Abordagem filosófica da solidão produz uma nova visão sobre os tratamentos

Valeria Motta defende uma abordagem filosófica fenomenológica para estudar a solidão que se concentra em experiências vividas em profundidade.

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Um artigo recente publicado em Philosophy, Psychiatry & Psychology examina várias maneiras de entender a solidão como parte da experiência humana.

Valeria Motta, pesquisadora de doutorado em filosofia da Universidade de Birmingham, sugere uma abordagem que considera a experiência vivida do tempo, da corporificação e da atenção como dimensões fundamentais da solidão. Ela aborda a questão através das lentes da filosofia fenomenológica, ou do estudo da experiência vivida em profundidade.
“Há boas razões para esclarecer o conceito de solidão. A solidão tem efeitos adversos sobre a saúde física e mental. É um fator de risco para a morbidade e mortalidade em humanos. A solidão pode ser transitória – uma consequência de circunstâncias externas – como a solidão resultante de um luto, uma mudança de cidade ou de círculo social, ou a distância de amigos, família ou parceiros”, escreve Motta. 

“A solidão também pode ser uma angústia crônica sem características salvadoras. Estas observações levantaram questões sobre se a solidão deve ser caracterizada como patologia por si própria, e se aliviar a solidão deve ser um foco chave para os clínicos”.

Em tempos recentes, especialmente durante a pandemia da COVID-19, tem havido uma onda de preocupação em torno da questão da solidão. Durante a pandemia, os jovens têm sido especialmente vulneráveis à solidão. Algumas pesquisas sugerem que a solidão pode ser mais mortal do que o vírus da COVID-19.

É claro que, mesmo antes da COVID-19, a solidão tem sido estudada e ligada a uma série de efeitos negativos à saúde física e mental, incluindo muitos ” transtornos mentais “. Isto levou alguns pesquisadores a chamar a solidão de “ameaça à saúde pública” ligada à ideologia do capitalismo neoliberal.

O presente documento revisa os entendimentos existentes de solidão em diferentes campos, tais como psicologia, sociologia e filosofia. Motta sugere então outra compreensão da solidão a partir de uma perspectiva filosófica, examinando o fenômeno em algumas de suas dimensões fenomenológicas (baseadas na experiência) e sociais.

Motta esboça cinco definições diferentes de solidão antes de apresentar sua própria perspectiva.

A primeira definição se concentra nas “necessidades sociais”, baseada na teoria psicanalítica e do apego [attachment theory], sugerindo que as pessoas têm uma necessidade inata de relações seguras, acolhedoras e tranquilizadoras. Se estes vínculos não forem formados no início da vida ou se desintegrarem na vida posterior, a solidão pode resultar.

A segunda definição se baseia na “discrepância cognitiva”. Esta abordagem se concentra mais nos processos cognitivos do que nas realidades sociais. Aqui, afirma-se que as pessoas se percebem sozinhas. Elas podem ou não possuir relações sociais de qualidade real, mas existe uma atitude ou percepção de solidão. Isto pode às vezes resultar da percepção de uma discrepância entre a quantidade/qualidade “desejada” das relações sociais de uma pessoa e o que a pessoa experimenta.

Uma descoberta interessante nesta pesquisa é que indivíduos cronicamente solitários têm “expectativas muito altas” para as relações interpessoais.

Uma terceira definição é chamada de “abordagem interacionista”. Esta definição combina “traços de caráter” tais como timidez com fatores situacionais, tais como hospitalização, mudanças de renda, relocalização e fatores e expectativas culturais.

Quarto, há uma perspectiva onde a solidão é “indicativa de déficits nas relações sociais”. Esta perspectiva vê a solidão como um conjunto de atitudes, cognições e comportamentos. Isto inclui realidades sociais em torno da falta de relacionamentos reais, bem como a percepção da solidão.

Finalmente, existe uma perspectiva existencial da solidão que a relaciona a um aspecto fundamental da condição humana. Nesta compreensão, a solidão está relacionada às “últimas experiências da vida”, tais como “nascimento, morte, mudança, tragédia”. Aqui pode haver uma visão positiva, onde a solidão está ligada à criatividade e ao enfrentamento honesto de si mesmo e da própria vida.

A contribuição da Motta para as definições existentes se concentra mais nas dimensões fenomenológicas, ou baseadas na experiência, da solidão.

