QUAL É A TÔNICA DO “SETEMBRO AMARELO”?

O mês de setembro é conhecido pela campanha “Setembro Amarelo” onde são realizadas diversas ações de conscientização em massa sobre a prevenção ao suicídio, juntamente com mídias sociais, entrega de folhetos, passeatas e outras ações públicas. Iniciada em 2014, com integrantes da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em parceria com o Conselho Federal de Medicina – (CFM), o “Setembro Amarelo” tem como dia oficial, 10 de setembro, o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Diante disso, faço o seguinte questionamento: que vida queremos valorizar?

De acordo com Brasil (2009, p.40) pode-se definir o suicídio como “ato humano de causar a cessação da própria vida” e a tentativa de suicídio consiste no “ato de tentar cessar a própria vida, porém, sem consumação”. Sabe-se que o suicídio é um fenômeno complexo e multifatorial. Por ser multifatorial engloba fatores sociais, econômicos, psicológicos, biológicos e, sobretudo, políticos. Precisamos falar sobre o suicídio, mas também precisamos falar sobre o “Setembro Amarelo”.

A narrativa do “Setembro Amarelo”, diversas vezes, vem acompanhada de uma positividade tóxica, com discursos de “você é especial”, “valorize a vida” ou “todos pela vida”, que podem ser geradores de gatilhos e culpabilização por quem sofre, além de reforçar, em sua maioria, valores mercadológicos que, muitas vezes, despotencializam e desvalorizam o verdadeiro significado de prevenção ao suicídio. Dessa forma, o interlocutor, no caso os profissionais de saúde ou especialistas na área e afins, não estão preparados para dispor de um diálogo aberto e, consequentemente, leva a não legitimação da dor de quem está sofrendo. Entre avanços e recuos do “Setembro Amarelo” é possível estabelecer críticas contundentes que visem construir um novo lugar social.

Em outras palavras, estamos falando de uma sociedade, que no atual contexto político e de contrarreforma psiquiátrica, exclui e segrega o ano todo. Mas, especificamente no mês de setembro se mostra compreensível e empática. É imperativo que falemos sobre o suicídio de forma ampla, isso quer dizer, compreender que o suicídio está associado a fatores como sofrimento psíquico, baixo nível educacional, desemprego, preconceito quanto as questões étnico-raciais, de gênero e orientação sexual, machismo, desigualdade social e violência. É fácil falar que devemos valorizar a vida, por meio de programas e postagens sensacionalistas, enquanto o atual contexto político se afunda cada vez mais em discursos opressores e individualistas e onde tentam sucatear o Sistema Único de Saúde (SUS), visando romancear a privatização da assistência. Todos os dias a sociedade morre um pouco, pois é difícil viver em um mundo sem esperança, com diluição de laços e desamparo social.

O sociólogo Émile Durkheim, em sua obra “O Suicídio” (1897), analisa muito bem o fenômeno do suicídio como um fato social, onde o elemento central é a coesão social. Para Durkheim (1973, p.16), “cada sociedade tem, a cada momento de sua história, uma aptidão definida perante o suicídio”. Nesse caso, o suicídio pode ser egoísta, mais comum em sociedades modernas onde o indivíduo não se sente pertencente a grupos sociais; suicídio altruísta quando é feito para defender uma sociedade coesa; e suicídio anômico quando o indivíduo perde as esperanças na sociedade devido a mudanças sociais e ausência de regras (ex: desemprego, crise econômica, etc.). Dessa forma, a teoria de que todo suicídio ocorre por alguém que, necessariamente, possui uma doença mental cai por terra. São múltiplas as influências extra-sociais e propriamente sociais que precisam ser compreendidas. Logo, a estatística dos 95% que diz que todas as pessoas que cometem suicídio possuem um transtorno mental é enviesada, já que o suicídio é multicausal.

Há que se reconhecer a importância do “Setembro Amarelo”. A campanha mobiliza inúmeras pessoas em um objetivo comum: o da prevenção. A ampliação do debate do fenômeno do suicídio constrói, de forma exponencial, a quebra de tabu sobre o assunto. Sem a campanha do “Setembro Amarelo” provavelmente seria mais difícil falar de suicídio. Entretanto, para uma pessoa o “Setembro Amarelo” pode funcionar. Mas para outras não. Isso vai de acordo com a realidade biopsicossocial de cada, sendo uma percepção individual. São escolhas. E só quem realmente sente e precisa é que sabe. No entanto, deve-se buscar desconstruir o modelo tradicional e (re)pensar outras formas de abordagens promovendo um processo de transformação social que ocorra o ano todo. No que tange aos profissionais de saúde e/ou outros divulgadores da campanha do “Setembro Amarelo”, é imperativo que divulguem e ofereçam ajuda dentro dos seus limites de atuação e de forma responsável e crítica, pois a dor de quem sofre é urgente. Cabe lembrar que qualquer ajuda não ajuda.

Pensar no fenômeno do suicídio no Brasil demanda mudanças estruturais. Uma das estratégias para se pensar em conscientizar a população sobre o suicídio são as estratégias de advocacy, pois visam fortalecer a democratização da sociedade em um processo de tomada de decisão. Nesse sentido, as propostas, as informações e os argumentos sobre prevenção ao suicídio deverão ser confiáveis e transparentes, com vistas a obter maior conscientização sobre uma causa e envolver outros atores formadores de opinião, inclusive o setor público para repensar políticas públicas relacionadas ao fenômeno do suicídio. Outro ponto importante é fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) incluindo uma lógica desinstitucionalizadora e antimanicomial. Essas medidas, se adotadas, terão forte potencial para fazer frente ao grave problema de saúde pública decorrente do suicídio no Brasil.

A crítica ao “Setembro Amarelo” é urgente para que possamos construir pontes sobre, mas também quebrar qualquer ideia obsoleta sobre o tema, compreendendo que o suicídio não é meramente relacionado a alguma doença mental, mas um problema coletivo com consequências sociais e extremamente danosas para o país. Cabe a nós a informação e a responsabilidade em divulgar essa informação.

Sem delongas, perante o contexto social e político em que estamos vivenciando, pensar em “Setembro Amarelo” requer estratégias globais e de fortalecimento de políticas públicas TODOS OS MESES DO ANO.

 

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual instrutivo de preenchimento da ficha de notificação/investigação de violência doméstica, sexual e outras violências. Brasília: MS; 2009.

DURKHEIM, Émile. O Suicídio. (1897). Lisboa/São Paulo: Editoral Presença/Martins Fontes, 1973.0