A Vida de Celina

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Talvez um pouco atrasada no momento em que envio esta tradução para compartilhar com os colegas do Brasil este texto que reflete o processo da psiquiatria durante 74 anos no corpo de Celina, 74 anos de asilo de loucos. “Os avanços da ciência” durante esses 74 anos de confinamento fizeram muito no corpo de Celina: Celina viveu com tortura e privação de liberdade por 74 anos sem que ninguém soubesse qual era sua nacionalidade. Aqui está a triste história com trechos de parágrafos de sua história médica. A Lic. Julia Cicuttin colaborou na tradução desta nota. Uma companheira na caminhada, em fazer o caminho da praxis para o futuro que é a vida sem asilos de loucos.

Lucila López

Essa é a história: a vida de Celina …

A vida de Celina, 74 anos no asilo, por Camila Azzerboni

CAPER · QUARTA-FEIRA, 15 DE MARÇO, 2017

Celina Trezeguet

Data da primeira entrada 12.12.1941 aos 22 anos. Solteira, Trabalhadora do frigorífico. Católica, 4º ano do ensino fundamental. Nascimento…Peru? Espanha? Filha de Marciel e Alejandra.

Admissão: melancolia, abstração, delírio

É assim que a história clínica dela começa… eu quase não a conheci, mas sim sabia onde morava desde os 22 anos de idade. Contaram-me sobre ela e eu li sua “história”, demorei um pouco mais de uma hora para ler 70 anos de hospitalização.

Nós sabemos tão pouco sobre ela que ainda não conhecemos sua nacionalidade. É registrado que ela entrou, além de melancolia, com delírio e abstração, por causa de uma briga com seu irmão.

O que sabemos é que um dia a levaram para o hospital e lá morreu 70 anos depois. Ela conheceu – pela força – a história do hospital e os “avanços” da psiquiatria.

O que Celina teria dito se a tivéssemos ouvido com amor e menos ciência?

O que seus olhos nos dizem, suas rugas e um corpo devastado pela instituição?

O que ela gostava de fazer? Como foi sua infância? Sua adolescência? Ou seu trabalho?

Em sua história nos dizem … “Ela entra numa atitude um tanto estática, sua cabeça flexionada em seu peito. As pálpebras baixas, negativista na frente do interrogatório, às vezes chora, mas seu choro não parece responder a um conteúdo emotivo “(12 de julho)

O que estava errado com ela, o que a fez sofrer, o que a fez chorar?

Assim, com 20 anos de idade, começam seus dias neste lugar escuro onde são mantidos, escondem-se, são depositados e estão trancados para aqueles que não querem ver ou ouvir, aqueles que não podem “ser” ou querem saber, abraçar-se e cuidar de si mesmos. Alguns chamam esse lugar “Hospital neuropsiquiátrico especializado em pessoas agudas e crônicas (um lugar de “cuidados de saúde”)”, eu prefiro dizer asilo, local de confinamento, tortura e morte.

Como foram seus anos no asilo? Os médicos dizem que ela não queria falar, que ficava isolada, evitando os olhos …. “Não tendo mudado a sua imagem mental e persistindo seu negativismo contra os alimentos, descartadas as possíveis contraindicações somáticas, o tratamento convulsivo é iniciado com 5  da solução pentametilentetrazolal 10%, preparado no hospital, obtendo um choque típico “(04.09.41)

Parece que a psiquiatria “avança” e encontra esta solução torturante “Após o segundo choque obtido com a mesma dose, a imagem e o comportamento dos sintomas mudaram fundamentalmente. Ela atende, percebe e evoca sem dificuldade, incluindo o que aconteceu nos dias da sua admissão: ela explica que ela ouviu o que lhe foi dito e que teve que responder, mas “ela não poderia fazê-lo”; também em relação à comida, ela estava na mesma situação, queria comer, mas não podia “perder a vontade” de acordo com sua própria expressão. Ela também lembra que ela teve “como sonhos”, sendo acordada: viu figuras humanas que se mexiam; também ouvia um som como de máquinas. Ela acha que tudo isso aconteceu, que era “fraqueza cerebral” ou doença; Agora ela está muito melhor, mas não está tudo bem, porque às vezes ela se sente um pouco nervosa à noite quando é hora de dormir. Aceita permanecer e continuar o tratamento por mais alguns dias. (9/8/1941)

