No dia 17 de maio, data que antecede o dia nacional da Luta Antimanicomial, a Associação Metamorfose Ambulante de Usuários e Familiares do Sistema de Saúde Mental do Estado da Bahia (AMEA), em 2020, comemora 13 anos de luta e resistência. No cenário baiano, a AMEA, ao longo dos anos, vem impulsionando a apropriação dos direitos humanos e o seu potencial político pelos usuários e familiares de saúde mental, exercendo sua função legítima de mobilização e controle social. Sobretudo, se levarmos em consideração o atual cenário de retrocessos vivenciados nos últimos anos, no que tange as politicas públicas voltada para a saúde mental. Entendemos que a participação política de grupos historicamente discriminados é fundamental dentro do processo de construção de uma sociedade mais democrática e mais equânime.
Para festejar essa data tão significativa, foi elaborada uma Cartilha [1] que revisita a trajetória da Associação. Uma das missões da Amea é promover a inclusão social das pessoas em sofrimento mental, através da afirmação dos seus direitos humanos e apoio às suas famílias, reivindicando a efetivação dos seus direitos, a garantia do acesso aos diversos serviços e a melhoria da assistência no Sistema Único de Saúde da Bahia.
Aos longos desses anos não foram raras as vezes que testemunhamos, com alegria, a luta das pessoas em sofrimento mental para a efetivação da Reforma psiquiátrica e para sua afirmação como sujeitos sociais e como protagonistas das suas histórias e demandas.
Podemos enquadrar os objetivos da Amea em um perfil de associação de “defesa de direitos”, pois tem o compromisso de combater a discriminação, os preconceitos e coibir a violência social e institucional. Além disso, fomenta e participa de diversas iniciativas junto ao poder público, universidades e organizações sociais.
Alguns projetos foram desenvolvidos nesse caminhar antimanicomial, podemos destacar o projeto Loucura Cidadã (2009) que partiu de uma discussão coletiva que envolveu integrantes da AMEA, profissionais de saúde e militantes da Luta Antimanicomial. Este projeto teve objetivo geral de assegurar que os direitos humanos dos usuários dos serviços de Saúde Mental e os de seus familiares sejam respeitados no mais amplo espaço possível do território baiano, orientando e indicando tal público aos locais e às formas de acesso a tais direitos.
Destaca-se como resultados deste primeiro trabalho coletivo, o curso de capacitação em direitos humanos e a construção do Guia de Direitos Humanos Loucura Cidadã (2011). [2] Para chegar à elaboração deste material, a AMEA realizou uma série de oficinas junto a usuários e familiares dos serviços de saúde mental, levantando as principais dúvidas e desconhecimentos sobre os direitos humanos deste público. As oficinas foram sistematizadas e serviram como subsídio para a elaboração do Guia.
Para fortalecer a dimensão sociocultural da luta antimanicomial, ou seja, modificar a concepção e o estereótipo que se mantém acerca do o louco e a loucura, a Amea participa e constrói junto com o Coletivo Baiano da Luta Antimanicomial a Parada do Orgulho Louco, desde 2008 ocupando as ruas da capital baiana com alegria e delicadeza buscando alterar padrões de sociabilidade que por vezes apresentam traços autoritários, discriminatórios e opressivos.
O estatuto social da Associação (2007) preconiza que a Amea é constituída por número ilimitado de associados. A diretoria é composta por um Diretor Geral, um Diretor Financeiro e um Secretário, tendo um mandato de dois anos, com apenas uma reeleição. A AMEA é administrada pelos seguintes órgãos: Assembleia Geral, Diretoria e Conselho Fiscal. Sua diretoria é eleita ordinariamente em processo eleitoral previsto no estatuto da entidade. O voto é direto, secreto e individual. As reuniões de diretoria são abertas aos associados e ocorrem semanalmente, às quartas-feiras na sede da Casa Gerar de Economia Solidária em Saúde Mental.
A história da Amea é atravessada por muito afeto, apresento alguns depoimentos de atores muito significativos nos caminhos percorrido até então:
“A Amea é agente de transformação. É espaço de tolerância, surge para ofertar outras condições de vida para que cada um possa ter a sua própria luz. Pra mim foi um momento de aceitação da minha loucura, é o que te me dado base para seguir em outros espaços como o Conselho Estadual e Municipal de Saúde.” Eduardo Calliga (atual Diretor Geral da Amea e militante da Luta Antimanicomial).
