A CPI do genocídio foi prorrogada por mais noventa dias. No Brasil, continuamente assistimos estupefatos às declarações de corrupção na gestão da pandemia. Propinas, acordos escusos que foram firmados às custas da vida de mais de meio milhão de brasileiros. Enquanto os brasileiros precisavam de vacina, estava no balcão do governo a propina associada à compra e venda de vacinas. Medidas mais firmes são levantadas a todo tempo na CPI como pedidos de prisão temporária, preventiva e até mesmo em flagrante, crime contra a vigilância sanitária, prevaricação, corrupção passiva, epidemia dolosa. As gravíssimas declarações realizadas na CPI perfilam a estreita associação entre os escândalos e o “familiarismo” deflagrado no Palácio do Planalto.
O familiarismo em política pressupõe a fantasia social compartilhada da família como núcleo de relações hierárquicas naturalizadas, “não problemáticas”, da autoridade baseada no amor e na devoção. Em núcleos deste tipo os lugares sociais de autoridade e submissão são lugares naturais. Essa sobreposição das relações econômicas sociais complexas à lógica da “casa” não visa apenas à produção ideológica de ilusões de naturalidade dos modos de circulação e produção de riquezas. Ela visa à sobreposição fantasmática entre o corpo social e o corpo do pai, dos irmãos. Sobreposição esta que deve produzir docilidade em relação à autoridade (Safatle, 2020). Esta lógica aproxima a política da lógica religiosa, regida pela fé, pela crença, pelo imaginário. Aspectos que fogem da explicativa racional baseada em argumentos.
Contudo, algo ruiu. O corpo, o pai, a autoridade autoproclamada aos quatro ventos, o mito. Podemos observar fendas e rachaduras profundas que prenunciam o desmantelamento do governo.
O desmoronamento paulatino da narrativa anticorrupção que, mais uma vez, foi utilizada para a ascensão de um poder autoritário, vem produzindo uma reação diametralmente oposta no que se refere a saúde: a redução das taxas de mortes por covid-19 e a ampliação vacinal. Neste momento histórico, parece haver um forte antagonismo entre a saúde enquanto cuidado com a população, valorização da vida e, de outro lado, as ações do poder executivo. Os ataques frequentes à saúde, à saúde pública e a defesa ferrenha de tratamentos “mágicos”, sem embasamento científico, expressavam uma das principais tônicas do negacionismo brasileiro.
O uso político do negacionismo não se encerra na concepção de negacionismo científico. Este mecanismo contamina e se expande como negação dos direitos humanos, negação da gravidade da doença e da morte, negação como mentira e manipulação da realidade em prol de um discurso político-econômico que expressa a mescla entre o neoliberalismo predatório e o discurso fascista. Negacionismo que se utiliza de artifícios psicológicos como o medo, a insegurança e o ressentimento para enraizar profundamente seus alicerces sociais nas bases frágeis da nossa democracia.
Corremos o sério risco do não reconhecimento da legitimidade das eleições presidenciais em 2022. O ressentimento foi depositado nas urnas em 2018, sob a forma de voto, com a secreta esperança de vingança. O ressentimento ainda ressoa e produz efeitos sociais desastrosos.
Pensamos com Kehl (2020) que o ressentido é um escravo de sua impossibilidade de esquecer, vive em função de sua vingança adiada, de modo que em sua vida não é possível abrir lugar para o novo. Como se trata de um vingativo passivo, seu silêncio acusador e suas queixas contínuas mobilizam confusos sentimentos de culpa no outro. O ressentido acusa, porém, não está seriamente interessado em ser ressarcido do agravo que sofreu. A dívida permanece impagável: a compensação reivindicada é da ordem de uma vingança projetada no futuro. Uma fantasia de vingança adiada. O ressentimento seria fruto de uma espécie de solução de compromisso entre os prazeres de cobrar uma dívida não na mesma moeda em que ela foi gerada, mas ao preço do sofrimento do credor. Impedido de vingar-se diretamente, o ressentido aposta na vingança imaginária que lhe permitiria gozar do sofrimento daquele que o ofendeu sem ter que se confrontar com sua própria crueldade.
No âmbito individual e coletivo, o ressentido vive a repetição de um gozo preso na pulsão de morte em vez dos variados prazeres possíveis na dinâmica de pulsão de vida. Para compensar a renúncia autoimposta, consola-se acreditando estar no caminho certo, no caminho do bem. Cidadãos de bem. Conservadores ressentidos. Aqueles que lutam pelo retorno nostálgico de um tempo em que eram felizes. A aspiração nostálgica daquilo que não foi, que não aconteceu, faz com que se negue tudo o que não corrobora com a fantasia compartilhada.
A economia moral neoliberal produz os seus descontentes.
Se no neoliberalismo há desarticulação do bem comum, fica claro na pandemia que ninguém se salva sozinho. O ideal meritocrático, o empresariado de si, a concepção privatista da saúde cai por terra quando se pensa que a vacina funciona enquanto ação coletiva de solidariedade.
Outra questão que deve ser cuidadosamente considerada quando falamos de negacionismo é o problema da subnotificação. Sabemos que os dados referidos ao número de mortes são indispensáveis para organizar os hospitais e as UTI, para saber se a estrutura sanitária existente é apropriada ou deve ser ampliada. Conhecer os dados sociodemográficos das vítimas da doença auxilia na implementação de políticas públicas de prevenção e assistência. No entanto, cada vez parece evidente o problema da subnotificação. Por exemplo, no estado de Santa Catarina, foi recentemente publicado um artigo elaborado por pesquisadores da UFSC que aponta com dados muito claros a existência de subnotificação de casos de Covid-19 no estado (Caponi, 2020).
