Acho muito importante explicitar minha posição frente ao documento “Diretrizes para um modelo de Atenção em Saúde Mental no Brasil” produzido por várias organizações e, dentre elas, a Associação Brasileira de Psiquiatria. Esse documento cita dois de meus artigos de 1990 e 1994 (escrevi mais de 150 artigos de 1994 até hoje mostrando minha posição antimanicomial inequívoca, mas eles não são citados).
Acho importante esclarecer que a cortesia, que me foi dada ao citar dois de meus escritos, entretanto, não corresponde a nenhum tipo de concordância, de minha parte, com as posições expressas no documento.
As recomendações finais do documento expressam exatamente o contrário do meu pensamento (por exemplo, não considero, jamais, o eletrochoque como um tratamento a ser recomendado e estou convencido de que qualquer forma de internação em manicômios é uma violação dos princípios terapêuticos e éticos expressos na Convenção das Nações Unidas sobre os direitos de pessoas com deficiência).
Acho que precisamos investir em seis áreas principais:
1. Em primeiro lugar, a integração da atenção à saúde mental nos serviços primários de saúde é um componente fundamental da atenção integral à saúde mental. A equipe de atenção primária deve ser capaz de fornecer identificação precoce de transtornos mentais, tratamento de pacientes psiquiátricos estáveis, encaminhamento para outros níveis, quando necessário. No entanto, muitas vezes, a ênfase no papel da atenção primária
tem sido a desculpa para não investir em atenção secundária de saúde mental, isto é, em serviços comunitários de saúde mental. Que esteja muito claro: somente se houver cuidados de saúde mental comunitários fortes e generalizados, o pessoal da atenção primária será capaz de funcionar com eficácia. Se não houver nada entre a atenção primária e a terciária, a equipe da atenção primária será capaz de fazer muito pouco e provavelmente falharam m suas tentativas. Portanto, prefiro falar da equipe da atenção primária e da equipe da atenção secundária como partes de uma organização única e harmoniosa, em estreita comunicação e com gestão conjunta dos casos mais complicados.
2. Em segundo lugar, precisamos de mais investimentos em “Cuidados de Saúde Mental Comunitária”. Hoje, existe um amplo consenso que demonstra que a atenção à saúde mental deve abandonar o modelo exclusivamente hospitalar e caminhar para a atenção baseada na comunidade. Essa mudança é necessária por três motivos: ampliar a cobertura, melhorar a qualidade do atendimento e reduzir as violações de direitos humanos. As equipes comunitárias devem, então, ser substancialmente fortalecidas.
3. O terceiro é o foco em hospitais gerais. Os ambientes de hospitais gerais oferecem um local mais acessível e aceitável para atendimento médico 24 horas por dia para pessoas com transtornos mentais agudos. Não precisamos admitir pacientes agudos em hospitais psiquiátricos. Não há mais polêmica sobre isso: é um assunto que tem muitas evidências científicas.
4. Em quarto lugar precisamos fortalecer os processos da desinstitucionalização do Hospital Psiquiátrico. As instituições psiquiátricas têm um histórico de graves violações dos direitos humanos, com resultados clínicos ruins e programas de reabilitação inadequados. Eles também são caros e consomem uma parcela desproporcional dos gastos com saúde mental. Há evidências científicas suficientes para mostrar que pessoas com deficiências mentais crônicas graves não devem ser atendidas em hospitais psiquiátricos. É preciso parar com o debate a favor ou contra o manicômio: é um debate medieval que é superado por evidências epidemiológicas, clínicas, de saúde pública e, sobretudo, éticas.
5. Em quinto lugar está o foco na legislação, direitos humanos e capacitação do usuário. Considerando que Brasil ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, todas as leis nacionais devem ser consistentes com as Normas desta Convenção. As organizações de usuários devem ser radicalmente fortalecidas e as violações dos direitos humanos devem ser punidas, não sendo mais toleradas.
6. O sexto é o Foco na Prevenção. Desenvolver programas i) prevenção do suicídio; ii) treinamento dos pais disponibilizando habilidades para o relacionamento com as crianças; iii) prevenção do uso nocivo de álcool e substâncias psicoativas.
Concluindo, é necessária uma mudança radical de paradigma de um modelo biomédico para um modelo pautado na promoção e defesa dos direitos humanos e capaz de proporcionar intervenções que tenham um impacto real sobre os determinantes sociais da doença, que são, por exemplo. pobreza, exclusão social e baixo nível educacional. Por isso me identifico plenamente com os princípios e práticas do movimento de luta antimanicomial brasileiro e as experiências de reforma dos últimos anos, que têm
acompanhado as lutas pelos direitos dos usuários e trabalhado pela superação total e definitiva dos hospitais psiquiátricos.
Benedetto Saraceno
06 de Dezembro de 2020