O tratamento de transtornos mentais com drogas não é o mesmo tipo de atividade que é o uso de drogas na medicina. Drogas psiquiátricas não têm como alvo uma doença subjacente ou mecanismos produtores de sintomas; elas criam um estado alterado de funcionamento mental que é sobreposto a sentimentos e comportamentos subjacentes. Por conseguinte, as implicações éticas das duas situações são diferentes.
Sou grata ao editor de Epidemiology and Psychiatric Sciences Corrado Barbui, por publicar no ano passado meu artigo sobre o modelo centrado nas drogas para entender a ação das drogas na psiquiatria, e a Carmine Pariante e Catherine Harmer e Phil Cowen que fornecem comentários sobre o artigo [1]. Foi muito útil para aguçar as minhas ideias haver respondido aos comentários e ter participado de um debate ao vivo com o professor Pariante, e também sou grata aos que persistentemente me questionaram em recentes apresentações que dei!
Pariante, Harmer e Cowen conduziram pesquisas interessantes que ultrapassam os limites dos diagnósticos. É particularmente impressionante, portanto, que ambos os comentários confirmem a importância do modelo de ação da droga centrado na doença para a psiquiatria moderna. Ambos os comentaristas afirmam que as drogas psiquiátricas funcionam visando as anormalidades subjacentes baseadas no cérebro que supostamente produzem sintomas psiquiátricos. Harmer e Cowen referem-se a pesquisas sobre a associação da dopamina e a psicose e aos trabalhos com os efeitos dos antidepressivos no processamento emocional. Eles concluem que “aumentar a função da 5-HT [serotonina] reverte uma função fisiopatológica central para a experiência da depressão”. [2] Pariante descreve o trabalho experimental com drogas anti-inflamatórias como “visando um sistema bioquímico no corpo, para induzir efeitos em direção contrária no cérebro, para eventualmente afetar processos relevantes para a depressão ”,
Tanto Pariante quanto Harmer e Cowen argumentam que a ação das drogas na psiquiatria é essencialmente a mesma que no resto da medicina. Pariante defende “por que não podemos aceitar que os medicamentos psicotrópicos são como todos os outros remédios da medicina?”. [3]
Pariante corretamente chama a atenção (assim como eu) que a maioria das drogas médicas não tem como alvo a causa final das doenças que são usadas para tratar. Os anti-inflamatórios não tratam a causa de uma infecção, por exemplo, mas podem ser úteis na redução do inchaço, dor e irritação que é produzida pela resposta inflamatória do organismo a um agente infeccioso. As drogas anti-asma, como o salbutamol, não abordam em primeiro lugar os mecanismos biológicos que causam a asma, mas aliviam o sintoma de falta de ar ao reverter a constrição das vias aéreas.
Mas a questão é que na psiquiatria, apesar do que esses autores argumentam, não temos ideia de quais mecanismos estão por trás dos padrões de sentimentos e comportamentos que chamamos de sintomas, e nenhuma evidência de que as drogas que usamos agem nesses mecanismos. Não temos ideia de quais processos biológicos estão associados à depressão, à esquizofrenia ou a qualquer outro transtorno mental, sem falar em evidências de qualquer processo causal. Mesmo se o fizéssemos, isso não seria suficiente para nos permitir ignorar os efeitos gerais que as drogas psiquiátricas exercem sobre a atividade mental.
Harman e Cowen argumentam que há pesquisas suficientes a respeito da disfunção da dopamina como base da psicose. Já fiz uma crítica abrangente dessa linha de pesquisa. [4] Apenas para repetir alguns pontos: alguns antipsicóticos como a clozapina têm efeitos relativamente fracos no sistema da dopamina e efeitos mais fortes sobre outros sistemas neuroquímicos; não conhecemos a base neuroquímica dos efeitos indutores de psicose da anfetamina, e a anfetamina afeta vários neurotransmissores, não apenas a dopamina; a maioria dos testes de atividade de dopamina não mostra diferenças entre pessoas com psicose ou esquizofrenia e aquelas sem; testes que mostram diferenças não controlaram as muitas outras coisas que são conhecidas por afetar a atividade da dopamina, incluindo estresse, movimento, tabagismo e, em muitos estudos, os efeitos residuais do tratamento antipsicótico atual ou anterior.