O artigo, denominado “Estimativa da subnotificação de casos da Covid-19 no estado de Santa Catarina”, propõe duas abordagens sistêmicas para estimar os valores da subnotificação do número de óbitos e de indivíduos infectados por Sars-CoV-2. O estudo confronta a ocorrência de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) registrados nas primeiras 16 semanas epidemiológicas de 2020 (até 26 de abril) com o número de casos confirmados de Covid-19 para o mesmo período em Santa Catarina em anos anteriores. O estudo indica que esse aumento de casos pode ter direta relação com Covid-19, ainda que não tenham sido notificados como doentes da pandemia, mas como pacientes com SRAG, indicando a existência de uma clara subnotificação (Bruna-Romero; Carciofi, 2020; Caponi, 2020).
Hoje, por tratar-se de uma pandemia, parece necessário que os governos assumam o respeito às normativas e regulações internacionais estabelecidas por instâncias como a OMS, a Opas ou a Comissão Interamericana de direitos humanos da ONU. No entanto, dia a dia se multiplicam os argumentos que, desconhecendo os direitos humanos fundamentais, estabelecem parâmetros e pautas sobre quem deve e quem não deve ser assistido, legitimando decisões não éticas sobre a vida e a morte (Caponi, 2020).
De acordo com as diretrizes da ONU relativas ao combate à pandemia de Covid-19, o momento representa um verdadeiro desafio global que exige o respeito irrestrito às normas de direitos humanos. Considera que os valores do conhecimento científico devem prevalecer sobre as fakenews, os preconceitos e a discriminação (Caponi, 2020).
No artigo de Pedro Hallal do dia 25/05/2021 para a Folha de São Paulo intitulado “O negacionismo mata” são salientadas as denominadas cidades suicidas. Para sua análise, Hallal retoma os dados estarrecedores trazidos a público pelo jornalista Ricardo Mendonça no Valor Econômico: 5.570 cidades brasileiras foram divididas de acordo com o percentual de votos em Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Em 108 cidades, Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, em 833 cidades teve entre 10% e 20% dos votos, e assim sucessivamente, até chegar nas 214 cidades nas quais Bolsonaro teve entre 80% e 90% dos votos e na única cidade em que Bolsonaro teve 90% ou mais dos votos em 2018.
De posse dessas informações, o passo seguinte foi analisar a quantidade de casos e de mortes por Covid-19 em cada uma das 5.570 cidades. Os dados são de livre acesso, tanto pelo Painel Coronavírus do Ministério da Saúde quanto pelo DataSUS. Nas 108 cidades em que Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, o número de casos é de 3.781 por 100.000 habitantes. A quantidade de casos sobe linearmente até atingir 10.477 casos por 100.000 habitantes nas cidades em que Bolsonaro teve entre 80% e 90% dos votos e 11.477 casos por 100.000 habitantes na cidade em que Bolsonaro teve 90% ou mais dos votos. Os dados para mortes são igualmente chocantes. A mortalidade varia de 70 mortes por 100.000 habitantes nas cidades em que Bolsonaro teve menos de 10% dos votos, até a mortalidade de 313 por 100.000 habitantes na única cidade em que Bolsonaro fez 90% dos votos ou mais no segundo turno das eleições de 2018.
Mais do que os resultados isoladamente, o que chama atenção é a escadinha observada nos gráficos. Ou seja, o morador de uma cidade na qual Bolsonaro venceu o segundo turno das eleições de 2018 tem três vezes mais risco de morte por Covid-19 do que o morador de uma cidade em que Bolsonaro foi derrotado com folga. Assim, podemos afirmar que o negacionismo adoece e mata.
Instrumentos da necropolítica foram utilizados fartamente: a liberação de armas, o discurso negacionista, lentidão proposital na aquisição das vacinas e a corrupção vinculada à compra de vacinas. Lógica do “nós versus eles” operou e opera tanto na gestão da pandemia como nos sujeitos inseridos neste tipo de laço social.
Na compreensão de Dunker (2015) houve uma substituição dos condomínios psiquiátricos, carcerários e cronificantes, baseados no modelo de longa internação e recolhimento hospitalar por um modelo de racionalidade diagnóstica adaptada às exigências do capitalismo à brasileira. Essa nova forma de gestão do mal-estar está centrada na produção de espaços de exclusão e anomia de um lado e na definição de condomínios de classificação diagnóstica flexível, de outro. São zonas artificiais de contenção, de excitação, de anestesia e de separação que funcionam como muros de proteção contra o mal-estar e zonas de exceção contra o sofrimento. Esses muros de proteção também compartimentalizaram a realidade.
A pandemia de coronavírus evidencia que, assim como a educação, a saúde não pode ser pensada compartimentalizada e nem em termos neoliberais de investimento e capital. A saúde não é um bem de mercado que deve ser adquirido na medicina privada, deixando a saúde pública para aqueles que não podem pagar. A pandemia ensina que, como afirma o sociólogo italiano Domenico De Masi (2020), nosso planeta é “uma grande aldeia unida por infortúnios”.
Referências
Caponi, S. (2021). Biopolítica, necropolítica e racismo na gestão da covid-19. Revista Porto das letras, 7(2), 21-44.
Caponi, S. (2020). Covid-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal. Estudos Avançados, 34(99), 209-223. https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3499.013
Dunker, C. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo.
Hallal, P. (2021). O negacionismo mata. Folha de São Paulo.
Kehl, M. R. (2020). Ressentimento. São Paulo: Boitempo.
Safatle, V. (2020). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autentica.