Em primeiro lugar, ela enfatiza o que ela chama de cronicidade. Definições anteriores de solidão fizeram distinções entre, por exemplo, estado (emocional) e solidão baseada em traços (caráter), assim como solidão transitória e crônica.

Motta argumenta, entretanto, que há muito espaço para melhorias nesta área. Ela sugere algumas direções que uma “experiência vivida” baseada na compreensão da solidão poderia seguir, tais como: se a solidão “é sentida mais duradoura” do que quando as pessoas se sentem socialmente ligadas, como os estados de solidão afetam nossas memórias do passado, bem como como o sentimento de solidão afeta a nossa visão do futuro. Todas essas facetas, e mais, poderiam dar aos pesquisadores uma compreensão mais clara da solidão e de como tratá-la.

A segunda dimensão apresentada por Motta está relacionada à atenção, ou o que ela chama de “espaço atencional”. Isto está relacionado a três tipos de solidão: íntima, relacional e coletiva. A solidão íntima está relacionada ao círculo interno das relações de uma pessoa, geralmente não mais do que cerca de cinco pessoas. Isto pode incluir um cônjuge/companheiro(a) significativo(a) de outra pessoa/companheiro(a). As pessoas que têm uma outra pessoa significativa são menos propensas a experimentar a solidão íntima.

O segundo tipo de solidão é a solidão relacional (ou social). Este é um círculo maior de apoio social que pode incluir a família, amigos, colegas e mais como parte de um “grupo de simpatia”. O número de pessoas aqui é frequentemente de 15 a 50. Na meia-idade e nos adultos mais velhos, “o contato frequente com a família e os amigos é o melhor preditor (negativo) da solidão relacional”.

O terceiro tipo de solidão para Motta é a solidão coletiva. Este é o sistema social de alguém em um nível maior e mais abstrato, como partido político, nação, ou outro tipo de grupo (como os fãs de times esportivos). O número aqui é tipicamente de mais de 150 pessoas. A Dra. Motta descreve este grupo como não oferecendo “laços fortes”, mas como oferecendo “informação” e “apoio de baixo custo”. Os adultos de meia-idade e mais velhos que pertencem a grupos mais voluntários têm menos probabilidade de experimentar a solidão, como um exemplo.

Em última análise, Motta argumenta que novas pesquisas sobre a experiência vivida da solidão podem esclarecer estas dimensões e seus limites, dando-nos uma idéia melhor de como abordar o tratamento da solidão. É claro que ela observa que as pessoas podem sentir uma “ausência” ou solidão mesmo na presença de amigos, família e muito mais, o que coloca em dúvida a utilização desta estrutura como uma compreensão perfeitamente precisa da solidão.

A dimensão final discutida é o corpo, especificamente o corpo vivido, que é diferente do corpo fisiológico de acordo com a filosofia fenomenológica. O corpo vivido fundamenta nossa perspectiva sobre o mundo. É o terreno da experiência e não uma “coisa” à qual prestamos atenção como um objeto externo.

Motta argumenta que a solidão também deve ser entendida em termos do corpo vivido e de suas possibilidades ambientais. Por exemplo, a solidão:

“Uma maneira de ilustrar isto é pensar que uma pessoa em confinamento solitário tem possibilidades muito diferentes de interação com o ambiente de alguém que está na natureza ou em uma grande cidade e que isto altera sua experiência. O encarceramento é um exemplo particularmente bom que ilustra não apenas os efeitos da imobilidade, mas também até que ponto a regimentação do tempo e a fenomenologia da espera podem se tornar diferentes tipos de tortura psíquica”.

Motta conclui:

“As áreas potenciais de pesquisa que já foram identificadas são a temporalidade da solidão e o papel da atenção e percepção na experiência da solidão”. Tenho argumentado que precisamos de definições de solidão que abordem distúrbios (por exemplo, ausências) ou anormalidades experienciais (por exemplo, experiências encarnadas) na estrutura subjetiva. A exploração das questões aqui levantadas teria implicações para nossa terminologia e nossas pesquisas futuras sobre os tipos de solidão. Estes, por sua vez, permitiriam o desenho de novos tratamentos e intervenções”.

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Motta, V. (2021). Key concept: Loneliness. Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 28(1), 71-81. (Link)