“Após o 8º choque da 2ª série (11 no total), ela parece calma e explica que tudo o que aconteceu com ela foi por causa duma aversão que ela teve por uma pessoa: um “menino” a quem ela não quer chamar de namorado,  sobre o qual “aquelas que se chamavam amigas” fizeram comentários que a machucavam, ela sempre pensou nessa pessoa, e recentemente, durante os dias que ela passava em casa, quando estava sozinha de noite, sentia ouvir a voz dele e não podia dormir: ficava com medo e ligava para seus parentes. Ele critica esta situação e acredita que algo análogo não acontecerá de novo. O tratamento é continuado “(4/10/1941)

11/4/1941: Após a 16ª injeção, da segunda série (19 no total), observa-se uma nova remissão dos sintomas, não muita completa, mas parece ser mais estável do que a anterior.

15/12/1941: A remissão foi mantida e a adaptação ativa melhorou.

Agora sim, após 4 meses de fornecimento intenso de medicação, foi possível conseguir que ela fale e que possa adaptar-se ao funcionamento do Estabelecimento da Saúde.

Não estava no `40, mas acho que não mudou tanto e que estarão se referindo a que ela possa se levantar às 5 da manhã, tomar a medicação para comer, banhar-se com água fria, ficar de pé, sentir, conversar, ficar quieta, comer, dormir e voltar a levantar-se quando é dito, estar ajeitada, mas não excessivamente.

E por que eles queriam que ela contasse tudo? Como sua situação podia mudar? Passaram 12 anos de hospitalização e do grande progresso que fizeram com o choque típico.

“A paciente não é muito acessível, fazendo o interrogatório difícil, respondendo em monossílabos ou com gestos; atitudes de estereótipos claros; ela muitas vezes olha no espelho que ela carrega no seu bolso, as possibilidades intelectuais dela são pobres, seus julgamentos são pueris. Do ponto de vista afetivo, ela é indiferente, tendo pouco interesse na perspectiva de retornar aos seus parentes”. (21 de dezembro de 1953)

Já na década de 1950, Celina aprenderá sobre a nova Revolução da Psiquiatria, que para suas “doenças” terão novas pílulas que tentarão reparar o anterior, sobre tudo, que não seja tão apática, que possa conversar novamente, recontar o que aconteceu, e dizer aos novos médicos que se sente convulsionar por um choque de drogas. E possa se mostrar mais ativa no confinamento da sala de jantar…mas não tão ativa, porque será necessário sedá-la.

É adicionada, portanto, nova medicação:

“Excitação noturna ocasional, grandes comprimidos 1-1-2”. (6/10/1958)

“Doente tranquila. Trabalho em tratamento. Bom físico”. (Dezembro de 1963)

“Mesmo tratamento. Sem variantes” (agosto dos 64) “Mesmo Estado “. (Julio de 1965)

“Continua bem adaptada à sala. Trabalhadora Cuida da sua limpeza pessoal. “(26.04.1969)

Sim, também estou impressionado com o fato de ter conhecido a história de Celina 10 anos após a incorporação de novos medicamentos, parece que tudo está indo bem: ainda está adaptada, mantenha-se em forma, e bom, não há muito mais a dizer sobre os próximos 5 anos.

Estamos conhecendo-a com seus 50 anos de vida e 28 anos de hospitalização. Sim, ela viveu dentro do asilo por mais tempo do que viveu fora. Mas com os médicos que são incorporados, e que assumimos que estão mais atualizados, chegam boas notícias:

Lúcida e calma. Boa orientação tempo-espacial. É visitada assiduamente por sua família. A paciente será convocada para ver a possibilidade de lhe dar a alta médica” (01.04.74.)

Passaram mais dois anos tentando fazê-la partir, mas os médicos perceberam algo que eles não tinham pensado ou talvez sim, mas isso seria pior. Sua família, como ela, continuava envelhecendo… E não haverá ninguém para cuidar dela. Por isso, os planos mudam:

“Falamos com seus parentes que são idosos e não podem assumir o controle. O pedido de seu irmão é considerado coerente. É conveniente que a paciente permaneça hospitalizada”. (06.07.1976)

Quantos médicos ela conheceu até então? Quantas companheiras entraram?
Quantas morreram? Quanto medicação ela tomou? Quantas vezes preguntaram por
que ela entrou?

