Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute a falta de eficácia e a pouca base de evidências para as drogas utilizadas no tratamento da psicose.A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
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As drogas antipsicóticas são o exemplo emblemático da psiquiatria e são altamente elogiadas nos manuais didáticos. Nos dizem que antes de sua chegada, muitos pacientes precisavam passar o resto de suas vidas em hospitais e outras instituições;[16:222] que a descoberta dos comprimidos na década de 1950 significou que muitos pacientes psicóticos claramente melhoraram sua qualidade de vida, possibilitando sua alta das instituições e reintegração na sociedade;[20:416] que pacientes que antes eram atormentados por suas doenças e eram agressivos agora podiam viver sozinhos ou em lares abrigados;[18:307] que os comprimidos para a psicose resultaram em uma diminuição no número de leitos hospitalares.[16:616]
Nos dizem que a clorpromazina foi uma revolução no tratamento dos transtornos psicóticos [16:560] e contribuiu em particular para o esvaziamento dos hospitais psiquiátricos;[18:307] e — antes da clorpromazina, do lítio, dos comprimidos para depressão e dos benzodiazepínicos — os pacientes gravemente doentes passavam a maior parte de suas vidas em instituições isoladas, atrás de portas trancadas, com janelas gradeadas, e a força física era utilizada — mas o desenvolvimento de drogas psiquiátricas na década de 1950 revolucionou o tratamento.[17:644]
Os psiquiatras propagam essa narrativa em todo o mundo para obter apoio para a sua especialidade, mas tudo o que foi mencionado acima está errado. Não há referências para as alegações absurdas, mas foi documentado que os comprimidos não tiveram nada a ver com o esvaziamento dos asilos. Além disso, é impossível para drogas que — de acordo com a escala padrão para avaliar o efeito na psicose — não tenham efeitos clinicamente relevantes (veja logo abaixo), produzir resultados tão dramáticos.
Visto que o “esvaziamento dos asilos” é o argumento central para a suposta revolução no tratamento psiquiátrico que começou com a clorpromazina em 1954, explicarei por que ele está errado. A confusão decorre, em particular, de estudos falhos realizados em Nova York. Os autores observaram que as populações nos asilos diminuíram após 1954 e atribuíram isso ao tratamento com as drogas. Estudos mais rigorosos foram realizados em Michigan e Califórnia por outros autores, que compararam pacientes tratados e não tratados. Eles constataram que o uso das drogas não aumentaram as taxas de alta.
Em 1985, um estudo desmascarou completamente o mito com um estudo que abrangeu todos os estados dos EUA e comparou duas tendências de nove anos nas taxas de alta, de 1946 a 1954 e de 1955 a 1963. A mudança percentual média nas taxas de alta foi de 172 antes da clorpromazina, um pouco maior do que com a clorpromazina, que foi de 164.
Também não existem estudos em outros países que apoiem esse mito. Na Inglaterra, as populações de pacientes internados começaram a diminuir antes da introdução das drogas; na França, as populações de pacientes internados aumentaram por 20 anos após a introdução das drogas; e na Noruega, o número de pacientes internados não mudou com a introdução das drogas.
A Comissão Conjunta sobre Saúde Mental e Doença Mental, encomendada pelo Congresso dos EUA, escreveu em 1961 que “As drogas revolucionaram o tratamento de pacientes psicóticos em hospitais mentais americanos”, citando os enganosos estudos de Nova York e evitando mencionar o estudo mais bem elaborado de Michigan, mesmo que estivesse disponível. Foi politicamente conveniente enganar a população dessa maneira, pintando uma imagem falsa de um enorme progresso na psiquiatria.
As pílulas para a psicose não têm efeitos clinicamente relevantes na psicose
Um manual didático observou que a evidência mais forte em psicofarmacologia é para o efeito das pílulas para a psicose na fase aguda da esquizofrenia e na prevenção de recaídas, pois reduzem significativamente o risco de recaída.[16:560] Alegou-se que as pílulas melhoram o prognóstico e a sobrevivência na maioria dos pacientes,[16:222] e que é essencial saber quais processos biológicos no cérebro as pílulas influenciam para oferecer o tratamento médico mais ideal.[16:216]
Tudo isso está errado. Robert Whitaker escreveu uma vez para mim que requer uma ginástica mental extraordinária por parte dos psiquiatras para concluir que essas drogas, que causam obesidade, disfunção metabólica, diabetes, discinesia tardia, arritmias cardíacas letais, e assim por diante, protegem contra a morte. Elas não protegem; elas matam muitas pessoas,[7:307] o que explicarei abaixo.
