O desafio de sair das drogas psiquiátricas

Milhões de americanos vem tomando antidepressivos por muitos anos. O que acontece quando é hora de parar?

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Publicado no The New Yorker em seu ultimo número: “O desafio de sair de drogas psiquiátricas. Milhões de americanos vem tomando antidepressivos por muitos anos”. A matéria é assinada pela jornalista Rache Aviv.

A matéria composta por várias páginas é feita em torno da experiência de Laura Delano enquanto paciente psiquiátrica, a partir do início da sua juventude, percorrendo anos e mais anos de sua vida no inferno construído pela instituição psiquiátrica, até como ela se recuperou ao sair do sistema psiquiátrico por iniciativa própria. Laura Delano esteve entre nós, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ), em diversos eventos organizados pelo nosso Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Social e Atenção Psicossocial (LAPS). Para quem se interessar, ao final desta matéria estarão disponíveis alguns links de suas apresentações aqui entre nós.

Um resumo muito sumário da matéria publicada no The New Yorker.

De imediato, que Laura Delano é um exemplo do que ocorre com uma parcela significativa dos adolescentes e jovens ao ingressarem na carreira de paciente psiquiátrico. Laura cresceu em Greenwich, Connecticut, uma das comunidades mais ricas dos Estados Unidos. Seu pai é parente de  Franklin Delano Roosevelt, e sua mãe foi apresentada à sociedade em um baile de debutante no Waldorf-Astoria. Laura cresceu tendo uma vida social próspera: na oitava série foi escolhida como presidente da sua classe, e estava entre as melhores jogadoras de squash do país. Mas como é tão comum entre adolescentes, ela passou a duvidar se ela tinha um “eu real na base” como ela diz. Ela sentia-se como se estivesse vivendo duas vidas distintas, uma no palco e outra na plateia, reagindo às performances exaustivas.

Laura conta detalhes de como sofria na adolescência, seus conflitos. E conta haver tido uma explosão de ira com a sua mãe, trancando-se em seu quarto e pensando em fazer com ela própria o que amigos em sua escola já haviam feito com lâminas de barbear, enquanto um ato de desafio. Ela tentou um suicídio.

“Seus pais a levaram para uma terapeuta familiar que, após vários meses, encaminhou-a a um psiquiatra. Laura recebeu um diagnóstico de transtorno bipolar e foi prescrito o Depakote, um estabilizador de humor que, no ano anterior, havia sido aprovado para o tratamento de pacientes bipolares. Ela escondeu as pílulas em uma caixa de joias em seu armário e depois as jogou fora pelo ralo da pia.”

Laura passou parte da sua adolescência sendo tratada como ‘bipolar’. E entrou em Harvard University, como caloura da turma de 2001.

“Em seu primeiro dia em Harvard, Laura perambulou pelo campus a pensar: Isso é tudo pelo que sempre batalhei. Finalmente estou aqui.”

A jornalista do The New Yorker narra que durante suas férias de inverno, Laura passou uma semana em Manhattan preparando-se para dois bailes de debutantes, no Waldorf-Astoria e no Plaza Hotel.  Na noite do segundo baile, antes de entrar no palco, Laura usou cocaína e bebeu champanhe. No final da festa, ela estava chorando tanto que o taxista que a havia levado para o baile teve que colocá-la no táxi de volta para casa. De manhã, ela disse à sua família que ela não queria estar viva. Ela tomou literalmente o simbolismo das festas, como diz a jornalista, o ritual destinado a marcar sua entrada na idade adulta. ‘Eu não sabia quem eu era’, disse ela. ‘Eu estava presa na vida de uma estranha’.

Ao contrário do que ocorre com a maioria dos pacientes psiquiátricos, Laura tinha ao seu dispor o que de melhor havia nos Estados Unidos com relação a tratamento médico, psiquiátrico e psicoterapêutico. A matéria do New Yorker reconstrói a trajetória que Laura irá fazer no sistema de assistência em saúde mental dos Estados Unidos.  Por exemplo, antes de Laura voltar para Harvard, seu médico em Greenwich encaminhou-a a um psiquiatra no Hospital McLean, em Belmont, Massachusetts. Um dos hospitais mais antigos da Nova Inglaterra, em McLean haviam sido tratados pacientes célebres, incluindo Anne Sexton, Robert Lowell, James Taylor e Sylvia Plath, que o descreveram como ‘o melhor hospital psiquiátrico dos EUA’.

