O que a justiça social significa realmente para os psicólogos?

Sem clareza e consenso em torno do que significa justiça social, os psicólogos correm o risco de perpetuar injustiças que minam sua missão declarada.

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ZenobiaEm um novo artigo, publicado no Journal of Theoretical and Philosophical Psychology, os professores Erin Thrift e Jeff Sugarman apresentam uma análise do termo ‘justiça social’ e seu uso no campo da psicologia. Eles descrevem a história multifacetada e complexa do termo, ilustrando que seu uso atual por psicólogos pode ser restritivo e problemático.

O significado do termo ‘justiça social’, nos estados democráticos ocidentais, mudou ao longo da história. Transformou-se ao lado de desenvolvimentos e marcos culturais e tem atraído uma atenção crescente nos últimos anos. Thrift e Sugarman apontam que a definição de justiça social carece de especificidade, clareza e consenso. Não obstante, o campo da psicologia se alinhou com uma missão de justiça social, deixando muitos a se perguntar o que exatamente essa missão significa e implica.

“Embora muitos psicólogos proclamem que a justiça social é o centro de sua missão disciplinar e profissional, não está claro o que os psicólogos querem dizer com ‘justiça social’ e como eles contribuem para seus objetivos”, escreveram Thrift e Sugarman. “Sem clareza quanto ao significado da justiça social, não conseguimos ir adiante”.

Os autores começam por delinear a história multifacetada do termo ‘justiça social’ em países democráticos ocidentais de língua inglesa e seguem isso com uma análise de seu significado dentro do campo da psicologia. Eles remontam ao uso do termo e aos debates sobre a distribuição econômica justa de bens materiais, assim como o poder e a redução dos riscos inerentes ao sistema político capitalista. O termo justiça social não foi originalmente usado em referência a movimentos por igualdade de gênero ou racial, e, como se dizia, essas injustiças ‘permaneceram invisíveis’ até por volta dos anos 70. O significado da justiça social mudou nesse período e passou a ser aplicado às desigualdades em bens não materiais, como o reconhecimento de questões de diferenças e identidades.

Thrift e Sugarman argumentam que o termo foi desviado com a ascensão da economia neoliberal nos anos 70 e 80. Nesse contexto, seu significado tem sido empregado para se referir à justiça social como uma virtude individual, em vez de um esforço coletivo, um uso antitético com respeito ao propósito original do termo. Essa mudança de significado transforma as injustiças sociais em conflitos conciliáveis pelas práticas de caridade privada e pelo autocuidado, em vez de movimentos por responsabilidade e reforma de sistemas e corporações. Discutindo o uso neoliberal do termo justiça social, Thrift e Sugarman escrevem:

“Conceitos podem ser reinterpretados com o tempo. No entanto, neste caso, uma ruptura tão radical com o significado histórico é provável que seja mais uma cooptação oportunista do termo do que uma mudança legitimamente garantida pela análise conceitual judiciosa.”

Apesar de sua origem, as diferentes visões e conceituações da justiça social agora representam “o nexo de uma luta entre diferentes tendências políticas”, escrevem eles. Nem todas as visões e conceituações abordam suficientemente o termo em sua complexidade. Thrift e Sugarman argumentam que para o termo justiça social ser consistente com essa história complexa, sua utilização deve reconhecer (1) seu desenvolvimento e significado histórico, e (2) os desafios contemporâneos que cercam seu uso.

“A história da justiça social aponta para a necessidade de compreender sua natureza complexa e multifacetada”, escrevem eles. “Portanto, quaisquer relatos de justiça social que sejam excessivamente estreitos (por exemplo, atendendo apenas à redistribuição de bens materiais ou à política de identidade) não podem representar adequadamente o conceito”.

Segundo os autores, a psicologia, como campo, tem se alinhado mais de perto a algumas conceituações de justiça social do que a outras. Os psicólogos têm sido criticados por adotarem uma abordagem de justiça social enquanto “política de identidade”, na qual eles de modo redutivo atendem a questões de identidade e reconhecimento, enquanto negligenciam a interseção da identidade com as desigualdades econômicas e preocupações estruturais mais amplas. Não se trata apenas de que o privilégio de visões de justiça social voltadas para a identidade obscurece as desigualdades econômicas associadas ao capitalismo, mas, como Thrift e Sugarman enfatizam, é necessária uma postura de ‘cumplicidade’ que permita a perpetuação dessas injustiças. Nesse sentido, os psicólogos se alinharam predominantemente com uma abordagem reducionista da justiça social e, ao fazê-lo, minaram sua missão declarada.

Reivindicando expertise na definição e tratamento de problemas psicológicos, o campo da psicologia tem considerável influência sobre o uso e a compreensão da justiça social. Como resultado, “a confusão sobre o significado da justiça social tem implicações para os psicólogos interessados em perseguir esse objetivo, mas também tem consequências políticas, sociais e econômicas mais amplas”, argumentam Thrift e Sugarman. Quando os psicólogos promovem a ideia de que o sofrimento psicológico é um estado resolúvel exclusivamente por meio de intervenções individuais, como psicoterapia, mudanças de comportamento ou tratamentos com drogas, as questões estruturais podem ser ignoradas e perpetuadas.

“As explicações psicológicas frequentemente desviaram a atenção das injustiças sociais, políticas e culturais e, ao fazê-lo, pelo menos desviaram, se não impediram, indivíduos da participação política”, escrevem eles.