É impossível oferecer um tratamento melhor ao conhecer mais sobre os processos biológicos cerebrais quando as drogas não têm efeitos clinicamente relevantes na psicose, exceto tranquilizar os pacientes, o que é um efeito não específico.
Praticamente todos os ensaios de drogas para a psicose controlados por placebo são seriamente enviesados pelos efeitos de abstinência abrupta causado no grupo do placebo, que ocorrem quando a droga para a psicose que o paciente já está tomando é retirado antes da randomização. Esses danos iatrogênicos geralmente são evitados no grupo tratado ativamente. A razão pela qual a Janssen pôde afirmar que seu sucesso de vendas, a risperidona, não causava mais danos extrapiramidais (musculares) do que o placebo foi a retirada abrupta da droga para a psicose anterior, que infligiu esses efeitos no grupo do placebo a tal ponto que um em cada seis pacientes os teve.[1:276] As empresas precisavam demonstrar que suas drogas reduziram os sintomas psicóticos e tornaram alguns dos pacientes do grupo do placebo psicóticos ao retirar suas pílulas para psicose abruptamente.[4:45,31,149]
Só encontrei dois ensaios nos quais nenhum dos pacientes havia recebido uma droga para a psicose anteriormente. Um era da China e parecia ser fraudulento.[150] Esse estudo comparou a olanzapina com o placebo em pacientes com esquizofrenia de primeiro episódio.[151] Os pacientes precisavam ter uma pontuação na Escala de Síndrome Positiva e Negativa (PANSS) de pelo menos 60 para serem incluídos. No entanto, a pontuação antes do tratamento era apenas cerca de 9, embora, por definição, deva ser pelo menos 30 (a pontuação mais baixa é 1 e há 30 itens). A pontuação aumentou para 71.3 no grupo da olanzapina e para 29.4 no grupo do placebo. Os autores relataram que a olanzapina foi eficaz, embora os pacientes no grupo do placebo tenham se saído muito melhor. Além disso, uma diferença de 42 na PANSS é implausivelmente grande. Nos testes controlados por placebo apresentados à Food and Drug Administration (FDA) dos EUA para drogas mais recentes para psicose, incluindo a olanzapina, a diferença foi de apenas 6.[152]
O único ensaio que não parece ser fraudulento e não foi prejudicado por efeitos de abstinência foi publicado em 2020, 70 anos após a descoberta da primeira droga para a psicose, a clorpromazina.[153] No estudo foi randomizado 90 pacientes com um primeiro episódio psicótico (FEP) com uma duração de psicose não tratada de menos de seis meses para risperidona, paliperidona ou placebo.
Os autores de uma revisão Cochrane de 2011 sobre pílulas para a psicose em episódios iniciais de esquizofrenia destacaram que as evidências disponíveis não mostram que as drogas sejam eficazes.[154] Esta é uma das poucas revisões Cochrane de drogas psiquiátricas que podem ser confiáveis. Além do problema de abstinência abrupta, as revisões Cochrane em esquizofrenia incluem ensaios em uma meta-análise onde metade dos dados está ausente.
Esta revisão Cochrane observou que o dobro de pacientes usando clorpromazina em comparação com o placebo foi readmitido dentro de três anos, um risco relativo de 2,3 (1,3 a 4,0). Também houve menos readmissões no grupo do placebo no acompanhamento de um ano no famoso ensaio financiado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIMH), publicado em 1964, mas a diferença não foi quantificada e os dados originais parecem ter sido perdidos.[154] Esses dados contradizem completamente a narrativa psiquiátrica de que as pílulas para a psicose esvaziaram os asilos.
Em ensaios que deveriam ser duplo-cegos, mas que na prática não são, os pesquisadores podem relatar efeitos positivos que só existem em sua imaginação. Isso ocorreu no estudo NIMH de 1964, que ainda é amplamente citado como evidência de que as pílulas para a psicose são eficazes.
344 pacientes recém-admitidos com esquizofrenia foram randomizados para fenotiazinas como clorpromazina ou placebo.[155] Os pesquisadores relataram, sem fornecer nenhum dado numérico, que as drogas reduziram a apatia e tornaram os movimentos menos retardados, o oposto exato do que essas drogas fazem com as pessoas, o que os psiquiatras tinham admitido uma década antes.5:49,5:61
Os pesquisadores afirmaram um enorme benefício para a participação social (tamanho do efeito de 1,02) e que as drogas tornam os pacientes menos indiferentes ao ambiente (tamanho do efeito de 0,50). As drogas fazem o oposto. Os autores também afirmaram, sem dados, que 75% versus 23% apresentaram melhora acentuada ou moderada e sugeriram que as drogas não deveriam mais ser chamadas de tranquilizantes, mas de medicamentos antiesquizofrênicos.