“DISCURSO AMEA”
Nós somos AMEA – Associação MEtamorfose Ambulante.
Associação porque estamos a nos juntar numa sociedade que nos representa com legitimidade;
porque viemos a nos associar como um grupo que se quer UNIDO pra se fazer mais forte
(ainda que não seja tão fácil nos mantermos juntos).
Metamorfose porque descobrimos que somos sujeitos da nossa transformação e,
como a lagarta tece seu casulo e se faz borboleta – como sai da condição de quem rasteja e alça voo entre as flores –
queremos passar da penumbra da dor da nossa tristeza à claridade da alegria que vivenciamos hoje.
Somos agentes da nossa libertação, quando rompemos os limites de um mundo entre muros
e encontramos a atenção dos cuidados, que possibilitam que exerçamos a cidadania.
Ambulante porque não estamos mais “institucionalizados”, preso a ambientações ou fardamentos;
podemos encontrar um jeito de conviver com as diferenças;
podemos estar em diferentes espaços, e agir do modo mais adequado;
poderemos achar o melhor modo de nos cuidarmos.
Somos AMEA – ASSOCIAÇÃO METAMORFOSE AMBULANTE
DE USUÁRIOS E FAMILIARES DO SISTEMA DE SAÚDE MENTAL DA BAHIA.
Estamos a nos conscientizar dos nossos direitos, para que possamos agir de modo a efetivá-los em nosso cotidiano.
Queremos ser reconhecidos como cidadãos, ou reconhecidas como cidadãs:
– cumprir nossos deveres – trabalhar com nossas habilidades
– receber os benefícios assistenciais que forem necessários
– tocar a vida como uma pessoa de bem, que pratica o que for possível, contente com aquilo que tem, conquistando tudo que pode.
“DE PERTO, NINGUÉM É NORMAL”, a gente sabe disso bem, por experiência própria.
Mas, a gente também sabe que as “normas” regem as relações entre as pessoas e os relacionamentos em todas as instituições.
Portanto, enquanto indivíduos, todos estão sujeitos a conflitos, com a própria identidade, com outras personalidades,
com perdas & ganhos, ou fracassos ou vitórias. Estamos vivendo!
Assim, vez por outra pode ser que nos afastemos da norma.
E quem foi que disse que somos NORMAIS?
Não assinamos nenhum atestado com o tal de CID? Será que a gente tem que aceitar isso?
Aceitamos a ATENÇÃO aos nossos comportamentos, como se houvesse a prática de um CUIDADO para conosco.
Até que cheguemos ao lugar do AUTOCUIDADO, onde possamos cuidar de nós mesmos, do nosso bem estar!
NÓS SOMOS AMEA PELO SIMPLES ATO DE AMAR
– AMAR A NÓS MESMOS – AMAR A VIDA
– AMAR A SAÚDE – AMAR A BELEZA DE ESTAR BEM.
AMAR = AMEA = A AME, AME ELA = AME-A = AMEA.
O EXERCÍCIO DE APRENDER A AMAR
VEM NOS TRAZER A ARTE DO OFÍCIO DE AMAR.
Sérgio Pinho dos Santos (Poeta, Membro Fundador da Amea, Militante da Luta Antimanicomial).
