Chamar alguém de “antipsiquiatra” não é um argumento – e para muitos parece abusivo

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Grupos diferentes usam frases e palavras de maneiras diferentes para atingir fins específicos. Isto nunca foi mais verdadeiro do que quando se considera a expressão muito controversa ‘antipsiquiatria’. Alguns optam por usar esta expressão como um distintivo de honra, expressando a sua rebeldia contra um sistema que sentem ter causado a eles ou a outros danos significativos. Outros usam a expressão porque acreditam que ela capta a conclusão lógica de seguir onde as provas independentes e não adulteradas os levam. Outros ainda, enfurecidos por um senso de injustiça ética e social, usam o termo para expressar a idéia de que a psiquiatria não é uma especialidade médica legítima e que estaríamos melhor com ideias e intervenções não médicas [i].

Os usos acima do significante “antipsiquiatria”, no entanto, são muito diferentes de como ele está sendo empregada por muitos profissionais da saúde mental e psiquiatras, geralmente no contexto de debates acalorados e de forma pejorativa. Este último uso ocorre principalmente quando alguém rotula um crítico (por exemplo, um profissional, um usuário de serviços ou uma organização) como ‘antipsiquiatra’ sem o consentimento ou concordância deste crítico, e sem realmente saber se o crítico se identifica com esta frase. Este uso particular geralmente tem a intenção de denegrir o crítico como irracional, não razoável, como alguém generalizando erroneamente a partir de sua experiência anterior, e como quem irresponsavelmente dissuade, através da expressão de sentimentos negativos, outros de procurarem intervenções “salvadoras de vidas”. Este uso pejorativo, portanto, fomenta o termo em uma tentativa de silenciar, deturpar ou deslegitimar o debate crítico e a dissidência.

Um bom exemplo disto foi o recente artigo do psiquiatra americano Ronald W. Pies [ii]. Segundo ele, o argumento bem fundamentado de que a psiquiatria ou psiquiatras têm promovido a teoria do desequilíbrio químico da depressão é, na verdade, ele insinuou, uma ilusão da mente “antipsiquiatra”, e por isso não é confiável. A técnica aqui é tão primitiva quanto obtusa: basta expandir a definição de ‘antipsiquiatria’ para englobar todas aquelas críticas pelas quais você tem pouca simpatia, maculando-as por associação.

Tal sofisma é tão desonesto quanto cada vez mais popular. Por exemplo, observo agora com crescente preocupação quantos dos meus colegas de profissão estão usando a frase de maneiras cada vez mais indiscriminadas e hostis; não pensando se ela capta com precisão a posição da outra pessoa nem mesmo se preocupando com a forma como a calúnia está sendo recebida. Uma coisa é se eu me chamar de “lamentador” * ou ” acima do peso”; mas outra coisa é que você passe a publicamente me chamar destas coisas, especialmente em contexto de desacordo ou debate acirrado. Isto não é correto – isto é, de fato, sutilmente abusivo. Mas agora testemunhamos este tipo de escorregamento ocorrendo com uma regularidade crescente. Ainda outro dia, um médico sênior se referiu em suas redes sociais a um grupo de pacientes lesados como pertencentes ao “culto antipsiquiátrico”, e um outro médico como essas pessoas sendo maculadas por sentimentos “antipsiquiátricos” e “anti-médicos”. Em tais contextos, estas frases estavam sendo usadas para rebaixar a raiva dos pacientes lesados como sendo males próprios aos que pertencem a uma seita irracional. Elas não são vistas como reações compreensíveis a danos graves dolorosamente sofridos, ou a falhas psiquiátricas claramente percebidas. Neste caso, a sua dissidência foi deturpada, estigmatizada e patologizada, agravando assim o seu sofrimento e, muito compreensivelmente, a sua raiva.

Uma vez que nada de bom vem de derramar gasolina sobre um incêndio, é dever de qualquer profissional da saúde mental evitar atacar, silenciar ou deturpar aqueles que pretendem servir, especialmente quando tais pessoas passaram pelo nosso serviço. Mas a etiqueta antipsiquiatria está sendo cada vez mais usada indiscriminadamente para fazer essas mesmas coisas (como também pode ser verdade para o novo termo “críticos”, que denota, com um olhar atento, qualquer um questionando a ortodoxia atual, como se a única posição correta hoje fosse ser acrítica).

Portanto, deixe-me agora encerrar com uma confissão. Não sou antipsiquiatra se nos referimos ao termo “negar a legitimidade fundamental da psiquiatria como especialidade médica”. Mas isso não significa que eu esteja satisfeito com o status quo (com o bio-reducionismo, a sobre-prescrição, a sobre-medicalização, o baixo humanismo, os laços corrosivos com a indústria, os prejuízos causados pelas drogas, o conservadorismo institucional, o domínio excessivo do modelo médico e assim por diante…). No entanto, embora eu não seja antipsiquiatra nesse sentido restrito, respeito inteiramente o direito dos outros de se definirem desta maneira, e jamais usaria este termo de forma pejorativa contra eles. O fato é que, quer você se defina como antipsiquiatra ou da psiquiatria crítica ou qualquer outro termo que você escolha (e para ser honesto, não poderia lhe dizer com qual etiqueta muitos dos críticos que conheço se identificam), você não deve ter que tolerar que outros o definam como sendo como eles querem que você seja visto, especialmente quando isto é feito com má intenção. Quando isso acontece, é uma forma sutil de abuso. E devemos deixar o perpetrador saber disso.

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[i] A identificação aberta com este termo é mais característica dos ativistas nos EUA, onde pessoas como Bonnie Burstow se orgulhavam de possuí-lo. Em contraste, poucos profissionais ou sobreviventes do Reino Unido usam este termo sobre si mesmos – e ironicamente, nem a maioria dos “anti psiquiatras” dos anos 60 e 70, com a exceção de David Cooper, que cunhou o termo. Um termo de preferência crescente no Reino Unido hoje é “pró-evidência”, e por uma boa razão, pois afasta a ênfase do que se é contra pelo que se é a favor.

[ii] Pies, R. W. Debunking the Two Chemical Imbalance Myths, Again. Psychiatric Times, 2019 Ago https://www.psychiatrictimes.com/depression/debunking-two-chemical-imbalance-myths-again 

* Nota do tradutor: O termo usado pelo autor é “remoaner”, que vem sendo usado no Reino Unido para se referir a uma pessoa que continua a argumentar que a Grã-Bretanha deveria permanecer na União Europeia, apesar de haver votado a saída no referendum em 2016.

[trad. e edição Fernando Freitas]