Esketamine para Depressão: “a repetição de erros do passado”

Os pesquisadores argumentam que os ensaios clínicos da esketamina para depressão não demonstram eficácia e minimizam os possíveis danos

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Em um novo artigo publicado no British Journal of Psychiatry, os pesquisadores Joanna Moncrieff e Mark Horowitz revisaram as evidências para o uso da esketamina na depressão. Eles descobriram uma falta de evidência de eficácia e uma minimização dos danos do medicamento.

“A esketamina foi licenciada para ‘depressão resistente ao tratamento’ nos EUA, Reino Unido e Europa. Os ensaios clínicos para o seu licenciamento não estabeleceram eficácia: dois ensaios foram negativos, um mostrou um efeito estatisticamente significativo, mas clinicamente incerto, e um ensaio de descontinuação defeituosa foi incluído, contra o precedente da Food and Drug Administration. Sinais de segurança – mortes, incluindo suicídios e danos na bexiga – foram minimizados ”, escrevem Moncrieff e Horowitz.

A esketamina – uma versão recentemente licenciada do tranquilizante para animais e da droga recreativa cetamina – foi aprovada para o tratamento da depressão nos EUA, Reino Unido e Europa no ano passado. Segundo os pesquisadores, “a esketamina é duas vezes mais potente que a cetamina”. Ao contrário da cetamina, que é administrada por via intravenosa, a esketamina foi formulada como um spray nasal para facilitar o uso.

A cetamina é conhecida por causar efeitos nocivos, incluindo danos na bexiga, ataques cardíacos e derrames. Quando usada recreativamente, cria um estado dissociativo no usuário, que alguns acham eufórico.

Cinco ensaios foram submetidos à FDA dos EUA para que a empresa farmacêutica Janssen recebesse a aprovação pela agência reguladora. Três desses ensaios foram ensaios clínicos randomizados de curta duração que usaram a esketamina comparando-a a um spray nasal como placebo – e os três duraram apenas quatro semanas, portanto mais curtos que os ensaios de eficácia usuais no desenvolvimento de medicamentos (a FDA geralmente exige ensaios de 6 a 8 semanas).

A FDA exige que pelo menos dois ensaios de eficácia sejam positivos, “cada um por si só tem que ser convincente”, a fim de aprovar um novo medicamento. No entanto, em dois dos três ensaios, a esketamina não foi melhor do que um spray nasal placebo para melhorar os sintomas da depressão. No terceiro estudo, a esketamina foi marginalmente melhor que o placebo – quatro pontos melhor em uma escala que chega a 60 pontos. Os pesquisadores dizem que essa diferença é clinicamente insignificante – imperceptível tanto pelo paciente quanto pelo médico.

Quando a Janssen não conseguiu atender aos requisitos de aprovação do medicamento, a FDA fez uma exceção – permitiu que a empresa submetesse um estudo de “descontinuação” como evidência de eficácia. Esse tipo de ensaio clínico teve participantes que que estavam se saindo bem com o medicamento e que de repente pararam de tomá-lo, o que geralmente induz efeitos de abstinência que podem mimetizar a depressão, entre os outros efeitos nocivos. No entanto, nesse ensaio clínico de “descontinuação”, seus efeitos foram considerados “recaídas” e tomados como evidência, não da abstinência, mas da eficácia do medicamento.

Talvez ainda mais preocupante seja o fato de que, dentro do estudo da descontinuação, um único local na Polônia levou à essa aparente descoberta de eficácia. Os dados deste site sugeriram que 100% do grupo placebo supostamente recaíram (em comparação com cerca de 33% do grupo placebo em todos os outros sites) – um resultado improvável. Quando os dados desse ‘outlier’ suspeito foram removidos, a análise do estudo não mostrou evidências de que a esketamina fosse melhor do que o placebo.

Por fim, Janssen enviou um teste de segurança para demonstrar que tomar esketamina não era perigoso. Em todos os ensaios realizados por Janssen, que incluiu cerca de 1800 pacientes em esketamina, houve seis mortes no grupo da esketamina. Três foram mortes por suicídios, sendo que dois ocorreram em pessoas que não tinham pensamentos suicidas anteriores. Todos os três suicídios ocorreram logo após a interrupção do medicamento, indicando que eles poderiam ter resultado de efeitos de abstinência.

As outras três mortes foram devidas a efeitos comuns da cetamina: uma morte foi um acidente de motocicleta (que pode ocorrer devido à dissociação após o uso de cetamina), uma foi por um infarto do miocárdio e uma foi causada por insuficiência cardíaca e pulmonar aguda. Uma pessoa sofreu uma hemorragia cerebral não fatal, que também é um efeito conhecido da cetamina. Cinco outras pessoas que tomaram esketamina tiveram acidentes de carro não fatais.

Além disso, no grupo da esketamina mais pessoas sofreram piora da depressão e mais pessoas tiveram pensamentos suicidas do que no grupo do placebo. Por esse motivo, a embalagem da esketamina terá que levar o “aviso de tarja preta” de que o medicamento pode aumentar as chances de suicídio.

Cerca de 20% dos participantes tiveram problemas na bexiga após tomar o medicamento. Metade dos participantes experimentou dissociação e cerca de um terço experimentou tontura.

No entanto, a FDA aceitou o argumento da Janssen de que todas essas mortes estavam desconectadas da droga que todos os participantes haviam recebido. A FDA afirmou que não podia concluir que mesmo os efeitos não fatais eram devidos à droga, embora todos esses efeitos sejam comumente observados em usuários da cetamina.

O Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidados do Reino Unido (NICE) recomenda contra a esketamina por “depressão resistente ao tratamento” devido à falta de estudos de longo prazo e porque não há evidências de que o medicamento seja melhor do que os tratamentos existentes. No entanto, de acordo com os pesquisadores, o NICE também deve considerar que mesmo as supostas evidências de curto prazo não são convincentes e que os danos à droga foram minimizados.

Horowitz e Moncrieff escrevem:

“Parece que os temas históricos estão se repetindo: uma droga conhecida de mau uso, associada a danos significativos, é cada vez mais promovida, apesar das poucas evidências de eficácia e sem estudos adequados da segurança a longo prazo”.

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Horowitz, M. A., & Moncrieff, J. (2020). Are we repeating mistakes of the past? A review of the evidence for esketamine. The British Journal of Psychiatry. Published online by Cambridge University Press: 27 May 2020. DOI: https://doi.org/10.1192/bjp.2020.89 (Link)