“Me chamo Silas Lima fui diretor financeiro da Amea numa época onde a efervescência política e cultural do movimento social contava com expressiva adesão de usuários do serviço em substituição aos manicômios. Existia forte ação de empoderamento e, um desejo de ser o ator da própria história. Costumávamos nos reunir no CRP no intuito de estudar a história do SUS, para nos apropriarmos desse vasto conhecimento empírico. Marcus Vinicius era o mentor de um grupo de universitários intitulado coletivo antimanicomial e, esses jovens sempre mediavam nossos encontros trazendo um pouco de organização as reuniões e, instigando o aprendizado através de pautas, mas sem nos tirar a autonomia. Nas ações e demandas diárias aprendíamos a tecer uma rede de saberes e se exercitar o respeito mútuo. Não era fácil acalmar os ânimos então criamos regras de conduta durante as reuniões semanais. Os verdadeiros militantes do movimento precisam relembrar para construir uma Amea verdadeiramente forte e com autonomia, pois é fruto do sonho de muitos. – Silas Lima (ex-Diretor Financeiro da Amea, estudante de psicologia, militante da Luta Antimanicomial)
“Quero contar como cheguei na Amea. Eu estava no Hospital Juliano Moreira, fui transferida pro Hospital Dia de lá. Ia pela manhã, fazia as atividades lá, até que um dia fui levada por Edna Amado e Eliana Brito para uma reunião da Amea. Isso aconteceu uma semana antes da I Marcha de Usuário para Brasília. Fiquei encantada quando cheguei na reunião, vários usuários falando, construindo a militância, e eu nesse momento ainda estava muito medicalizada, sem entender direito. Acabou que eu fui uma das pessoas que foram escolhidas para ir pra Marcha. Depois disso despertei minha militância e virei membro Amea. Entrei em outros movimentos. A Amea é fruto do amor, me revigora. A quarta-feira é um dia de ir pra reunião de elaborar projetos, de articular outras pessoas para estarem lá. Nunca vou deixar de ser Amea, é o meu lugar! – Helisleide Bomfim (Técnica de enfermagem, atriz, militante da luta antimanicomial e coordenadora do Papo de Mulher).
“A Amea é o que deu sentido a vida, é um sonho antigo que a gente tinha de ter uma associação desde que nos reuníamos no ISBA. Eu, Vera, Eduardo Araújo, Marcus Vinicius, Edna Amado… Foi aí que percebi que a luta e os direitos seriam iguais. Deixei de ser chamada por um número e virei Girlene de Almeida, militante do movimento da Luta Antimanicomial, fundadora da Amea, depois veio o Papo de Mulher, o teatro dos Isênicos. Ser militante é um sonho realizado. A pandemia está mexendo com a gente, mas vamos seguir fortes e vivos. Hoje eu sou mãe, mulher, avó, não sou mais uma louca jogada no mundo. Não permito que me tratem mal. Eu sou Girlene Almeida, a mulher do movimento antimanicomial, a mulher feminista, sonhadora de um sonho que virou realidade.” Girlene de Almeida (membro-fundadora Amea, militante da Luta Antimanicomial, feminista)
“Sou usuária de saúde mental. Minha relação com esse estágio sutil da mente começou muito cedo. Ainda muito nova, por coincidência, eu morei em uma rua que abrigava diversas pessoas com transtornos mentais, mas como sempre fui diferente, as pessoas diziam que eu era maluca, eu tinha esse estigma. Fui crescendo e as pessoas foram achando que eu era uma viagem, uma pessoa maravilhosa, até que chegou um ponto que aconteceu uma situação grave comigo e eu tive que ir para o Caps. Logo depois fui ser a primeira representante mulher desse serviço. Foi aí que me envolvi com a Luta Antimanicomial. Eu achei legal, me apaixonei. Me identifiquei, eu conseguir entender, compreender, me relacionar com diferentes pessoas. Comecei a frequentar a Amea as vezes era como se estivesse vivendo em uma nave espacial sentada naquela mesa de reunião, eram coisas e temas que hoje compreendo, mas que eram estranhas. Eu senti que tinha que lutar, já que muitos não podiam mais, muitos estava sofrendo, não tinha direitos, visibilidade. Hoje a Amea é uma representação forte no Estado da Bahia. A militância mudou a minha vida, eu não tinha perspectiva, depois entendi que a gente pode se aceitar, pode ser como a gente é. Pode lutar pelos outros, se empoderar, ter força, coragem, olhar as pessoas de frente e não abaixar a cabeça pra ninguém. O cuidado que aprendi que aprendi que temos que ter uns com os outros tem me fortalecido. Lutar pelos direitos dos usuários é a minha missão na Amea. Hoje as pessoas me valorizam, sou respeitada na minha família.” Ana Santos (Vice-Diretora Amea, militante da Luta Antimanicomial, membro do Papo de Mulher)
A existência da Amea evidencia que novos modos de cuidado e de sociedade são possíveis, que o movimento é potência de vida. Sigamos juntos por uma sociedade sem manicômios.
[1] Disponível em https://drive.google.com/file/d/1CmV7fKozdJ-s3RKU-rT0dPVif_vD1Jmm/view
[2] Disponível em http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/saude-mental/guia-de-direitos-humanos-loucura-cidada/view