Um novo estudo, publicado no periódico científico Psychiatry Research, mostra que os pressupostos básicos das categorias de diagnóstico em psiquiatria são falhos e contraditórios. Este trabalho foi realizado por Kate Allsopp e uma equipe de pesquisadores da Universidade de Liverpool, e que também incluiu figuras proeminentes como Rhiannon Corcoran, John Read (editor da revista Psychosis, e autor de numerosos artigos científicos, bem como o livro Models of Madness: Psychological, Social, and Biological Approaches to Schizophrenia) e Peter Kinderman(ex-presidente da Sociedade Britânica de Psicologia e autor de A Prescription for Psychiatry: Why We Need A Whole New Approach to Mental Health and Wellbeing).
Os pesquisadores analisaram a linguagem usada na chamada ‘Bíblia’ dos diagnósticos psiquiátricos. Os pesquisadores descobriram que o manual de diagnóstico e estatística, ou DSM, é internamente inconsistente, prejudicando a sua própria mensagem. Seus diagnósticos estão focados tanto na promoção de um modelo médico – em que as categorias são conhecidas como ‘transtornos’ biomédicos -, quanto que ao mesmo tempo fornece aos clínicos maneiras de alterar as categorias e de diagnosticar sob bases de julgamento que é puramente subjetivo. De fato, o que o manual diz é que reconhece que esses ‘transtornos descritos’ são simplesmente categorias arbitrárias. Os pesquisadores escrevem,
“Na medida que o DSM-5 reconhece que as experiências nem sempre se encaixam nos limites de um transtorno específico, suas regras são, portanto, internamente inconsistentes. O manual apresenta uma classificação de distúrbios determinados e homogêneos, mas reconhece ao mesmo tempo que essa estrutura nem sempre pode ser seguida devido à sobreposição entre as categorias diagnósticas ”.
Um argumento comum a favor do diagnóstico psiquiátrico é que ele auxilia na pesquisa. Os proponentes do diagnóstico argumentam que isso permite que os pesquisadores criem grupos para testar hipóteses. No entanto, isso só faz sentido se os grupos forem significativos – se os indivíduos de um grupo, de alguma forma, forem semelhantes entre si.
Ao contrário dos diagnósticos médicos, os critérios para diagnósticos psiquiátricos são bastante amplos. Segundo os pesquisadores,
“Na maioria dos diagnósticos tanto do DSM-IV-TR quanto do DSM-5 (64% e 58,3%, respectivamente), duas pessoas poderiam receber o mesmo diagnóstico sem que compartilhem qualquer sintoma em comum.”
Geralmente, para um distúrbio (transtorno) médico, seria de se esperar sintomas semelhantes entre as duas pessoas com a mesma doença diagnosticada.
Devido a esses critérios amplos e variados, muitos dos indivíduos com os mesmos diagnósticos podem não ter o sintoma específico que os pesquisadores desejam estudar. Dessa forma, os diagnósticos realmente dificultam a pesquisa, agrupando indivíduos muito diferentes em categorias arbitrárias.
Isso também afeta o trabalho clínico. Para trabalhar com clientes que apresentam depressão, por exemplo, os médicos têm duas escolhas. Eles podem seguir os tratamentos ‘baseados em evidências’, que são baseados na melhoria média de um grande grupo de pessoas, que podem ter ‘sintomas’ ou experiências diferentes – o que significa que não há conhecimento de quem pode ou não se beneficiar desses tratamentos. Em essência, com base na suposta semelhança de pessoas com depressão, os médicos estão dando um tiro no escuro
Por outro lado, os médicos podem adaptar a sua abordagem ao indivíduo com quem estão trabalhando. No entanto, isso é baseado inteiramente nas crenças subjetivas do clínico sobre o que irá funcionar, em vez de se basear em pesquisas.
Nenhuma delas é uma abordagem realmente científica, segundo Allsop e os outros pesquisadores. No entanto, os clínicos muitas vezes confiam na abordagem ‘pragmática’ de adaptar sua intervenção ao cliente individual, dizendo que pelo menos ela se baseia na pessoa e não em uma classificação arbitrária.
Eles escrevem: “Uma abordagem pragmática da avaliação psiquiátrica, permitindo o reconhecimento da experiência individual, pode, portanto, ser uma maneira mais eficaz de entender o sofrimento psíquico do que manter o compromisso com um sistema categórico falso”.
Os pesquisadores fizeram uma análise temática de cinco capítulos do DSM. Isso permitiu que eles determinassem como os sintomas eram enquadrados dentro e entre os diagnósticos.
Por exemplo, na maioria das situações, cabe ao clínico definir o que é ‘comum’ ou normal” para o seu cliente.
