Recentemente na revista Estudos e pesquisa em Psicologia, vinculada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), foi publicado o importante artigo: Medicalização da queixa escolar e o uso de psicofármacos como resposta à questões comportamentais. Os autores, Cristiane M. da Silva e Letícia N. Mello, da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e Rafael C. Rodrigues da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), apresentam os resultados de uma pesquisa documental realizada no Município de Petrópolis sobre o uso de psicofármacos em crianças com queixa escolar.
O interesse da pesquisa surgiu a partir da participação dos autores no projeto Integrare realizado no Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Católica de Petrópolis, no qual realizavam orientação da queixa escolar de crianças da rede municipal de ensino da cidade de Petrópolis. Das 300 crianças recebidas no projeto houve a constatação de que muitas faziam uso de psicofármacos como solução para comportamentos considerados problemáticos pela escola, o que motivou a realização da pesquisa em questão.
Para a realização da pesquisa os autores fizeram um levantamento em um dos serviços especializados em Psicologia, a Assessoria de Psicologia Escolar (APE), que recebe encaminhamentos das escolas da Rede Pública municipal. O motivo da escolha foi que a associação não lida diretamente com demandas que necessitam de diagnósticos médicos específicos. A produção dos dados se deu através da leitura de todos os encaminhamentos realizados à APE no período entre 2013 e 2015, chegando a um total de 254 encaminhamentos. Foi realizado um recorte de análise aos três anos iniciais do Ensino Fundamental, ou seja, o ciclo de alfabetização e letramento.
A partir da análise dos dados levantados dos 254 encaminhamentos avaliados, 144 alunos não faziam uso de medicamentos antes do encaminhamento, 41 foram encaminhados a especialistas com o objetivo de receber algum tipo de medicamento, além dos 35 alunos que não tiveram seus encaminhamentos descritos na ficha presente na APE. Dessas 254 crianças, 65 receberam diagnósticos, sendo os mais recorrente o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (27) e o Transtorno Opositivo Desafiador (12). Dentre as quais, 6 receberam os dois diagnósticos. Além disso, independente de diagnóstico médico, 100 crianças já faziam uso de psicotrópicos. Os medicamentos com maior número de prescrições são Carmazepina, Ritalina e Risperidona.
“ Queixa: Dificuldade de aprendizagem/agitação/oposição. O aluno vem apresentando sérios problemas de comportamento e de relacionamento com os colegas. Não somente com os colegas de classe. Mas também com os alunos e outras turmas, inclusive com os menores, do primeiro ano. Dentro da sala ele(a) não é capaz de ficar sentado por muito tempo em um lugar, nem tampouco cumpre qualquer atividade a ele(a) designada. Hipótese diagnosticada: Déficit Cognitivo? TOD? Distúrbio de Comportamento? Medicação: Ritalina e Rispiridona.” (Encaminhamento enviado à APE- aluno de 8 anos do 2 ano do Ensino Fundamental, 2016)
O encaminhamento acima é apontado pelos autores como surpreendente, já que nem sequer indica um diagnóstico antes de medicar a criança! Eles indagam: “qual a função deste medicamento? A quem o medicamento visa beneficiar? a criança ou a escola que não consegue adotar meios para lidar com suas singularidades? Qual a responsabilidade dos profissionais de saúde envolvidos?”
O artigo vai trazer como contribuição para os dados da pesquisa, a matéria da jornalista Eliane Brum para a Revista Época, em que ela mostra dados de uma pesquisa produzida pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A pesquisa foi realizada entre 2009 e 2011 e mostra que o consumo de metilfenidato (medicamentos comercializados no Brasil com os nomes de Ritalina e Concerta) aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos. A jornalista acrescenta ainda que, em 2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na compra desta substância, denominada como “droga da obediência”. Para quem não sabe, o metilfenidato é utilizado como terapêutica privilegiada no tratamento de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). Os pesquisadores concluem que os dados da pesquisa realizada pela ANVISA são corroborados em seu levantamento.
“Entendemos que tais práticas medicalizantes contribuem para o processo de estigmatização dos comportamentos tidos como diferentes no contexto escolar. Sem problematizar o contexto escolar e as diferentes variáveis que compõem as vidas desses alunos, contribui-se, assim, para o processo de culpabilização das famílias, na individualização desta complexa problemática no aluno, chegando ao mais grave que são os usos de medicamentos com efeitos colaterais importantes”
Os pesquisadores concluem que existe uma “epidemia de diagnóstico” que deve ser questionada, pois gera um “ciclo vicioso de tratamento” que poderia ser realizado de maneira diferentes, ou sequer deveria ter sido iniciado. Uma vez que o foco seja encontrar o problema da “não aprendizagem” na crianças, de forma isolada, perde-se espaço para repensar as práticas educacionais e sociais e a própria escola. Dessa forma, os problemas que são coletivos e multifatoriais, tornam-se apenas um problema do indivíduo.
O desafio para os psicólogos e outros profissionais de saúde é ir além disso, buscando um olhar atento e curioso às brechas para o estabelecimento de parcerias com os professores e a escola, contribuindo coletivamente para se pensar a potência de novas ações entre atores da escola e a própria psicologia. Aqui, eu ousaria dizer, também a família ou cuidadores das crianças devem ser incluídos. Dessa forma, a medicalização da infância poderia decrescer e possibilitar uma infância mais saudável para as nossas crianças.
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Artigo Eliane Brum “O Doping das Crianças” → (Link)