Um artigo recente publicado no Journal of Mental Health examina a freqüência dos dados clínicos da saúde mental no Reino Unido, incluindo informações relacionadas aos determinantes sociais da saúde, bem como os relatos fenomenológicos (focados em sintomas). Estes dados clínicos são baseados em códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde Relacionados (CID) e vêm do banco de dados eletrônico do UK NHS Trust.
Os autores, incluindo o psicólogo clínico britânico Peter Kinderman, descobriram que tanto os determinantes sociais da saúde quanto os códigos fenomenológicos raramente são usados em relatórios clínicos, apesar de sua conhecida prevalência entre os usuários dos serviços.
“Em 2012, um grupo líder de psiquiatras sociais argumentou que a assistência em saúde mental precisava ser reformada, para levar melhor em conta os determinantes sociais. Da mesma forma, o Relator Especial das Nações Unidas Dr. Dainius Puras argumentou que os problemas de saúde mental estão fortemente ligados às adversidades, desigualdades e abusos da primeira infância, e defendeu uma ‘revolução’ no cuidado da saúde mental; uma mudança no foco de ‘tratamento’ para uma base social mais fundamental para o cuidado. Este tipo de visões para a assistêncua tem como primeiro passo o reconhecimento e registro destes determinantes sociais”, escreve Kinderman e seus co-autores.
As Nações Unidas e muitos outros têm apelado para a necessidade de reconhecer o impacto de fatores sociais e econômicos na saúde mental em vez de uma abordagem individualizada baseada no modelo médico. Estes fatores sociais e econômicos incluem fenômenos como pobreza, imigração, experiências adversas na infância, desabrigo e isolamento.
Kinderman também propôs a reforma do diagnóstico psiquiátrico, colocando uma ênfase renovada no diagnóstico de condições sociais em vez de distúrbios dentro dos indivíduos (ver entrevista MIA). Apesar desses apelos, porém, a psicologia e a psiquiatria continuam sendo regidas por um paradigma dominante baseado no individualismo e em entendimentos restritos do cérebro.
O documento atual examina com que freqüência os determinantes sociais dos códigos de saúde foram relatados nos registros de casos de saúde mental no Reino Unido entre 1 de janeiro de 2015 e 1 de janeiro de 2016. Os autores, reconhecendo a “evidência esmagadora” do impacto dos determinantes sociais da saúde sobre a saúde mental, procuraram analisar com que freqüência as categorias CID-10 e CID-11 relacionadas a estes fenômenos são realmente mencionadas nos registros de casos clínicos.
Eles também analisaram a freqüência dos códigos “fenomenológicos” do CDI sendo relatados, concentrando-se nos sintomas, tais como alucinações auditivas e ideações suicidas, em vez de transtornos diagnosticáveis.
Os autores examinaram 21.701 registros de casos do UK NHS Trust, um banco de dados eletrônico baseado no “sistema ePEX, um sistema de registros eletrônicos de saúde projetado tanto para a atividade clínica interna do Trust quanto para a comunicação obrigatória aos comissários e órgãos reguladores”.
Dos 21.701 registros de casos, 4.656 indivíduos receberam um diagnóstico formal.
10,2% de toda a amostra de usuários de serviços foram diagnosticados com um “transtorno mental, comportamental e de desenvolvimento neurológico”, como a esquizofrenia paranóica.
O uso de códigos “quase-diagnósticos”, consistindo de “sintomas, sinais e achados clínicos e laboratoriais anormais, não classificados em outros lugares”, foi bastante raro. Dezenove pessoas (0,1%) das 21.701 receberam um código relacionado, por exemplo, a alucinações auditivas ou “outros sintomas e sinais envolvendo estado emocional” (R45.8).
O sistema do CID é complexo e pode incluir diagnósticos primários e secundários, no entanto, o que forçou os autores a examinar manualmente muitos casos. Códigos relacionados a “sintomas, sinais e achados clínicos e laboratoriais anormais, não classificados em outros lugares” foram mencionados um total de 66 vezes.
Apenas 43 referências foram feitas a códigos do CID relacionados a determinantes sociais de saúde para 39 indivíduos (0,2%, ou 0,8% dos indivíduos diagnosticados).
Por exemplo, dois indivíduos foram identificados como “desempregados”, um indivíduo recebeu o código para “outra tensão física e mental relacionada ao trabalho”, um foi identificado como “sem-teto”, e três foram classificados como “vivendo sozinho”.
Além disso, dois foram classificados como tendo um “problema relacionado ao ambiente social”, sete foram relatados como tendo “problemas relacionados ao suposto abuso sexual de criança por pessoa dentro do grupo de apoio primário”, e seis foram relatados como lidando com o “desaparecimento e morte de membro da família”. Outros receberam códigos relacionados a problemas legais, circunstâncias psicossociais, “estresse, não classificado em outro lugar”, e outras questões.
Quando indivíduos receberam um diagnóstico mental, como a Síndrome de Estresse Pós-Traumático (SEPT), também foi raro encontrar um código psicossocial de acompanhamento. Por exemplo, de 64 pessoas diagnosticadas com SEPT, apenas dois casos mencionaram vagas “circunstâncias psicossociais”. Além disso, não foram relatados “eventos traumáticos específicos” em nenhum desses casos, apesar de a SEPT estar fundamentado em um histórico pessoal de trauma.
Da mesma forma, dos 151 usuários de serviços diagnosticados com um “transtorno de personalidade emocionalmente instável”, apenas um caso mencionou qualquer coisa relacionada a determinantes sociais da saúde – uma única menção de suposto abuso sexual.
Os autores compararam o uso infrequente desses códigos com a prevalência estimada da população. Por exemplo, apenas três pessoas no banco de dados foram relatadas como vivendo sozinhas, enquanto 11% de todos os usuários de serviços de saúde mental relataram viver sozinhos em uma pesquisa representativa.
Experiências adversas na infância relacionadas a trauma foram relatadas apenas 11 vezes (0,05% do total do conjunto de dados), mas em estudos epidemiológicos, 31% dos participantes relataram eventos de trauma na infância.
Em resumo:
“Em geral, foram usados códigos para possíveis determinantes sociais em apenas 39 casos (0,2% do conjunto de dados completo de 21.701 indivíduos, ou 0,8% dos 4656 que receberam um diagnóstico primário). A comparação com as freqüências de base relevantes revelou uma subnotificação altamente significativa de determinantes sociais chave, conhecidos”.
Enquanto isso, códigos fenomenológicos (focados nos sintomas) foram utilizados em apenas 19 casos. Eles observam que estas estatísticas são semelhantes às descobertas do sistema psiquiátrico dos EUA.
No entanto, eles advertem que estes dados não fornecem informações sobre notas clínicas psiquiátricas e de enfermagem “mantidas individualmente”.
Os autores concluem:
“É provável que informações de diagnóstico possam ter guiado decisões clínicas em pelo menos algumas ocasiões, mas não foram registradas no banco de dados. No entanto, a omissão de registros dos determinantes sociais dos problemas de saúde mental é importante, devido ao provável impacto em nossa compreensão dos problemas, nos caminhos dos cuidados e nas agendas políticas.
A descrição das circunstâncias que podem ter contribuído para o sofrimento psíquico promove a compreensão e, portanto, a compaixão. Pesquisas demonstraram que a inclusão de informações sobre determinantes sociais reduz a probabilidade de que um padrão de comportamento seja visto como patológico. Omitir informações sobre circunstâncias psicossociais significa que é mais provável uma explicação biomédica e patologizante”.
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Kinderman, P., Allsopp, K., Zero, R., Handerer, F., & Tai, S. (2021). Minimal use of ICD social determinant or phenomenological codes in mental health care records. Journal of Mental Health, 1-10. (Link)