“Ela começou a tomar vinte miligramas de Prozac, um antidepressivo; quando ela ainda não se sentia melhor, sua dose foi aumentada para quarenta miligramas e depois para sessenta. Com cada dose aumentada, sentia-se grata por ter sido ouvida. ‘Foi uma maneira de eu marcar para o mundo: isso é a marca de em quanta dor eu estou’, disse ela. Laura não tinha certeza se o Prozac realmente elevou seu humor – aproximadamente um terço dos pacientes que tomam antidepressivos não respondem a eles -, mas suas emoções pareciam menos urgentes e perturbadoras, e seus trabalhos em sala de aula melhoraram. ‘Eu me lembro dela carregando esta caixinha de plástico com compartimentos para todos os dias da semana’, disse um amigo do ensino médio. ‘Era parte desse mundo misterioso de seu estado psiquiátrico’”.

Laura retornou a Harvard. Mas era impossível para ela continuar a frequentar a Universidade. Ela conta tudo o que ela procurou fazer e o que os seus pais tentaram como tratamento psiquiátrico.

Nos quatro anos seguintes, seus médicos triplicaram sua dose de antidepressivos. Sua dose de Lamictal quadruplicou. Ela também começou a tomar Klonopin, que é um benzodiazepínico, uma classe de drogas que tem efeitos sedativos.

” O que eu ouvia muito foi que eu era resistente ao tratamento”, disse ela. “Algo em mim era tão forte e tão poderoso que mesmo esses medicamentos sofisticados não conseguiam melhorar meu estado .”

Laura passou a tomar um coquetel de drogas psiquiátricas. Indo de um psiquiatra famoso a outro, bem como de um psicoterapeuta a outro, de um psicanalista a um outro. E nada. Apenas piorando. E eis a narrativa de um momento trágico, transcrito da reportagem na íntegra:

“No dia anterior ao Dia de Ação de Graças de 2008, Laura foi para a costa sul do Maine, para uma casa dos seus falecidos avós. Toda a sua família estava lá para celebrar o feriado. Ela notou seus parentes com os ombros tensos quando conversavam com ela. ‘Ela parecia abafada e escondida’, disse Anna, sua prima. Quando Laura atravessou a casa e os velhos pisos de madeira rangeram sob seus pés, sentiu vergonha de estar carregando tanto peso.

Em seu terceiro dia lá, seus pais a levaram para a sala de estar, fecharam as portas e disseram que ela parecia estar presa. Ambos estavam chorando. Laura sentou-se em um sofá com vista para o oceano e assentiu, mas ela não estava ouvindo. ‘A primeira coisa que me veio à mente foi: você já colocou todo mundo o suficiente.’

Ela foi até ao quarto e derramou oitenta miligramas de Klonopin, oitocentos miligramas de Lexapro e seis miligramas de Lamictal em uma luva. Então ela entrou na despensa e pegou uma garrafa de Merlot e colocou o vinho, junto com seu laptop, em uma mochila. Suas irmãs e primas estavam se preparando para ir para uma aula de Bikram-yoga. Sua irmã mais nova, Chase, pediu que ela se juntasse a eles, mas Laura disse que ia sair para escrever. ‘Ela parecia tão morta em seus olhos’, disse Chase. ‘Não houve expressão. Não havia nada lá, realmente’.

