A Loucura de Jair Bolsonaro

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Já durante essa pandemia uma jovem médica de esquerda com bastante alcance nas redes sociais colocou a foto de Jair Bolsonaro preso em uma camisa-de-força com a seguinte legenda: “Bolsolini comprou um novo terno para o seu próximo pronunciamento”.

Fiquei bastante chocado com a incapacidade de perceber o quão problemático é o teor de um meme com essa conotação. Com muita cordialidade a interpelei sem o tom agressivo que costumeiramente os antagonistas tomam nas redes sociais. Falei para ela sobre quanto é ruim sugerir que Bolsonaro é um doente mental por conta de sua performance como presidente e por seus posicionamentos fascistas.

Ainda mais, falei como é irresponsável usar um instrumento de tortura para ilustrar um suposto louco, afinal, para quem conhece a luta antimanicomial, sabe bem que é isso que uma camisa-de-força.

A médica em questão falou que não estava sugerindo loucura, mas sim, da necessidade de limitar os seus movimentos. Com muita paciência argumentei que não me parecia prudente que a gente pudesse utilizar um pau-de-arara como figura para significar a limitação dos movimentos de alguém, assim, a camisa-de-força, algo historicamente imputado à loucura, um processo de tortura referendado como cuidado, não poderia ser vista assim, sendo aquela sugestão não ofensiva com Bolsonaro e com o seu protofascismo, mas sim com todas as pessoas que sofrem ou sofreram violência em manicômios ou nos equipamentos ainda existentes que permaneceram com práticas manicomiais.

O fim dessa conversa foi isso. Ela não apagou a foto, não respondeu mais, os comentários eram de piadas e todo mundo ali continuou de esquerda, de oposição, de luta e crítico, mesmo reproduzindo um debate ignorante, preconceituoso, violento e estigmatizante sobre saúde mental.

Já em março deste ano apareceram os primeiros pedidos de interdição de Bolsonaro. Agora, partidos e lideranças de esquerda fazem coro com essa defesa, perpetuando piadas e compreendendo a violência bolsonarista como uma incapacidade de enxergar o mundo com sanidade.

Achando que estão desmoralizando Bolsonaro, os setores de esquerda continuam a se desmoralizar com ações que apenas jogam para a torcida, viram memes, tornam assuntos pertinentes nas redes sociais, mas que não atingem a estrutura fundamental que perpetua o bolsonarismo e, sobretudo, o projeto ultraliberal no poder. Para ficar ainda mais grave fazem isso aprofundando senso comum e caricaturas perigosas sobre temas que não conhecem, mas que deveriam conhecer.

Essa forma de encarar as coisas não é nova. Estamos acostumados a tratar o que nos choca como loucura. Não é loucura. Pior, a questão é que além da falta de capacidade política, de valores opressores e da defesa de um projeto genocida ser algo totalmente normal em nossa sociedade, isto é, além do fato de Bolsonaro ser o tipo médio dos sujeitos que reproduzem opressões e negacionismos cotidianamente e isso nada tem a ver com doença, o uso da anormalidade e da loucura como periculosidade e, desta como algo a ser marginalizado, silenciado e eliminado serviu historicamente para patologizar coisas consideradas chocantes para uma sociedade que criminaliza os pobres, que é racista, machista e lgbtfóbica. Em suma, quem costumeiramente foi tido como louco, que teve que ser interditado, que fez uso de tratamentos violentos foram os sujeitos oprimidos.

A notícia de um pedido de impeachment questionando a sanidade mental de Bolsonaro quando o mesmo comete crimes de responsabilidade fiscal, crimes contra a humanidade, quando tem ligações com milicianos, vive mergulhado em escândalos de corrupção, retira cotidianamente os nossos direitos, descumpre um calhamaço de artigos constitucionais e reproduz todos os dias posições de racismo e lgbtfobia, enfim, a centralidade na suposta insanidade demonstra a incompetência da oposição lidar com fatos concretos para disputar o poder, mas também revela como muitos que estão lado de cá adoram realizar discursos críticos em diversas áreas, mas estão longe de compreender os impactos do mito da loucura, da lógica manicomial, da medicalização, do tratamento do sofrimento mental intenso como doença individual e da patologização das expressões da questão social como algo fundamental à essa sociedade que dizem querer transformar.

