Há algumas semanas atrás, em uma aula, uma aluna perguntou-me: “Quem foi Franca Basaglia?” Agradeci muito a pergunta e repito aqui o que disse naquele dia: qualquer oportunidade de recordar Franca Ongaro Basaglia é única. As atuais discussões em saúde mental fazem com que, mais do que nunca, seja urgente o resgate de sua obra e reflexões sobre a relação entre medicalização, feminismo e capitalismo, ainda tão pouco exploradas no Brasil.
Franca nasceu em 1928 e foi uma figura de grande referência para lutas e processos de resistência na Itália, desde a década de 1960. Apesar de suas grandes contribuições, infelizmente, não é incomum que sua referência se esgote a: “foi companheira de Franco Basaglia”. Ora, se é verdade que este relacionamento marcou suas vidas pessoais e os processos que construíram conjuntamente, é também fundamental ir além. Isto, porque Franca precisa ser lembrada também como socióloga e militante que foi, assim como por seus escritos, suas práticas em saúde mental e seu protagonismo em serviços e ações inovadoras que até hoje nos inspiram e fazem ser possível uma atenção psicossocial territorial e um feminismo que se pretende antimanicomial.
Membra do Partido Comunista Italiano, foi uma das fundadoras do movimento que ficou conhecido como Psiquiatria Democrática e que balançou um país e o mundo através do fechamento de leitos psiquiátricos. Participou ativamente do fervilhamento de experiências que transcendiam o espaço biomédico e tomou a luta contra a marginalização e manicomialização de pessoas em sofrimento psíquico enquanto nodal para a luta de classes.
Ainda na juventude, apesar de se destacar enquanto estudante, foi inicialmente proibida de cursar a universidade pela família, sob a justificativa de ser mulher. Seu projeto de ser escritora, porém, não ficou interrompido. Trabalhando como datilógrafa em uma empresa de eletricidade escreveu, nas décadas de 1950 e 60, histórias infantis publicadas pelo Corriere dei Piccoli. Mais tarde, em parceria com Franco Basaglia, assinou obras reconhecidas como La maggioranza deviante [1], Crimini di pace [2] e Morrire di Clase: La condizione manicomiale [3]. Organizou os livros Scritti Basaglia I [4] e II [5], além de outras obras compartilhados com demais companheiros da Reforma Psiquiátrica Italiana, como La nave che affonda [6].
Individualmente, publicou livros como Mario Tommasini. Vida e Feitos de Um Democrata Radical [7] e Salute/malattia. Le parole della medicina [8]. Sobre o tema mulheres e loucura, Franca escreveu Grillo parlante (1970) e Il soldato e la sword (1972), publicados na antologia Una voce Riflessioni sulla donna [9], além de editar e comentar a republicação de um texto Paul Julius Moebius, publicado em 1900, intitulado A inferioridade mental das mulheres [10]. De grande destaque é o seu livro Mujer, Locura y Sociedad” (ONGARO BASAGLIA, 1983), traduzido na década de 1980, pela Universidade de Puebla, no México, país no qual foi reconhecida por sua referência feminista, assim como o prefácio do consagrado livro Woman and Madness [11], de Phyllis Chesler.
Eleita duas vezes como senadora pela esquerda independente se dedicou às pautas vinculadas às drogas, às violências sexuais, às prisões e aos manicômios. Foi uma figura central para a implementação efetiva da lei 180, de 1978, que direcionou o fechamento dos hospitais psiquiátricos italianos. Sua atuação intelectual e política foi reconhecida em 2000 com o prêmio Ives Pelicier, da Academia Internacional de Direito e Saúde Mental, e, em 2001, com o título Doutora Honoris Causa, pela Universidade de Sassari, pela “Proteção dos direitos e conhecimentos disciplinares”.
Em suas últimas falas e ensaios, Franca afirmou a urgência da radicalidade na Reforma Psiquiátrica. Para ela, era preciso retornar à raiz, avaliar seus caminhos e limites e realizar uma mudança radical nas fundações das várias disciplinas que se voltavam para as diversidades e desigualdades. Nesta investida, problemáticas referentes à medicalização e ao feminismo foram alguns dos nortes neste caminho.
Suas contribuições sobre a medicalização ganharam fôlego especial no livro “Salute/malattia. Le parole della medicina”, destinado à Enciclopédia Einaudi. Negando a noção de doença enquanto fenômeno natural, a autora marcava sua relação com a produção social e histórica em constante mudança no interior da organização social capitalista. Voltada para este cenário, lançou luz sobre a padronização neoliberal dos corpos considerados desviantes e improdutivos, tanto a partir da instituição psiquiátrica asilar quanto dos novos serviços. Estes, ainda permeados pela lógica manicomial sob o formato de uma estrutura de políticas públicas e de saúde que mantêm a lógica de isolamento, são problematizados por Franca e apontados como símbolo da permanência de uma lógica. A qual figura social está vinculada o sujeito considerado saudável ou “doente”? é um questionamento que acompanha todo o escrito, apontando para trazendo elementos vinculados à raça, estatuto migratório, renda e gênero (CASTORINA, 2017) [12]
Em sua fala na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, na Fiocruz, em 1996 [13], a autora retornou à problemática da tutela em saúde mental, realizada pela via da medicalização enquanto manutenção da norma. Para tal, Franca a localizou a partir de 3 caminhos: (1) pela via da objetivação do sujeito como premissa à cientificidade de intervenção médica; (2) pela redução de fenômenos vinculados a condições sociais, psicológicos e relacionais a um dado apenas natural e biológico e (3) pela consideração de fenômenos naturais como patológicos (ONGARO BASAGLIA, 2008) [14].