Harmer e Cowen também citam seu trabalho sobre os efeitos dos antidepressivos no processamento de emoções. Este trabalho é interessante, e Harmer e Cowen devem ser parabenizados por tentar investigar a maneira como os antidepressivos alteram o funcionamento mental ‘normal’, e por considerar o impacto de alterações subjetivas como a sedação, mas os resultados não são consistentes ou convincentes.
Tomemos um exemplo típico. [5] Os pesquisadores deram a 24 voluntários uma dose única do antidepressivo duloxetina ou um placebo, e mediram suas respostas a imagens de expressões emocionais e sua capacidade de classificar e recordar corretamente palavras representando características de personalidade agradáveis e desagradáveis seis horas depois. O achado mais forte foi que as pessoas que tomaram a duoloxetina foram mais propensas a reconhecer a expressão de nojo do que aquelas que tomaram placebo (p = 0,002). Elas também foram ligeiramente mais propensas a reconhecer uma expressão feliz (p = 0,05). Não houve diferenças no reconhecimento de raiva, medo, tristeza, surpresa ou expressões neutras. Não houve diferenças na classificação ou na recordação correta das características de personalidade, mas as pessoas que tomaram duoloxetina tiveram uma probabilidade ligeiramente maior de lembrar falsamente os descritores de personalidade ‘positivos’ do que as que receberam placebo (p = 0,04). A duoloxetina fez com que as pessoas se sentissem tontas, ansiosas, enjoadas e tristes, e relataram alterações no humor e nos níveis de energia. Os autores concluíram que o experimento demonstrou efeitos rápidos no processamento emocional que são independentes das alterações subjetivas relatadas, mas os resultados não suportam a hipótese de que a duloxetina reduz o pensamento negativo (viés) ou aumenta o pensamento positivo, especialmente porque não houve correção para testagem múltipla.
Mesmo se tivéssemos evidências de que a atividade da dopamina causa psicose, ou que a baixa serotonina causa depressão, ainda temos que explicar o fato de que mudar o cérebro por meio de drogas, cirurgia, lesão ou doença altera a natureza de nossa experiência subjetiva e o comportamento. Mudar o cérebro pode redefinir o substrato da nossa vida mental, sobrepondo um novo e alterado o estado de funcionamento do cérebro. Esse novo estado interage e pode anular estados mentais pré-existentes e seus comportamentos associados, incluindo aqueles a que nos referimos como depressão, ansiedade, psicose etc., sem necessariamente ter qualquer impacto específico nos processos neurológicos que podem ser associados ou produzirem esses estados.
Todos nós sabemos disso se pensarmos nos efeitos do álcool. Nós falamos sobre o uso do álcool para ‘afogar nossas mágoas’, sem implicar que pensamos que o álcool está especificamente direcionado para o mecanismo dessa tristeza. A frase refere-se ao fato de que o estado alterado produzido pelo álcool é sobreposto a sentimentos subjacentes, substituindo-os temporariamente. Todas as drogas que têm o que poderíamos chamar de ‘efeitos psicoativos’ podem sobrepor as alterações que produzem as emoções, funções cognitivas e comportamento existentes, e isso inclui todas as drogas comumente prescritas para problemas de saúde mental.
As drogas psicoativas afetam as atividades mentais normais, incluindo pensamento, percepção, emoção e comportamento de maneiras características. Estamos familiarizados com o tipo de alterações produzidas por drogas recreativas, mas prestamos menos atenção àquelas produzidas por outros medicamentos prescritos para transtornos mentais, e alguns medicamentos prescritos para transtornos físicos (esteróides, por exemplo). No entanto, como o álcool, opiáceos e maconha, drogas como antipsicóticos, antidepressivos e lítio produzem determinadas alterações mentais, que estão ligadas a algumas das alterações físicas que produzem (veja a Tabela de efeitos psicoativos neste artigo de 2015, p. 2316). A questão é que, a menos que desconsideremos o impacto dessas alterações de alguma forma, não podemos concluir que um determinado medicamento atinja seus efeitos por meio de um mecanismo cerebral específico.
