Os excelentes resultados da Abordagem do ‘Diálogo Aberto’ no tratamento de Psicose Aguda

Abordagem finlandesa não utiliza medicamento como tratamento de primeira linha e aposta na dialogicidade

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CAMILAO artigo, The open dialogue aproach to acute psychosis: its poetics and micropolitics (“A abordagem do Diálogo Aberto para a psicose aguda: sua poética e micropolítica”), escrito conjuntamente por um dos idealizadores da abordagem finlandesa, Jakko Seikkula, e pela pesquisadora americana Mary Olson, pretende trazer dois níveis de análise do Diálogo Aberto, uma que seria a “poética” e o outro  que seria a “micropolítica”. O nível da “poética” inclui três princípios desta abordagem: tolerância a incerteza, dialogismo e polifonia na rede social. Já a “micropolítica” são as amplas práticas institucionais que dão suporte a este tratamento. O artigo é especialmente relevante ao apresentar ferramentas importantes, e não usuais, utilizadas no tratamento da psicose, além de demonstrar através de evidências os incríveis resultados apresentados pelo tratamento do Diálogo Aberto.

O artigo começa com uma trajetória histórica, os autores mostram como a equipe que desenvolveu a abordagem passa primeiramente pela experiência da Terapia de família sistêmica, antes de chegar ao que é hoje. A equipe do Hospital de Keropudas começou  atendendo famílias em 1980 com o modelo de terapia sistêmica da equipe de Milão, porém alguns dilemas práticos, como a dificuldade de envolver as famílias, levaram o grupo a modificar suas ideias e práticas. Então, em 1984, a equipe começou a organizar um encontro de tratamento antes de qualquer tipo de terapia. Com o tempo, essa forma de encontros evoluiu até chegar a ser a principal linha terapêutica da abordagem, apoiando-se na ideia de dialogismo de Bakhtin, Voloshinov e Vygotsky.

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Após esse rápido percurso histórico, o artigo aprofunda mais sobre as características do Diálogo Aberto. O formato básico dessa abordagem é o já mencionado encontro de tratamento, o qual deve ocorrer 24 horas depois do primeiro contato da família do psicótico. O encontro é organizado por equipe de crise móvel, especificamente por aquele profissional primeiramente contatado pela família, participam dela a equipe de ambulatório e internação, e se possível acontece na casa dessa família. Reunindo a pessoa em angústia profunda além da equipe,  com todas as pessoas importantes (familiares, amigos, outros profissionais, etc.) e que estão conectados com a situação. Todas as decisões sobre o andamento da terapia, medicação e hospitalização são discutidas e feitas enquantos todos estão presentes. Além disso, é essa mesma equipe que continua envolvida no processo terapêutico ao longo do tempo.

Como dito anteriormente, os autores separam o nível “poético” do Diálogo Aberto em três princípios. A primeira delas, a tolerância à incerteza, se manifesta na prática pelos encontros frequentes e pela qualidade do diálogo. Mas, acima de tudo, a  incerteza só é capaz de ser tolerada se a terapia é experimentada como segura, para que isso ocorra é dada uma grande atenção ao estabelecimento de um contexto terapêutico confiável, de maneira que a ansiedade e o medo decorrentes da crise possa ser mediados e contidos, através da escuta e resposta a cada voz, portanto, legitimando cada participante do encontro. Por fim, os terapeutas evitam criar hipóteses sobre o caso, que podem acabar sendo silenciadoras,  sendo assim, eles chegam ao encontro sem uma definição preliminar do problema, na esperança que o diálogo em si traga à luz novas ideias e histórias.

Entrelaçado à ideia de tolerância à incerteza, está o dialogismo e a polifonia na rede social. O dialogismo está ligada a ideia Bakhtiniana do diálogo, que vê a linguagem e comunicação como construturas da realidade social. Dessa forma, o processo da escuta para o Diálogo Aberto é mais importante do que a entrevista. Por isso, o encontro de tratamento é tão aberto quanto possível, para dar a máxima oportunidade para que a rede social da pessoa em sofrimento fale sobre quaisquer problemas mais relevantes naquele momento. A equipe não decide temas antecipadamente. Já a polifonia na rede social, se dá nas múltiplas vozes e múltiplos assuntos que surgem desse encontro de tratamento, sem nenhuma tentativa de tentar descobrir uma verdade particular. A meta do encontro é gerar compreensão conjunta, ao invés de se esforçar por um consenso entre todos.