Tão certos contra o apelo da cloroquina como um lobby da indústria farmacêutica os reprodutores do mito da loucura de Bolsonaro não percebem que caem na mesma armadilha com suas provocações rasas e ignorantes. Tão radicais contra tantos assuntos, continuam a mistificar a saúde mental, reproduzir o velho e carcomido positivismo ou a nova e vencida pós-modernidade.

Os delírios de Bolsonaro não são fantasias de um surto, mas reprodução de uma ideologia violenta, sua incompetência e apelo ao senso comum não tem nada de doentio, pois é tão somente a premiação da ignorância e da lógica formal-abstrata promovida pela decadência ideológica da hegemonia que se apega a qualquer forma tosca para a manutenção do poder e do lucro. Sua perversão e insensibilidade não são deformações psicológicas, mas características de um fascista, expressões de uma lógica alienada e alienante.

Bolsonaro não está doente. Bolsonaro representa um projeto e o nosso choque não é e nem deve ser com uma patologia, mas com as estruturas desse projeto. Não é a anormalidade de Bolsonaro e de seu governo o grande problema, ao contrário, é a normalidade de tudo isso, é a naturalização que vai desde o extermínio da população preta, passando pelo encarceramento penal, pelas torturas na ditadura até o aprisionamento em hospitais psiquiátricos.

Patologizar Bolsonaro é fingir que a tragédia que vivenciamos está apenas nele, é desconhecer que o que o produziu é muito mais complexo que um surto individual ou coletivo e, por fim, é perpetuar a mesma lógica de sempre sobre saúde mental.

Não se enganem que aqui estou tendo uma visão ingênua, voluntarista ou liberal quanto à Bolsonaro. Não pensem que estou entrando naquela lógica de que “desejar o mal é se igualar a ele”. Não é nada disso. Contra o fascismo não cabe nenhuma ingenuidade e nem condescendência. O grave de tudo isso é que essa forma imatura e irresponsável de enfrentar Bolsonaro demonstra o quanto estamos perdidos na capacidade de combatê-lo.

Não vivemos uma sociedade doente. Vivemos uma sociabilidade em crise, mas que funciona assim desde que se fundou. Vivemos uma sociedade que coloca o lucro em primeiro lugar, onde a vida humana não tem valor fora da exploração, onde negros, mulheres, LGBTs e nordestinos sofrem discriminação, valem menos como força de trabalho, tiveram suas culturas patologizadas e puderam e podem ser eliminados em caso de necessidade do mercado. Vivenciamos uma sociedade do moralismo e do autoritarismo, onde nossas contradições e desigualdades são amortecidas com mentiras, com tiros, com aprisionamento e também com substâncias químicas vendidas nas farmácias.

Vivemos uma pandemia, mas não estamos numa sociedade doente e nem somos governados por um louco. Não se trata essa sociedade como um remédio, mas sim, se derruba sua estrutura desigual para a construção de algo radicalmente novo. Não se retira o presidente genocida o chamado de louco, mas sim realizando pressão e um trabalho político para desvendar para os nossos aqui de baixo como sua política e esse projeto quer o nosso fim.

Dentro de um tempo histórico tão turvo é fundamental romper com supostos atalhos que nada mais são do que desvios, distorções apressadas, caricaturas, placebos para fingir que avançamos, enquanto não conseguimos fazer a tarefa essencial: não tolerar a violência, a intolerância e a desigualdade.

Há males que nem por bravatas são combatidos com ivermectina ou com camisa-de-força Autoritarismo se combate com a força coletiva, com horizonte emancipatório e, por isso, com necessidade de coerência e sem reprodução de preconceitos e de uma lógica conservadora em todas as áreas. Chamar fascista de louco é o terraplanismo da esquerda na saúde mental.