Chamar alguém de ‘anti-psiquiatra’ não é um argumento – e para muitos parece abusivo

0
1991

Grupos diferentes usam frases e palavras de maneiras diferentes para atingir fins específicos. Isso nunca foi mais verdadeiro do que quando se considera a expressão altamente controversa “anti-psiquiatria”. Alguns optam por usar essa expressão como um distintivo de honra, expressando seu desafio a um sistema que consideram ter causado danos significativos a eles ou a outras pessoas. Outros usam o termo porque acreditam que ele captura a conclusão lógica a seguir aonde as evidências imaculadas e independentes os leva. Outros ainda, enfurecidos por um senso de injustiça ética e social, usam o termo para expressar a ideia de que a psiquiatria não é uma especialidade médica legítima e que estaríamos melhor com ideias e intervenções não médicas. [I]

Os usos acima do termo ‘anti-psiquiatria’, no entanto, são muito diferentes de como agora estão sendo implantadas por muitos profissionais de saúde mental e psiquiatras, geralmente no contexto de um debate acalorado e em geral pejorativamente. Esse último uso ocorre principalmente quando alguém rotula um crítico (por exemplo, um profissional, um usuário de serviço ou uma organização) como ‘anti-psiquiatria’ sem o consentimento ou acordo desse crítico, e muito menos sem realmente saber se o criticado se identifica com essa frase. Esse uso específico, “ele é um antipsiquiatra” geralmente tem a intenção de denegrir o crítico como sendo alguém irracional, despropositado; generalizando erroneamente a partir de sua experiência que se encontra fora da curva, chamando-o de irresponsável, por estar expressar sentimentos negativos com relação à psiquiatria, além de estar em busca de intervenções para ‘salvar vidas’. Esse uso pejorativo, por conseguinte, transforma a expressão “antipsiquiatria” em uma arma, na tentativa de silenciar, deturpar ou deslegitimar o debate crítico e a dissidência.

Um bom exemplo disso foi o recente artigo do psiquiatra americano Ronald W. Pies. [2] Segundo ele, o argumento bem fundamentado de que a psiquiatria ou os psiquiatras promoveram a teoria do desequilíbrio químico da depressão é, de fato, uma ilusão da mente ‘anti-psiquiátrica’ e que, portanto, é não confiável. A técnica aqui empregada é tão primitiva quanto obtusa: basta expandir a definição de ‘anti-psiquiatria’, para assim abranger todas as críticas pelas quais se tem pouca simpatia, manchando-as por associação ao termo.

Tais sofismas são tão dissimulados quanto cada vez mais se tornam populares. Por exemplo, agora observo, com crescente preocupação, quantos colegas profissionais estão usando a frase de maneiras cada vez mais indiscriminadas e hostis; sem pensar se captura com precisão a posição da outra pessoa, tampouco sem se importar com a maneira como a calúnia está sendo recebida. Uma coisa é que eu diga que estou com ‘excesso de peso’, mas outra coisa é inteiramente distinta se você me chamar publicamente de ‘estar com excesso de peso’, especialmente no contexto de desacordo ou debate acalorado. Isso não está bem – isso é, de fato, sutilmente abusivo. Mas agora testemunhamos esse tipo de derrapagem ocorrendo com crescente regularidade. Apenas outro dia um médico sênior se referiu a um grupo de pacientes, que se sentem vítimas da psiquiatria, organizado nas mídias sociais, como sendo pessoas que fazem o ‘culto à anti-psiquiatria’ ; e outro médico, conhecido por todos, a dizer que se trata de um grupo de pacientes organizados pelos sentimentos ‘anti-psi’ e ‘anti-med’. Em tais contextos, essas frases vem sendo usadas para relegar a raiva dos pacientes aos males de pertencer a uma seita irracional. Eles não são vistos como reagindo compreensivelmente aos danos graves sofridos dolorosamente, senão a falhas psiquiátricas claramente percebidas. Nesse caso, sua dissidência passa a ser deturpada, estigmatizada e patologizada, agravando assim a mágoa deles e, de maneira compreensível, a raiva deles com relação à psiquiatria.

Como nada de bom ocorre ao se derramar gasolina aonde há incêndio, é dever de qualquer profissional de saúde mental evitar atacar, silenciar ou deturpar aqueles que pretendem servir, especialmente quando essas pessoas passaram pelos nossos serviços de assistência psiquiátrica. Mas a etiqueta anti-psiquiatria está cada vez mais sendo usada, indiscriminadamente. Como também pode vem ocorrendo com relação ao novo termo ‘crítica’, com um olhar de desaprovação, dirigido a alguém que questiona a ortodoxia atual; como se a única posição correta hoje em dia deva ser a de acrítica.

Então agora permitam-me concluir com uma confissão. Não sou um anti-psiquiatra, se por essa expressão se queira dizer “negar a legitimidade fundamental da psiquiatria como uma especialidade médica”. Mas isso não significa que estou feliz com o status quo (com bio-reducionismo, a excessiva prescrição de psicofármacos, a medicalização da existência humana, o baixo humanismo, os vínculos corrosivos com a indústria, os danos produzidos pelas drogas psiquiátricas, o conservadorismo institucional, a predominância do modelo médico e, assim por diante). No entanto, embora eu não seja da anti-psiquiatria nesse sentido restrito, respeito inteiramente o direito dos outros de se definirem dessa maneira, e nunca usaria esse termo de maneira pejorativa contra eles. O fato é que, se você se define como anti-psiquiatra ou psiquiatra crítico ou qualquer outro termo que escolher (e para ser sincero, não sei dizer com qual tag muitos dos críticos que eu conheço se identificam), você não deve tolerar os outros definindo você como eles querem que você seja visto, especialmente quando isso é feito com más intenções. Quando isso acontece, é uma forma sutil de abuso. E devemos deixar isso claro para os caluniadores.

***

Notas de pé de página:

[1] Openly identifying with this term is more characteristic of activists in the US, where people like Bonnie Burstow were proud to own it. In contrast, few UK professionals or survivors use this term about themselves – and ironically, nor did most of the ‘anti psychiatrists’ of the 1960s and 1970s, with the exception of David Cooper who coined the term. A growing term of preference in the UK today is ‘pro-evidence’, and for good reason, as it moves the emphasis away from what one is against to what one is for.

[2] Pies, R. W. Debunking the Two Chemical Imbalance Myths, Again. Psychiatric Times, 2019 Aug [website] https://www.psychiatrictimes.com/depression/debunking-two-chemical-imbalance-myths-again

***

[Publicado originalmente no Mad in the UK. Trad. Fernando Freitas]