Pariante assinala corretamente que as drogas médicas também modificam todo o corpo de várias maneiras. A quimioterapia para o câncer altera os processos de reprodução celular em geral e não se restringe aos efeitos nas células cancerígenas, daí seus efeitos adversos debilitantes e perigosos às vezes. No entanto, afeta as células cancerígenas inibindo sua tendência de reprodução descontrolada. Atua especificamente, portanto, no mecanismo biológico anormal que produz o câncer. Se a quimioterapia não atuasse em mecanismos relevantes para a produção de câncer, isso não funcionaria. Não são seus efeitos gerais que são úteis, são de fato prejudiciais; seus benefícios resultam de seus efeitos específicos nos processos que impulsionam o câncer. Em contraste, com drogas psicoativas o impacto geral delas no funcionamento mental e comportamental normal pode, por si só, explicar seu impacto nos sintomas de transtornos mentais. Não há necessidade de postular ações sobre mecanismos específicos de ‘doença’ ou de produção de sintomas em nível celular, químico ou fisiológico.
O mecanismo dos efeitos das drogas psicoativas nos sintomas do transtorno mental difere, portanto, da maneira pela qual a maioria dos medicamentos atinge seus efeitos. A maioria das drogas usadas na medicina geral pode ser entendida como funcionando de acordo com um modelo centrado na doença, agindo em mecanismos fisiológicos que produzem sintomas, mesmo que também afetem outros sistemas. Como descrevi em meu artigo original, há algumas exceções que envolvem o uso de drogas psicoativas, como opiáceos para o alívio da dor. Ao contrário de alguns outros analgésicos, os opiáceos são drogas psicoativas que produzem alterações mentais gerais, juntamente com seu efeito direto sobre os sistemas de condução da dor. A indiferença emocional produzida pelos opiáceos significa que as pessoas às vezes dizem que ainda sentem alguma dor, mas não se importam mais com isso. O estado de indiferença emocional é sobreposto à experiência de dor das pessoas, diminuindo o seu impacto, e este efeito pode ser distinguido da capacidade dos opiáceos e outras drogas analgésicas para reduzir as sensações de dor diretamente.
Em minha teoria da ação das drogas, não argumento que seja impossível encontrar drogas que visem os mecanismos subjacentes aos transtornos mentais, apenas afirmo que não temos evidência de que qualquer um de nossos atuais medicamentos funcione dessa maneira. Mas não seremos capazes de demonstrar conclusivamente que qualquer droga psicoativa tem uma ação de direcionamento na doença, a menos que possamos desconsiderar o impacto de seus efeitos psicoativos gerais.
O fato de não termos conseguido definir os mecanismos dos estados mentais ‘normais’ ou ‘transtornos mentais’ até agora pode refletir diferenças mais gerais entre a natureza dos seres humanos e sua biologia. O comportamento humano consiste em respostas complexas, intencionais e imprevisíveis à história e às circunstâncias únicas de cada indivíduo. Ao contrário dos sistemas físicos, incluindo os biológicos (isto é, corpos humanos), o comportamento humano não pode ser capturado ou entendido usando fórmulas universais. Ele pode ser explicado e entendido, mas não é ‘causado’ por outros eventos de forma inevitável, pois os eventos se sucedem em um sistema mecânico (veja meu blog anterior sobre a filosofia do conhecimento [7]). Embora existam indubitavelmente eventos neurofisiológicos que ocorrem quando alguém se sente deprimido, por exemplo, não está claro se conseguiremos mapeá-los com precisão e consistência no estado emocional. De fato, apesar de todas as resmas de pesquisas conduzidas sobre eles, ainda nem sabemos as funções precisas dos neurotransmissores, nem mesmo, por exemplo, a base neuroquímica de algo tão básico quanto a excitação.
Assim, mais financiamento para mais pesquisas visando a identificação de drogas com ações direcionadas, como é defendido por Carmine Pariante, pode estar apenas despejando dinheiro relevante em algo que não funciona. Ao invés de se insistir em uma situação que pode nunca ser alcançada, o que eu estou reivindicando é uma abordagem mais sofisticada, transparente e apropriadamente cautelosa sobre o uso de substâncias químicas que alteram a mente.