Os autores descrevem como explicações psicológicas específicas desviaram os indivíduos da participação política e impediram reformas sistêmicas. Por exemplo, o sofrimento e a subjugação das mulheres foram explicados pela histeria, a discriminação racial foi justificada pela inteligência inferior das pessoas de cor, a homossexualidade foi classificada como transtorno mental no DSM, as famílias não-ocidentais são descritas como “enredadas”, bem como o impacto negativo da pobreza no desempenho acadêmico da infância foi reformulado como falta de autodisciplina ou como déficits em outras características internas.

Os problemas estruturais não são apenas obscurecidos nessas explicações, mas são substituídos por interpretações que colocam exclusivamente a responsabilidade sobre indivíduos ou características individuais. Os autores escrevem:

“Um erro generalizado na psicologia é que a falha em reconhecer a força constitutiva de nossas instituições sociopolíticas e econômicas levou a fixar características das pessoas à natureza humana, e não às instituições em que elas se tornam pessoas”.

Além disso, eles ilustram que essa abordagem é antitética à justiça social, como foi inicialmente concebida, e contribui para a economia neoliberal e as injustiças que surgem dos atuais sistemas econômicos e políticos.

“O apoio dos psicólogos à justiça social pode não apenas disfarçar as fontes sociais e políticas de muitos problemas de saúde mental”, eles escrevem, “mas também reforçar o ideal neoliberal dos indivíduos como auto-responsáveis, competitivos, empreendedores, arriscados, adaptáveis. indivíduos que são os únicos responsáveis pelas suas circunstâncias, que não exigem ou mesmo evitam o apoio do governo, e cuja liberdade se manifesta pela sua capacidade de escolha. ”

Thrift e Sugarman apontam que os psicólogos se beneficiam de uma promoção individualizada da justiça social. A psicologia como um campo está “embutida na economia de mercado”, escrevem, de modo que enquadrar os problemas como decorrentes do indivíduo pode aumentar a demanda por serviços psicológicos. “Consequentemente, pode haver pouco incentivo profissional ou econômico para os psicólogos conceituarem dificuldades pessoais, exceto em termos individuais”.

“Assim, os psicólogos que aspiram trabalhar por justiça social devem ser criteriosos no uso do termo e conscientes das consequências políticas que estão promovendo (mesmo inadvertidamente)”.

Os autores observam esse padrão na prática psicológica contemporânea. Por exemplo, limiares de diagnóstico diminuídos e critérios afrouxados corroboram afirmações de que 46,6% da população dos EUA sofre de uma doença mental ao longo da sua vida. À medida que a demanda aumenta, o mesmo acontece com o valor dos serviços psicológicos. Assim, a psicologia lucra promovendo uma forma redutiva de justiça social que é contrária aos seus objetivos percebidos.

Uma maneira de abordar a questão das práticas nocivas em nome da justiça social é desenvolver maior clareza e consenso em torno do termo. Os autores argumentam que não há atualmente uma estrutura coerente para avaliar e implementar reivindicações de justiça social. Em resposta, propõem adotar uma estrutura promovida por Fraser (2009), que aborda três questões fundamentais:

  1. “O que é o bem da justiça social?” (Princípio da paridade participativa)
  2. “Quem é atingido pela justiça social?” (Princípio afetado)
  3. “Como devemos tomar decisões relacionadas a todos os aspectos da justiça social?” (Princípio todos submetidos)

Fraser defende um “princípio de paridade participativa”, significando que todas as injustiças devem ser consideradas como violações da justiça social. A justiça social e as violações da justiça social são avaliadas neste contexto “em termos de seus efeitos na capacidade de uma pessoa participar social e politicamente em igualdade de condições com seus pares”. Para tratar de questões contemporâneas que cercam as alegações de justiça social, os autores argumentam que a globalização das atividades de justiça social devem ser enquadradas além do interesse de um Estado-nação e devem ser capazes de reconhecer as injustiças globais cometidas por corporações transnacionais.

Para que o campo da psicologia aplique a justiça social em termos do princípio da paridade participativa, Thrift e Sugarman sugerem reflexão sobre a seguinte questão:

“Como a teorização, a pesquisa ou as intervenções psicológicas ajudam a criar arranjos sociais, culturais, políticos e econômicos que permitem que os indivíduos participem em igualdade com seus pares?”

Eles argumentam que a resposta do campo deve ir além de simplesmente promover e aumentar o acesso a serviços psicológicos. A justiça social exige uma reformulação em larga escala dos serviços psicológicos para resolver, em vez de solapar, as questões sociopolíticas e econômicas.

“Se os psicólogos devem servir aos interesses da justiça social, eles não podem assumir sua responsabilidade simplesmente como ajudar os indivíduos a administrar sua ansiedade em uma ordem econômica injusta”, escrevem Thrift e Sugarman. “Serviços psicológicos que apenas ajudam indivíduos a se ajustarem a circunstâncias de pobreza e desigualdade, sem fazer nada para mudar essas condições, são um desserviço à justiça social. Ela perpetua o papel dos psicólogos como “arquitetos do ajuste” que preservam e protegem o status quo, em vez de defenderem a reforma sociopolítica “.

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Thrift, E., & Sugarman, J. (2018, September 13). What Is Social Justice? Implications for Psychology. Journal of Theoretical and Philosophical Psychology. Advance online publication. (Link)