Havia duas trilhas para o oceano, uma levando a uma enseada de areia e outra para a costa rochosa, onde Laura e suas irmãs costumavam pescar robalo. Laura pegou o caminho para as rochas, passando por uma grande pedra que sua irmã Nina, uma especialista em geologia na faculdade, havia escrito sobre sua tese a respeito. A maré estava baixa, estava frio e ventava muito. Laura encostou-se a uma pedra, pegou o laptop e começou a digitar. ‘Eu não vou tentar transformar isso em algo poético, pois não pode sê-lo’, escreveu ela. ‘É embaraçosamente clichê supor que se deve escrever uma carta para seus entes queridos após o término de sua vida.’

Ela engoliu um punhado de pílulas de cada vez, lavando-as com o vinho tinto. Achava ser cada vez mais difícil sentar-se direito e a sua visão começou a diminuir. Quando ela perdeu a consciência, ela pensou: Esta é a experiência mais pacífica que já tive. Ela se sentia grata por terminar sua vida em um lugar tão bonito. Ela caiu e bateu a cabeça em uma pedra. Ela ouviu o som, mas não sentiu dor.

Quando Laura não voltou ao anoitecer, seu pai caminhou ao longo da costa com uma lanterna até que ele viu seu laptop aberto em uma pedra. Laura foi levada de helicóptero para o Hospital Geral de Massachusetts, mas os médicos disseram que não tinham certeza de que ela iria recuperar a consciência. Ela estava hipotérmica, sua temperatura corporal caíra para quase noventa e quatro graus.

Depois de dois dias em coma induzido, ela acordou em tratamento intensivo

A narrativa dada por Laura é longa. Repleta de detalhes. Como será a sua vida após essa sua última tentativa de suicídio? E tudo o que seus pais e sua família fizeram por ela? Isso é narrado. Mas, o mais importante: o que ela mesmo, o que Laura irá fazer?

Laura conta o que lhe ocorreu ao ler o livro de Robert Whitaker, Anatomia de uma Epidemia, um livro que mudou a história de muitas pessoas, e que tivemos o prazer de haver tido a Editora Fiocruz editado.  Eis a narrativa desse seu encontro com o livro de Whitaker:

“Em maio de 2010, alguns meses depois de entrar na clínica, ela entrou em uma livraria, embora raramente estivesse lendo livros. Na estante de novos lançamentos estava ‘Anatomia de uma epidemia’, de Robert Whitaker, cuja capa tinha um desenho da cabeça de uma pessoa rotulada com os nomes de vários medicamentos, que ela estava tomando e havia usado. O livro tenta dar sentido ao fato de que, à medida que a psicofarmacologia se tornou mais sofisticada e acessível, o número de americanos incapacitados pela doença mental vem aumentando. Whitaker argumenta que os medicamentos psiquiátricos, tomados em grandes doses ao longo de toda a vida, podem estar transformando alguns distúrbios episódicos em incapacidades crônicas.”

E Laura decide que iria deixar de tomar drogas psiquiátricas. Ela quer voltar a ser ela própria, que irá enfrentar todos os desafios que isso poderia implicar, mesmo que tendo que viver o inferno de parar de tomar drogas psiquiátricas após tanto tempo de uso. Porque o que ocorre é isso: quem começou a tomar drogas psiquiátricas tem muitas dificuldades de se livrar delas.  Eis um outro pequeno trecho da matéria do New Yorker:

“Seguindo o conselho de seu farmacologista, Laura parou primeiro o Ativan, o benzodiazepínico. Algumas semanas depois, ela saiu do Abilify, o antipsicótico. Ela começou a suar tanto que ela só podia usar preto. Se ela virasse a cabeça rapidamente, sentia-se tonta. Seu corpo doía e, ocasionalmente, ela era dominada por ondas de náusea. Acne cística eclodiu em seu rosto e pescoço. Sua pele pulsava com um estranho tipo de energia. ‘Eu nunca me sentia quieta em meu corpo’, disse ela. ‘Sentia como se houvesse uma corrente de algum tipo percorrendo a minha pele, e eu estava presa dentro desse encapsulamento que estava constantemente zumbindo.’