Desde o momento em que lhe disseram que ela poderia sair, mais oito anos se passaram.
Oito anos com a mesma rotina adaptada para se levantar, tomar café da manhã, tomar
medicação, cochilar, estar na sala de jantar ou no quintal, limpar, jantar e dormir. Oito
invernos, verões, primaveras e  outonos atravessados no corpo, na mente, no olhar. Novos médicos e psicólogos acreditam que tem possibilidades de sair, não é agressiva, adapta-se
facilmente, não tem grandes problemas … tem 60 anos … sei lá!
Que ela viva sua vida, mas as evoluções nos dizem: “Paciente tranquila. Adaptada à sala. Colaboradora. Limpa. Os parentes dela a visitam periodicamente. Possui possibilidades de desospitalização, mas dado o tempo de 5 hospitalizações (38 anos) e a impossibilidade dos parentes devido à falta de conforto, é aconselhável permanecer na sala de reabilitação. Continuar o tratamento.”(27, 10.82)

Embora seja difícil de acreditar, ela esteve na sala de reabilitação há 38 anos. Ela esteve
sempre numa sala de “Reabilitação?”

“Tranquila, higiene pessoal excessiva. Recebe visita periódica”.(19.9.86)

“Inalterada. Hiperadaptada” 3/3/87

Depois de um trabalho árduo: “os membros da sua família querem a alta hospitalar , mas a paciente se nega completamente. Bom estado geral, atenção especial em seu cuidado pessoal. Adaptada à sala onde ela colabora ativamente.” (23 / 12/87) … e é claro que a palavra do paciente é respeitada acima de todas as coisas e se o desejo dela é de ficar …
“É visitada regularmente pelos membros da sua família que a visitam mensalmente e
trazem o que pede Celina, especialmente “cosméticos”. Ela está localizada no tempo e
no espaço e tenazmente se recusa a ser desospitalizada por seus parentes para quem
ela espera ser visitada, mas diz “Estou mais acostumada aqui” quando pergunto sobre a
questão da sua desospitalização.” (12/23/88)

Celina está cansada, eu acredito que deve de estar farta, descrente … Eu não sei se será porque há 40 anos ela foi trancado ou algo mais aconteceu com ela? Porque 40 anos não é tanto … Ela tem ainda muito por fazer. “Paciente de 70 anos de idade que vem à entrevista por seus próprios meios, limpa, ajeitada. Muito cooperativa. Ela diz que foi hospitalizada há 40 anos por “um problema com o irmão” Adaptada à sala. Colabora com as tarefas da culinária. “Agora eu trabalho pouco, trabalhei 28 anos” Resignada a viver no hospital “Eu não quero sair mais” Os parentes dela a visitam mensalmente. Ela se alimenta e descansa bem. Medicada com Hydergina, 2 por dia, e Nifelat a cada 8 horas?”(16/11/89)

“Estável. Calma. Muito pouco comunicativa, retraída, apática-passiva social. Não
recebe medicação psiquiátrica, ela continua com medicação para doença cardíaca”
(05/11/92).

Ainda querem que ela se comunique? Agora, felizmente, eles não lhe dão mais
medicação … parece que, depois de tanto tempo e com a idade que ela tem, ela não
precisa mais disso …

A história de Celina continua do mesmo jeito pelos próximos 24 anos, já não faz sentido
contar-lhes o que a história clínica diz, porque agora ela se tornou uma mulher velha, que
não se preocupa, que se acostumou com tudo, aos pombos no seu prato, à água fria, ao
calor, ao frio, às pílulas, às perguntas sem sentido, aos gritos, conhecer enfermeiros,
médicos, assistentes sociais, acostumou-se ao confinamento, às moscas em seu corpo,
morar com mais de 30 pessoas, comer comida feia e estragada.

Sobre sua família também não soubemos mais, eles provavelmente morreram. Eu não sei
se haverá alguém que pergunte por ela, alguns trabalhadores sei que sim … eles vão vê-
la, dão uma olhada, ou cumprimentá-la… Mas o que vamos dizer? O que vamos dizer a ela? Tudo o que aconteceu em 70 anos… Mudou a política, a economia, a tecnologia, a Segunda Guerra Mundial, a queda do Muro de Berlim, a Ditadura Militar, Menem, Rua, Cristina, o Macrismo, Internet, o Peso Argentino que a gente precisa, que nasceu minha mãe e eu. e que ela estava sentada lá na sala de jantar o tempo todo? Com qual sentido? Celina morreu em 2015, após 74 anos de confinamento. Espero que conhecer sua história e todo esse sofrimento que sofremos nos sirva para chorar e gritar DEVEMOS TERMINAR COM A MORTE, O CONFINAMENTO, A TORTURA E O MANICÔMIO!