Entrando no segundo nível de análise, a “micropolítica” do Diálogo Aberto, ou seja, as práticas institucionais, o artigo considera que a efetividade dessa abordagem está intrinsecamente ligada ao contexto institucional e de treinamento. Para todo o pessoal da equipe, incluindo psiquiátricas, psicólogos, enfermeiras, assisntente sociais, existem um curso de 3 anos do programa de treinamento em terapia familiar. Vendo por esse lado, a abordagem do Diálogo Aberto não é um modelo que é aplicado mas uma série de práticas que são estabelecidas em toda a rede assistencial.

Como discussão final e conclusiva, são apresentadas as estatísticas de resultados de um estudo quasi-experimental, parte de um projeto nacional na Finlândia, onde a Lapônia Ocidental era uma dos três centros de pesquisa que participavam do projeto. A Lapônia Ocidental teve a tarefa de iniciar o tratamento dos pacientes em primeiro surto, que chegavam até o Hospital de Keropuda, sem ao mesmo tempo iniciar a medicação neuroléptica, enquanto os outros dois centros de pesquisa utilizavam o tratamento padrão, utilizando medicamento logo no início do tratamento. Ao comparar o centro de pesquisa da Lapônia Ocidental com os outros dois centros, os resultados diferem significativamente:

Apenas 35% dos pacientes do Diálogo Aberto necessitaram medicação neuroléptica ao longo do tratamento, em contraste com os 100% dos pacientes que foram medicados no grupo comparação;

  • Nos dois anos de acompanhamento, 82% dos pacientes tratados com o Diálogo Aberto não tiveram sintomas psicóticos, ou só tiveram sintomas psicóticos leves não visíveis. Enquanto isso só aconteceu com 50% do grupo comparação;
  • Os pacientes da Lapônia Ocidental tem maior índice de emprego, com apenas 23% de seus pacientes vivendo com auxílio do governo. Enquanto 57% dos pacientes do grupo comparação vivem de auxílio do governo;
  • A reincidência da doença aconteceu em 24% dos casos do Diálogo Aberto, comparado aos 71% do grupo comparação

Uma razão apontada pelos pesquisadores para esse melhor resultado no grupo do Diálogo Aberto, foi a resposta terapêutica rápida à psicose, abreviando o tempo que o paciente fica sem tratamento e evitando a cronificação da mesma.

Por conseguinte, o Diálogo Aberto mostra ser uma abordagem potente, consequência de uma transformação de um sistema psiquiátrico inteiro, acompanhado pelo suporte administrativo do Hospital, engajado com os médicos da atenção básica e psiquiátricas e promovendo o treinamento da equipe. Essa potência se faz clara nos dados acima citados, mas também no fato, de que a abordagem do Diálogo Aberto não trabalha com a medicação como primeira linha de tratamento, e ainda sim,  obteve os melhores resultados em relação o grupo de comparação que utilizava a medicação com todos os pacientes, desde o início do tratamento. Como resultado, desde que a abordagem foi institucionalizada, a incidência de novos casos de esquizofrenia na Lapônia Ocidental diminuiu, dado realmente impressionante e significativo.

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SEIKKULA, J.; OSLON M.E. The open dialogue aproach to acute psychosis: its poetics and micropolitics, Family Process, v. 42, nº3, 2004. → (link)

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Graduada em Psicologia pela UERJ, especialista em Terapia Familiar pelo IPUB/UFRJ, com ênfase em saúde mental. Pesquisadora auxiliar do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE/Fiocruz) e Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial(LAPS/ENSP/Fiocruz) Produtora e apresentadora do podcast Enloucast. Além de atuar como psicóloga clínica. Áreas de interesse: Saúde Mental, Terapia Sistêmica, Diálogo Aberto, Construcionismo Social, Medicalização e Patologização da vida