A Perspectiva Neurodesenvolvimentista como Construtora de Identidades Baseadas no Biológico

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A ascensão dos “transtornos do neurodesenvolvimento”, marcada pela publicação do DSM-V, e sua influência no campo da educação é o tema do artigo publicado pela revista de educação Movimento. Os autores, Thais Klein e Rossano Cabral trazem uma bibliografia selecionada com o intuito de expor os riscos da tentativa de associação entre psiquiatria, neurodesenvolvimento e educação, sendo a infância seu alvo principal.

Com a publicação do Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais (DSM-V) surge um capítulo apresentado pela primeira vez, denominado “Transtornos do Neurodesenvolvimento”. Nele são agrupadas as deficiências intelectuais, o transtorno da comunicação, os transtornos específicos da aprendizagem, os transtornos motores e também o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e os transtornos do espectro autista. Substituindo a seção dos “Transtornos usualmente evidentes pela primeira vez na infância e adolescência.”

A perspectiva neurodesenvolvimentista se apoia na ideia de um desenvolvimento a longo prazo que teria início na infância e se estenderia até a vida adulta. Pretende-se definir critérios de normalidade e patologia a partir do desenvolvimento cerebral, produzindo uma “identidade cerebral”, ou seja, identidades baseadas na neurobiologia. Essa associação da psiquiatria é uma tentativa de trazer maior legitimidade biomédica, mas na prática não se sustenta em marcadores biológicos.

O agrupamento de transtornos como problemas do neurodesenvolvimento pretende construir um olhar longitudinal sore o curso dos transtornos mentais. Categorias antes consideradas como do âmbito da infância são estendidas para os adultos, como é o caso do TDAH. Para os autores, considerar a patologia como variação quantitativa e o normal ser reduzido à média estatística, na verdade esconde uma alteração qualitativa/valorativa.

“Alguns fatores, como o progresso das neurociências, o uso de neuroimagens pela mídia, dentre outros, ajudam a circunscrever esse cenário que coloca o cérebro como detentor das propriedades e autor das ações que definem o sujeito. O termo “sujeito cerebral” aponta para a crença de que o cérebro é a parte do corpo que engloba toda a identidade pessoal.”

As categorias diagnósticas são um campo que produz bioidentidades, isto é, uma construção da identidade baseado na corporeidade biológica, a aproximação entre self e corpo se torna quase absoluta. No contexto do TDAH é possível perceber um sutil deslocamento entre portar o transtorno para ser um TDAH.

Por outro lado, o movimento da neurodiversidade, dentro do campo de estudos sobre deficiência, acreditam que deficiência e doença não são fatos biológicos, mas construções socioculturais que tem como objetivo regulamentar corpos e cérebros. Portanto, as bioidentidades possuem singularidades que devem ser respeitadas e não essencialmente patologizadas, assim como outras diferenças tais como gênero, raça, credo, entre outras.

“O próprio termo transtorno (disorder) vem sendo substituído por condições (do espectro autista), não apenas nos textos dos ativistas da neurodiversidade e suas associações, mas também na própria literatura no campo do cognitivismo.”

Levando em consideração que a indústria farmacêutica tem seus esforços direcionados para a criação de novos mercados consumidores, a infância é seu alvo favorito. Principalmente, levando em consideração que caso um medicamento tenha seu uso aprovado para a infância nos EUA, sua patente pode ser estendida em até seis meses. Igualmente, psicofármacos para crianças são um mercado crescente, principalmente porque estes são os medicamentos mais consumidos pelas crianças e adolescentes norte-americanos.

Atualmente, as escolas estão absorvendo cada vez mais a ideologia do empreendedorismo, bem como o vocabulário da neurociência, o que acaba gerando um impacto inevitável na identidade da criança e do adolescente. Os tipos humanos diagnosticados passam a se enxergar, experimentar e descrever por meio das lentes do diagnóstico, impactando sua autopercepção.

Como conclusão, os autores afirmam que a perspectiva do neurodesenovimento é produtora (e produto) de uma certa maneira de conceber a infância, assim como de práticas de controle ligadas a essa fase do ciclo vital. Mas é importante deixar claro que a promessa neurodesenvolvimentista não se consumou. Há muitos obstáculos na tentativa de descrever com precisão uma etiologia biológica para os transtornos mentais. Dessa forma, a concepção do neurodesenvolvimento acaba produzindo uma compreensão do normal e do patológico que se aproxima de prescrições de cunho moral. É necessário que a escola se insira como agente desse processo, ao invés de receptora passiva.

 

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Klein, T.; Lima, C. R. A Epidemia de Diagnósticos e a Medicalização da Educação: desafios à formação e atuação docentes, Movimento- Revista de Educação, Niterói, ano 7, n. 15, p.106-132, set./dez., 2020. (Link)