Ao denunciar a construção da doença mental na racionalidade do capitalismo, Franca sustentou a importância de que a classe trabalhadora fosse entendida de maneiras distintas em suas suas opressões e medicalizações, também a partir das relações de gênero. Em “Mujer, Locura y Sociedad” (1983) [15] problematizou a concepção de sujeito universal, fundada e fundante da medicina psiquiátrica, e apontou para as condições históricas que reduziram as mulheres ao corpo, à natureza e ao irracional. Neste livro, a autora chamou atenção para os efeitos subjetivos da violência contra as mulheres, para os impactos do trabalho doméstico e sua sobrecarga e o para o aprisionamento da sexualidade feminina. Analisou o sofrimento subjetivo de mulheres e seus desdobramentos nas instituições psiquiátricas e seus processos de medicalização, sublinhando que: “as mulheres são consideradas mais loucas que os homens nas culturas ocidentais” (ONGARO BASAGLIA, 1983: p. 56, tradução nossa). Localizando que quanto mais restritos os papéis sociais das mulheres em sua sociedade, mais graves seriam os tipos de infrações sob os rótulos e sanções psiquiátricas sobre estas, propôs: “(…) investigar a “loucura” das mulheres a enfocando como um fenômeno explícita e historicamente determinado (ONGARO BASAGLIA; 1983, pag 56, tradução nossa).
Até o momento de escrita deste artigo, não localizei no Brasil materiais biográficos sobre a vida de Franca, mas em seu país algumas produções marcam a memória desta autora e militante. Entre elas, a ação teatral “A Voz de Franca Basaglia”, de Mattia Berto, exibida na décima edição do Festival dei Matti [16]. Outra produção que não poderíamos deixar de citar é a mais ampla e conhecida biografia de Franca Basaglia que se encontra na Enciclopédia Italiana de Ciências das Letras e das Artes [17], escrita por Maria Grazia Giannichedda, também fundadora da Fundação Franca e Franco Basaglia, em Veneza. Este espaço se constitui hoje como o maior inventário da obra e vida desses dois companheiros de vida, luta e intelectualidade, reunindo fotos, pôsteres, documentos, livros e outros materiais.
REFERÊNCIAS
[1] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F. La maggioranza deviante. Baldini & Castoldi:2018.
[2] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F. Crimini di pace. Ricerche sugli intellettuali e sui tecnici come addetti all’oppressione. Baldini & Castoldi:2018.
[3] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F. Morire di classe. La condizione manicomial. Turim: Einaudi, 1969.
[4] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F(org). Scritti Basaglia I(1953-1968) -dalla psichiatria fenomenologica a all’esperienz di Gorizia. Turim: Einaudi, 1981
[5] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F(org). Scritti Basaglia I(1964-1980) -dall’apertura del manicomio alla nuova legge sul’assistenza psichiatrica. Turim: Einaudi, 1982.
[6] BASAGLIA F; ONGARO BASAGLIA F.; PIRELLA AG; TAVERNA S.La nave che affonda. Cortina Raffaello: 2008.
[7] ONGARO BASAGLIA F. Mario Tommasini. Vida e Feitos de Um Democrata Radical. São Paulo: Editora Planeta, 1990.
[8] ONGARO BASAGLIA F. Salute/malattia. Le parole della medicina. Alpha & Beta:2012.
[9] ONGARO BASAGLIA, F. Una voce Riflessioni sulla donna. Italia: Il Saggiatore, 1982.
[10] ONGARO BASAGLIA, F. Prólogo. MOEBIUS PJ. La inferioridad mental de la mujer. Barcelona: Bruguera, 1982.
[11] CHESLER P. Woman and Madness. New York: Avon Books, 1973.
[12] CASTORINA R. Medicalizzazione e normalizzazione nella governance neoliberale. L’atuualità del pensiero di Franca Ongaro Basaglia . Franco Angeli: Sociologia del Diritto, f.1, p. 9-34.
[13] A fala foi proferida no Seminário Comemorativo dos 15 anos do Curso de Especialização em Psiquaitria Social, na Fiocruz (RJ), em 1996 e publicada em formato de texto em Ongaro Basaglia (2008).
[14] ONGARO BASAGLIA, F. Saúde/doença. In: AMARANTE, P. e CRUZ, L. (org.). Saúde mental, formação e crítica. Rio de Janeiro: Laps, 2008. Cap. 1, p. 17-36.
[15] ONGARO, BASAGLIA, F. Mujer, Locura y Sociedad. Puebla, Universidad Autónoma de Puebla: 1983.
[16] La voce di Franca Ongaro Basaglia, ação teatral de Mattia Berto. Maiores informações em: https://zero.eu/en/eventi/157979-la-voce-di-franca-ongaro-basaglia,venezia/
[17] GIANNICHEDDA MG. La voce di Franca Basaglia. Disponível em: http://www.alphabetaverlag.it/142/Public/extra/Giannichedda_Salute_e_malattia.pdf