tratamento de desordem de insônia: insônia primária e insônia por comorbidade (onde comorbidades subjacentes são gerenciados), com idades entre 18 e 64 anos, que tomam ARBs a maioria dos dias da semana, por mais de 4 semanas, e adultos idosos com mais de 65 anos que tomam ARBs, independente do tempo. O guia não é recomendado para outros tipos de desordem do sono, ansiedade não tratada, depressão ou condições físicas ou mentais que poderiam estar causando ou agravando a insônia. Esses pacientes devem ser tratados apropriadamente pelas suas condições primárias antes de considerar a desprescrição ou serem encaminhados ao psicólogo ou psiquiatra.

O resultado da revisão sistemática demonstra que muitos pacientes podem interromper com sucesso os ARBs , com aproximadamente 60% a 80% dos pacientes capazes de interromper o uso, como resultado de uma intervenção de desprescrição. Em relação ao ‘afunilamento’ das doses, a taxa média de sucesso é entre 25% a 80%, em comparação com taxas de cessação de 10% a 20% do cuidado usual quando a deprescrição não é iniciada.

A equipe que desenvolveu o guia de desprescrição percebeu que envolver o paciente na discussão sobre os ARBs e saber sobre os objetivos e preferências no uso de ARBs foi um importante primeiro passo, o que foi confirmado pelos médicos que participaram da implementação do projeto. Os pacientes indicaram que seriam mais suscetíveis a desprescrição se houvesse um plano claro de redução gradual e eles sabiam o que esperar. A justificativa para a desprescrição deve ser claramente explicado, um plano de afunilamento deve ser negociado, e as seguintes evidências devem ser discutidas: riscos de uso contínuo de ARBs (por exemplo, quedas, acidentes automobilísticos) e potenciais benefícios de descontinuação (por exemplo, redução do risco de queda, menos sedação, melhora no pensamento e na memória); efeito terapêutico de ARBs pode ser perdido dentro de 4 semanas devido a alterações do receptor (mas os efeitos amnésicos persistir); e  Efeitos adversos leves de abstinência de drogas podem ser esperados durante o afunilamento a curto prazo (alguns dias a semanas).

No entanto, a revisão sistemática não identificou estudos que compararam diferentes estratégias de redução por afunilamento. Além disso, foi constatado que Pacientes em uso de doses mais baixas no início do estudo e usando ARBs por um período mais curto, tendem a ter maiores taxas de abandono e menor risco de reiniciar o uso de seus ARBs. Sofrimento psicológico e pior estado geral de saúde no início do estudo parece aumentar o risco de precisar reiniciar o uso do ARBs. A equipe recomenda que ao decidir diminuir as doses e as taxas, considere usar uma taxa mais lenta com as pessoas com maior probabilidade de ter um risco maior de recaída (por exemplo, uso a longo prazo ou histórico de sofrimento psicológico).

Preocupação com o potencial de sintomas de abstinência costuma ser  a principal razão pela qual os prescritores muitas vezes não abordam os pacientes sobre a desprescrição de ARBs. Mas a  revisão sistemática constatou que não houve diferença nas pontuações gerais dos sintomas de abstinência de ARBs para redução gradual em comparação com os cuidados habituais ou a continuação de ARBs. No grupo de afunilamento desta pesquisa, foram relatados mais problemas para dormir aos 3 meses em comparação com a continuação de ARBs (diferença média de 16,1 maior em uma escala de 100 pontos de “problemas para dormir”, 95% CI 15,0 a 17,2), mas qualquer diferença em relatos de problemas para dormir não passava mais de 12 meses. O afunilamento gradual de agentes de ação curta não elimina os sintomas de abstinência, mas melhora sua gravidade, com os sintomas começando a aparecer quando as doses são reduzidas para cerca de 25% da linha de base.

Uma variedade de estratégias e intervenções de gestão de comportamento, como a TCC, tem sido usada para ajudar com insônia e pode ser considerada como alternativa não-medicamentosa se a insônia ocorrer durante ou após a desprescrição de ARBs. A revisão sistemática também constatou que, quando usada como parte de uma intervenção de desprescrição, a TCC combinada com o desmame, melhorou as taxas de cessação de ARBs pós-intervenção em comparação com o afunilamento sozinho. Isso é consistente com a atual base de evidências.

A equipe ressalta que o afunilamento gradual reduz, mas pode não eliminar, os sintomas de abstinência. Um plano de monitoramento deve ser desenvolvido em conjunto com o paciente. A cada passo do afunilamento (aproximadamente a cada 1 a 2 semanas durante a duração), monitore a gravidade e a frequência dos sintomas adversos de abstinência (ansiedade, irritabilidade, sudorese, sintomas gastrointestinais, insônia), benefícios potenciais (por exemplo, menos sedação diurna, melhor cognição, menos quedas) e humor, qualidade do sono e alterações no sono.

Outro dado importante para os profissionais de saúde é que ao oferecer desprescrição de ARBs é essencial estar atento para depressão pré-existente ou incidente ou transtornos de ansiedade. Comorbidades psiquiátricas são comuns na insônia. Em um estudo longitudinal de 6 anos, 76 indivíduos que tiveram insônia e estavam tomando benzodiazepínicos tiveram um aumento de 5 vezes risco de desenvolver depressão e um risco de 3 vezes de desenvolver um transtorno de ansiedade em comparação com indivíduos que não tinham insônia e não usavam benzodiazepínicos.

Como fruto dessa pesquisa foram criadas ferramentas: algoritmo de apoio à decisão e um panfleto de informações do paciente correspondente, ambos  destinam-se a apoiar os profissionais de saúde no envolvimento dos pacientes sobre este importante tópico e implementando planos de deprescrição com eles, e que será disponibilizada na atenção primária do Canadá. O trabalho do EDG para criação das diretrizes de desprescrição, foi um trabalho credível, desenvolvido com uma abordagem rigorosa e baseada em evidências. Oferece ao clínico, portanto, um argumento claro e confiável para  as discussões sobre a desprescrição de ARBs com os pacientes. Por que não fazer algo similar no Brasil?

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*O sistema GRADE foi proposto pelo grupo Grading of Recommendations, Assessment, Development and Evaluation (GRADE) e é um sistema que fornece informação clara e concisa tanto sobre a qualidade da evidência, quanto sobre a força da recomendação. Fonte: Portal Ministério da Saúde. Para saber mais http://www.gradeworkinggroup.org/

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Pottie, K., Thompson, W., Davies, S., Grenier, J., Sadowski, C. A., Welch, V., … Farrell, B. (2018). Deprescribing benzodiazepine receptor agonists: Evidence-based clinical practice guideline. Canadian Family Physician64(5), 339–351. (link)