Seu estudo contribuiu para moldar as crenças errôneas de que a esquizofrenia pode ser curada com medicamentos e que as pílulas para a psicose devem ser tomadas indefinidamente.[1]
A verdade é que as pílulas para a psicose não têm efeitos clinicamente relevantes na psicose. Apesar das distorções significativas — abstinência abrupta, falta de cegamento e financiamento da indústria que muitas vezes envolve a manipulação dos dados até que revelarem o que é desejado[6,7] — os resultados publicados têm sido muito fracos.[4] O efeito menos clinicamente relevante corresponde a cerca de 15 pontos na escala PANSS[156] comumente usada nos ensaios. No entanto, o que foi relatado nos ensaios controlados por placebo de drogas recentes submetidas à FDA foi apenas de 6 pontos, ou 3% da pontuação máxima de 210 nesta escala.[152]
Um manual didático alegou que os efeitos no sistema de dopamina podem restaurar a homeostase na transmissão de sinais cerebrais.[18:97] Isso pressupõe que existe um defeito no sistema de dopamina desde o início, o que nunca foi documentado e é improvável (consulte o Capítulo 4). Também nos dizem que a resposta ao tratamento está relacionada à atividade da dopamina.[16:220] Isso não é possível para drogas que não funcionam.
Havia histórias de casos em um dos manuais didáticos e todas eram positivas em relação as drogas usadas, mas a maioria delas era enganosa. Aqui estão alguns exemplos.
Um paciente melhorou em algumas semanas com uma pílula para a psicose e não ouviu mais vozes nem se sentiu perseguido.[18:87] As pílulas não têm tais efeitos.
Um paciente melhorou muito com uma pílula para a psicose e teve recaídas quando não quis continuar com a droga.[18:89] É altamente provável que os psiquiatras tenham confundido os sintomas de abstinência com recaída. E não há evidências confiáveis de que as pílulas possam prevenir recaídas (veja abaixo).
Um paciente recebeu uma pequena dose de uma pílula para a psicose e apoio, e melhorou.[18:89] Era mais provável que o apoio tenha ajudado o paciente, ou o paciente teria melhorado de qualquer maneira, sem tratamento ou apoio.
Uma dose aumentada de uma pílula para a psicose afetou o tempo até a recaída.[18:105] Essas pílulas não têm aumento no efeito com a dose aumentada.[157]
Seria uma experiência esclarecedora se os psiquiatras experimentassem uma pílula para a psicose em si mesmos. Dois médicos descreveram como uma única dose de haloperidol os deixou debilitados.[158] Eles experimentaram uma acentuada lentidão de pensamento e movimento, uma inquietação interna profunda, uma paralisia da vontade e uma falta de energia física e psíquica, sendo incapazes de ler ou trabalhar.
David Healy encontrou o mesmo em 20 funcionários de seu hospital que receberam droperidol.[4:116] Todos se sentiram ansiosos, inquietos, desinteressados e desmotivados para fazer qualquer coisa; um voluntário achou muito complicado até mesmo obter um sanduíche de uma máquina de lanches. Alguns se sentiram irritáveis e beligerantes e muitos foram incapazes de reconhecer o estado mental alterado em que estavam e de avaliar seu próprio comportamento. Peter Breggin chama isso de “encantamento medicamentoso”.[135,159]
Os efeitos subjetivos predominantes relatados por pacientes na Internet ao tomar drogas para a psicose são sedação, comprometimento cognitivo e achatamento ou indiferença emocional.[160] Também sabemos pelas linhas de ajuda telefônica que o que as pessoas medicadas mais sentem falta é de si mesmas.[1:179]
As pílulas para a psicose foram aclamadas como um grande avanço, mas isso ocorreu porque mantinham os pacientes dóceis e quietos, o que era muito popular entre a equipe nas enfermarias psiquiátricas.[148] Foi um grande conflito de interesses que a mesma equipe avaliasse se os pacientes tinham melhorado ou não, e esse conflito de interesses ainda nubla a prática e a pesquisa psiquiátrica até hoje.
Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.
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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.
Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz. Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).