Que se tome o exemplo dos ‘antipsicóticos’ e lembrando que essas drogas foram inicialmente referidas como ‘inibidores neurológicos’ e ‘tranquilizantes maiores’ por pessoas que reconheceram as alterações que tais drogas produzem. Em voluntários humanos e em estudos em animais, os ‘antipsicóticos’ produzem um estado de atividade reduzida e incapacidade de resposta ao ambiente, assim como redução da reatividade emocional, da iniciativa e motivação (embora com distinções entre agentes individuais). Podemos ver imediatamente que esse estado terá impacto sobre alguém que esteja preocupado com crenças delirantes ou experiências internas, reduzindo a intensidade dos sintomas psicóticos e sua força emocional, juntamente com outros aspectos da experiência subjetiva, sem necessariamente ter qualquer efeito sobre os mecanismos específicos subjacentes à psicose. Também podemos ver que, embora os efeitos possam ser úteis na redução da intensidade dos sintomas psicóticos, eles podem ter um efeito prejudicial no funcionamento e na qualidade de vida de um indivíduo.
Apesar do desejo de Pariante de alinhar o uso de drogas em psiquiatria com o resto da medicina, o uso de drogas que ‘reorganizam’ os processos mentais normais para modificar sentimentos e comportamentos é um tipo fundamentalmente diferente do uso de drogas para atingir patologias corporais reconhecidas. Existem alguns pontos em comum, é claro. Na psiquiatria, como na medicina, a decisão de intervir com drogas ou outros meios depende de uma consideração dos danos e benefícios relativos de fazê-lo. O uso de drogas antiepilépticas pode causar mais danos do que benefícios após um ou dois ajustes, por exemplo, mas quando os ataques são recorrentes e mudam a vida, os efeitos adversos podem valer a pena. Da mesma forma, os benefícios do uso de um antipsicótico para suprimir os sintomas psicóticos podem superar os danos que podem ocorrer quando alguém está agudamente psicótico, mas o equilíbrio pode ser mais incerto após a recuperação.
Avaliar os benefícios e danos das intervenções que mudam o pensamento e o comportamento das pessoas é mais complicado do que pesar os efeitos de uma droga com efeitos puramente físicos. Nossa vida mental é o que nos faz ser o que somos. É fundamental para a nossa individualidade e sentido de nós mesmos. Além disso, as pessoas têm visões diferentes sobre a conveniência dos sentimentos e comportamentos aos quais nos referimos como ‘transtornos mentais’. A legislação de saúde mental existe porque quando as pessoas estão em estado de turbulência mental e confusão, elas podem não ver sua situação da maneira que os outros a veem. Elas podem não concordar com que algo esteja errado ou que qualquer coisa precisa ser mudada. Quando usamos drogas para mudar o comportamento das pessoas em tais situações, estamos fazendo algo semelhante a restringi-las. Estamos usando a força para evitar comportamentos que não gostamos (possivelmente por um bom motivo, se esse comportamento for perigoso). Algumas pessoas nos agradecerão quando tiverem se recuperado, mas sabemos que muitas não o farão. Muitas pessoas nunca verão o mundo como os outros o veem.
O tratamento médico típico e o uso de drogas na psiquiatria têm diferentes implicações éticas, portanto. Geralmente, há consenso de que o tratamento de alterações corporais prejudiciais é o desejável. É menos provável que haja concordância em induzir certas mudanças mentais e comportamentais. Insistir em equacionar as duas situações obscurece essas diferenças e apresenta o uso de drogas para sofrimento e transtorno mental como menos controverso do que realmente o é.
Bibliografia:
- Moncrieff J. Research on a ‘drug-centred’ approach to psychiatric drug treatment: assessing the impact of mental and behavioural alterations produced by psychiatric drugs. Epidemiol Psychiatr Sci 2018 Apr;27(2):133-40.
- Harmer CJ, Cowen PJ. How do drugs for psychiatric disorders work? Epidemiol Psychiatr Sci2018 Apr;27(2):141-2.
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- Moncrieff J. A critique of the dopamine hypothesis of schizophrenia and psychosis. Harv Rev Psychiatry 2009;17(3):214-25.
- Harmer CJ, Heinzen J, O’Sullivan U, Ayres RA, Cowen PJ. Dissociable effects of acute antidepressant drug administration on subjective and emotional processing m
- Yeomans D, Moncrieff J, Huws R. Drug-centred psychopharmacology: a non-diagnostic framework for drug treatment. BJPsych Advances 2015;21:229-36.
- Moncrieff J. Philosophy Part 3: Knowledge of mental states and behaviour – insights from Heidegger and others. 2017 November 1.