Além disso, como ocorre com o Transtorno Pós-Traumático, os diagnósticos baseiam-se em ‘sintomas’ que geralmente são aceitos como respostas normais a eventos traumáticos intensos e dolorosos. No entanto, os critérios diagnósticos não especificam como determinar quando essas respostas normais se tornam significantes ‘anormais’ da ‘doença’.
Os autores observam que o DSM inclui as categorias “Outros especificados” e “Não especificado” para cada transtorno, que não incluem nenhum critério. Esses diagnósticos permitem que os médicos rotulem os usuários do serviço, mesmo que não apresentem nenhum sintoma, baseado inteiramente no ‘julgamento clínico’.
Os pesquisadores escrevem que alguns diagnósticos exigem a presença de ‘sofrimento clinicamente significativo’, que, é claro, é definido pelo médico sem uma medida objetiva. No entanto, alguns critérios permitem que os clínicos ignorem até mesmo esse julgamento subjetivo e façam um diagnóstico de ‘uma mudança marcante’ no funcionamento, mesmo que a pessoa não esteja sofrendo.
Curiosamente, o DSM-5 afirma que é um sistema ‘ateórico’ de classificação – ou seja, a própria ‘bíblia’ diagnóstica não oferece teorias sobre como ou por que esses supostos ‘transtornos’ emergem. No entanto, um capítulo é agrupado de acordo com a teoria – que é o capítulo sobre Transtorno Pós-Traumático. Os distúrbios nesta seção exigem uma exposição prévia a experiências de risco de vida que seriam traumáticas em qualquer situação. Os sintomas nesta seção se sobrepõem consideravelmente com relação às outras seções, principalmente com os diagnósticos de depressão e esquizofrenia. No entanto, essas duas categorias diagnósticas não mencionam a possibilidade de trauma como sendo o fator causal.
Os pesquisadores sugerem ser este um dos maiores erros no DSM: que implica que o trauma é apenas um fator causal importante para diagnósticos muito particulares, como o ‘Transtorno Pós-Traumático’. Não obstante, os pesquisadores vem descobrindo evidências de que o trauma está implicado no contexto da maioria dos diagnósticos, apesar das tentativas de rotulá-los como meramente ‘biológicos’.
A categorização do DSM ofusca o impacto do trauma e dos estressores (como são a pobreza e o isolamento) no bem-estar humano. Mesmo para o ‘Transtorno Pós-Traumático’, isso implica que a resposta (evitação, pesadelos, etc.) seja um trauma intenso e potencialmente fatal para o ‘transtorno’. Os pesquisadores escrevem:
“Fazendo referência a trauma ou estresse apenas em um capítulo, o DSM-5 implica que as outras categorias diagnósticas não estejam relacionadas ao trauma. A consideração de adversidades sociais, psicológicas ou outras em cada um dos diagnósticos é, portanto, minimizada; os sintomas são construídos como anômalos ou desordenados, em vez de potencialmente compreensíveis em relação às experiências de vida de uma pessoa. Mesmo dentro do capítulo de transtornos relacionados a trauma e seus estressores, as experiências avaliadas, apesar de estarem especificamente relacionadas ao trauma, são vistas como sintomáticas de uma resposta desordenada ou inadequada a esse trauma. ”
Assim, Allsopp e os outros pesquisadores sugerem que o DSM é em seu todo um manual falho, contraditório, cientificamente inútil e que os médicos já pouco fazem uso dele (em vez disso, os médicos passam a confiar no julgamento subjetivo puro).
Agências federais estão começando a se dar conta disso. O Conselho Superior de Saúde da Bélgica acaba de publicar um relatório recomendando ‘cautela’ no uso de sistemas de diagnóstico como os que são usados nos sistemas de saúde dos Estados Unidos e da Europa.
De acordo com esse relatório, “as classificações não fornecem um quadro dos sintomas, necessidades de manejo e prognóstico, porque lhes faltam validade, confiabilidade e poder preditivo”.
É urgente:
“Uma abordagem baseada em recuperação (clínica, pessoal e social), que contextualize melhor os sintomas e adapte as intervenções de acordo com os valores, afinidades e objetivos dos pacientes, trabalhando em estreita colaboração com eles”.
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Allsopp, K., Read, J., Corcoran, R., & Kinderman, P. (2019). Heterogeneity in psychiatric diagnostic classification. Psychiatry Research, 279, 15-22. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2019.07.005 (Link)
Essa situação é óbvia: os diagnósticos surgiram a partir de observação comportamental e psicológica, obedeceram inicialmente a essa dimensão, ou seja, tem desde o início a ver com o sentido do sofrimento psíquico e não com suas manifestações biológicas. A tentativa de adaptá-los para critérios biológicos ou meramente empíricos objetivos só poderia mesmo fracassar, pois é uma adulteração de seu propósito e significado originais.