Um mês depois, ela saiu do Effexor, o antidepressivo. Seu medo de que as pessoas a julgassem circulavam em sua cabeça em permutações que se tornavam cada vez mais invasivas. Quando um caixa da mercearia conversou com ela, ela estava convencida de que ele estava apenas fingindo ser cordial – que o que ele realmente queria dizer era: ‘Você é um humano repulsivo, nojento e patético’. Ela sentia-se hiper-estimulada pelas cores das caixas de cereais na loja e pelos sons de pessoas falando e se movendo. “Eu sentia-me como se eu não pudesse me proteger de toda esta vida vivida em torno de mim’, disse ela.”

Ao longo da reportagem, Laura conta à jornalista as enormes dificuldades pelas quais ela passou ao ir interrompendo o consumo das drogas psiquiátricas prescritas. Reações físicas, reações emocionais, reações existenciais. E, em particular, com relação à sua própria sexualidade e de como se relacionar amorosamente com seus namorados, seus companheiros. Enquanto mulher, a sua vida amorosa havia sido um fracasso, devido à incapacitação afetiva, emocional e sexual.

Além da própria Laura, seus parentes e amigos, a jornalista entrevistou psiquiatras famosos. Como Allen Frances, coordenador do DSM-IV.  Guy Chouinard, renomado psiquiatra, um dos responsáveis pelo Prozac e os antidepressivos ISRS. Ou Giovanni Fava, professor de psiquiatria da Universidade de Buffalo, que dedicou grande parte de sua carreira ao estudo da abstinência e acompanhou pacientes que sofriam de sintomas de abstinência um ano depois de interromper os antidepressivos. Bem como outros psiquiatras do mainstream.  O que é reiterado é que os psiquiatras sabem prescrever, mas que não têm noção do que estão prescrevendo e dos efeitos do prescrito em seus pacientes.

When on the drugs, Laura said, “I never had a baseline sense of myself.”
Photograph by Levi Mandel for The New Yorke

Antes de concluir esse resumo da matéria, é importante ser lembrado que todo esse sofrimento pelo qual Laura passou em sua carreira como paciente psiquiátrico transformou-se em energia para ela buscar transformar a realidade dos que hoje sofrem como ela sofreu.

O site de Laura, que ela chamou de Projeto de Retirada, foi lançado on-line no início de 2018 como parte de uma organização sem fins lucrativos, a Inner Compass Initiative, dedicada a ajudar as pessoas a fazer escolhas mais informadas sobre o tratamento psiquiátrico. Ela e Rob (quem ela já não estava mais namorando) criaram esse site, com uma bolsa de uma pequena fundação, que lhes dava dinheiro suficiente para pagar um salário, para contratar outras pessoas que haviam consultado pessoas que se retiravam de medicamentos e para colher insights relevantes sobre estratégias de retirada das drogas psiquiátricas. ‘A informação anedótica é a melhor que temos, porque quase não há pesquisa clínica sobre como se afunilar lenta e seguramente’, disse Laura. O site ajuda as pessoas que se retiram de remédios a encontrarem outras pessoas na mesma cidade; também oferece informações sobre como calcular a porcentagem da dosagem a ser reduzida, converter uma pílula em uma mistura líquida usando um triturador ou um pilão, ou  como usar uma seringa especial para medir as reduções de dosagem. Lamberson, que tinha lutado para se afastar de seis medicamentos psiquiátricos, disse-me: ‘Você se encontra nessa posição em que precisa se tornar um químico de cozinha’.

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Como o leitor pode bem observar, a matéria do The New Yorker está composta por páginas. Excepcionalmente, nós da editoria do Madinbrasil.org estendemos a muitos parágrafos o que normalmente nesta seção Ao Redor da Internet é apresentado em alguns poucos. Mas dada a importância dessa matéria, rompemos com o habitual da nossa linha editorial. Recomendamos efusivamente a leitura da matéria do The New Yorker em sua íntegra. E para quem quiser aprender mais com a experiência da Laura Delano, a seguir damos alguns links das suas apresentações aqui entre nós, no LAPS/ENSP/FIOCRUZ.

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A matéria do The New Yorker, na íntegra →

A experiência de Laura Delano, em vídeo →

Laura Delano no II Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas →