Um artigo publicado na Child and Adolescent Mental Health tenta preencher uma lacuna na pesquisa com foco na experiência de ouvir vozes para adolescentes menores de dezesseis anos.
Liderados por Sarah Parry da Universidade Metropolitana de Manchester, os pesquisadores utilizaram respostas qualitativas de pesquisa para compreender a forma e a função tanto das experiências positivas com ouvir vozes, quanto das experiências negativas ou angustiantes. Com base em suas descobertas, os autores fornecem sugestões para melhorar a psicoeducação em formatos públicos sobre as funções úteis das vozes.
“As narrativas singulares dentro deste estudo oferecem uma visão da diversidade de experiências de audição de voz e outras experiências multissensoriais para os jovens”, escrevem os autores. “Os jovens não consideram necessariamente ouvir vozes como sendo problemáticas ou indesejadas, com a maioria dos participantes relatando experiências mistas de vozes acolhedoras e angustiantes, com algumas vozes potencialmente angustiantes reconhecidas como valiosas em certos domínios, tais como a criatividade”.
A expressão “ouvir voz” é mais comumente entendida como ruídos, vozes, ou outras percepções audíveis que contêm conteúdo verbal que outros não podem ouvir. É considerada uma experiência mais típica na infância do que na idade adulta, onde tende a tornar-se mais estigmatizada e associada a doenças mentais.
A extensa literatura sobre a audição de vozes nas crianças tem examinado como as vozes auditivas se relacionam com a fantasia e o jogo, assim como companheiros imaginários. Foi demonstrado que os companheiros imaginários para crianças servem como um agente protetor contra a solidão, bem como uma forma de lidar com o trauma. Entretanto, apesar desses benefícios, se os pais expressarem aprovação negativa dos companheiros imaginários, isso pode levar a um maior isolamento e autoavaliação negativa, uma vez que existem evidências de que dinâmicas sistêmicas como o funcionamento da família influenciam a autoestima e a autopercepção dos jovens, há motivos para examinar como essas dinâmicas significativas de relacionamento poderiam impactar a audição da voz.
Um estudo descobriu que a maioria dos ouvidores de voz relatou ter começado a ouvir vozes antes e durante a adolescência, sugerindo que mais pesquisas são necessárias em grupos mais jovens. Com isto em mente, os autores afirmam:
“Áreas adicionais que necessitam de mais atenção referem-se às características das vozes, relações com as vozes e como essas características podem influenciar as intervenções relacionais. Um foco relacional para intervenções psicossociais é de particular importância para as crianças, já que muitas vezes elas dependem de sua família e amigos para ajudá-las a interpretar e formular experiências de vida, ao lado de fatores socioculturais que moderam as avaliações iniciais dos jovens sobre suas alucinações”.
O estudo atual teve como objetivo avançar a compreensão teórica e fenomenológica dos ouvidores de vozes para um grupo sub-representado de jovens de várias nações ocidentais desenvolvidas; a maioria recrutada do Reino Unido e dos Estados Unidos. Os pesquisadores utilizaram uma análise narrativa informada por estudiosos foucaultianos para conduzir e analisar as respostas de pesquisa qualitativa escrita com 68 adolescentes, com uma média de idade de 15 anos. Especialmente, a elegibilidade dos participantes exigia que eles ouvissem vozes que outros não conseguiam ouvir. Eles não eram obrigados a ter recebido um diagnóstico ou estar conectados a um serviço de saúde mental.
Os resultados revelaram que a idade média de início era de 10 anos. Cinqüenta e seis por cento dos participantes relataram uma resposta emocional negativa ou preocupação com as vozes, 23% relataram apenas sentimentos ou crenças positivas sobre as vozes, e 21% relataram emoções mistas. Os autores se concentraram na forma que essas vozes tomaram e na maneira como as vozes funcionaram para elas.
Vozes Confortáveis e Positivas
Narrativas de vozes reconfortantes e positivas foram frequentemente discutidas em termos de ter qualidades pessoais, pronomes e motivações, o que é semelhante a como as crianças descrevem companheiros imaginários. Muitas vezes descreveram as vozes como querendo ajudá-los, fazendo-lhes companhia e pessoas em quem poderiam confiar. Um participante escreveu que as vozes o fizeram sentir “como se [ele] tivesse uma família novamente”. Os autores sugerem que esta descoberta oferece novas maneiras de conceituar as etapas de desenvolvimento da audição de voz, durante as quais os jovens podem se sentir particularmente vulneráveis social ou emocionalmente.
“No geral, os participantes identificaram experiências agradáveis de ouvir vozes através da personificação, relações recíprocas, companheirismo e motivações benéficas reconhecidas na função da voz”.
Vozes angustiantes
Por outro lado, experiências negativas de audição de voz foram descritas através de metáforas, espelhando opressão sociocultural ou pessoal, muitas vezes levando os participantes a se sentirem desanimados ou assustados. Vozes angustiantes tendiam a capturar uma experiência de comando que levava os participantes a se sentirem ansiosos e fora de controle das próprias vozes, ao contrário daqueles que experimentaram vozes reconfortantes que muitas vezes se sentiam no controle das mesmas. Essas vozes angustiantes levaram a uma diminuição da auto-estima, e os participantes as descreveram como “assombrosas” e se sentindo “presas”.
“A sensação de ter menos controle sobre as próprias ações e emoções devido às vozes levou os participantes a descrever sentimentos de ansiedade, dificuldades de concentração e medos em relação ao futuro, com muitos destacando formas pelas quais as vozes os enfraqueceriam”.
Devido à angústia das vozes negativas, foi mais desafiador para os participantes darem sentido a elas. Isto contribuiu para sua angústia geral e reduziu o bem-estar, pois a criação de sentido é uma forma positiva de lidar com as vozes auditivas. Notavelmente, em todos os relatos, as vozes negativas foram mais freqüentemente discutidas usando pronomes masculinos. Os autores observam que resultados similares têm sido mostrados em pesquisas com ouvintes adultos, refletindo desigualdades socioculturais relacionadas ao gênero.
Para resumir estas descobertas, os autores escrevem:
“Embora muitos participantes tenham tido experiências conflitantes de angústia e conforto causadas por suas vozes e angústia relacionada à voz, alguns participantes tiveram apenas experiências positivas, nas quais pareceram sentir-se fortalecidos pelas vozes… No entanto, a maioria dos participantes sentiu como se eles houvesse perdido um grau de controle em suas atividades cotidianas através da experiência de audição de voz, o que maior angústia relacionada à voz influenciou negativamente seu bem-estar geral”.
Embora muitos jovens tenham experiências positivas e negativas com sua audição de voz, os resultados deste estudo revelam que a capacidade de formular a experiência, contextualizar as vozes e recuperar o controle parece ser mais importante em termos de bem-estar. Isto poderia ter um impacto significativo na forma como o tratamento é conceitualizado e como as intervenções são conduzidas para os adolescentes.
Os autores sugerem que seja dada mais educação psicológica aos adolescentes para normalizar e desestigmatizar as mensagens em torno da audição da voz, independentemente de ter sido feito um diagnóstico de saúde mental. Ao oferecer publicamente uma psicoeducação que inclui a função útil das vozes e a reafirmação de que elas assumem muitas formas (tanto formas reconfortantes quanto formas angustiantes), isto pode agir como uma intervenção preventiva de saúde pública contra a angústia evitável relacionada à voz, enquanto também combate o isolamento e o estigma que impede que os adolescentes se abram sobre sua audição de voz.
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Parry, S., & Varese, F. (2020). Whispers, echoes, friends and fears: forms and functions of voice‐hearing in adolescence. Child and Adolescent Mental Health. https://doi.org/10.1111/camh.12403 (Link)