Teatro de mamulengos: a teoria de Vygotski e Luria, caminhos para superar o ‘fetiche do cérebro’ na Saúde Mental

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Os debates na área de saúde mental, de forma hegemônica-supremacista-dominante, atualmente, têm girado em torno do que vou chamar aqui de “Fetiche do Cérebro”, porque, as pesquisas em Saúde Mental têm se debruçado, cada vez mais, sobre a anatomia e fisiologia do funcionamento cerebral a fim de encontrar, numa relação direta de causa e efeito, as origens ou explicações sobre as psicopatologias. A meu ver, este movimento vem de encontro com as teorias sobre as determinações sociais da loucura, num enfrentamento teórico e prático, pautado em um materialismo vulgar, que tem reflexos não apenas na atuação profissional, mas também na compreensão “senso comum” do desenvolvimento das psicopatologias e na forma de funcionamento do cérebro humano.

Não se trata aqui, contudo, de negarmos a necessária e importante relação da base material, biológica e fisiológica do processo de desenvolvimento das psicopatologias, mas de analisar criticamente a supremacia do “biológico” para o desvendamento da origem e da dinâmica das psicopatologias e trazer à discussão as críticas dos teóricos soviéticos: Vygotski (1896-1934) e Luria (1902-1977) e o modelo de funcionamento cerebral proposto por Luria, baseado na teoria de Vygotski. O debate de ambos os autores constitui uma crítica a este modelo que dá um hiperfoco ao cérebro, chegando, por vezes, a descartar a própria pessoa portadora desse cérebro.

Sketch illustration of puppet master hand

Estas teorias que têm o neurológico, o cérebro como hiperfoco, quase chegam à ideia de que nosso cérebro, de dentro de nossas cabeças, é como um indivíduo autônomo morando dentro da gente, capaz de nos controlar-manipular como se fôssemos mamulengos com fios presos por todo o corpo, fios que vão da cabeça a cada parte do corpo e de lá de cima, o tal “mestre bonequeiro” manipula a gente e faz o nosso corpo se movimentar.  (Em partes, isso é verdade, mas de quem é a ordem para os movimentos acontecerem? voltaremos nisso mais adiante).

A escolha, então, pelo termo “fetiche” não é por acaso, por dois motivos: O primeiro, se justifica porque se a gente for procurar no dicionário o que significa “fetiche”: “objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta culto”. Nesse sentido parece, pelas explicações neuropsicológicas hegemônicas-supremacistas-dominante, que o cérebro no corpo humano tem mesmo esse lugar de sobrenatural, esta característica que dá a ele um poder de comando, domínio sobre nós mesmo e que age independente de nós, da nossa vontade, do nosso desejo, como algo que tem sua própria vontade.

O segundo motivo, é que o cérebro assume uma característica misteriosa porque o caráter seu social e cultural aparece-nos como uma característica objetiva. Ao falar sobre o fetiche da mercadoria, o próprio Marx (2015) nos ajuda a compreender o “fetiche do cérebro”, diz ele: “Aqui (no mundo religioso), os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida, como figuras independentes que travam relações umas com as outras e entre os seres humanos. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isto eu chamo de fetichismo (…)” (p.179). É certo que Marx usa apenas como exemplo o que as religiões fazem com as produções humanas, mas não por acaso, no caminho de volta dessa reflexão marxista, estou usando, então, o fetiche da mercadoria como exemplo análogo ao que ocorre com os estudos hegemônico-supremacistas-dominantes no campo da neuropsicologia e situação do cérebro hoje. Assim, tal qual qualquer outra coisa no mundo capitalista, o cérebro, bem como todas nós humanas somos lidas como “mercadoria”.

As consequências do “fetiche do cérebro” são explícitas no campo da Saúde Mental, pois, é muito comum a interpretação de que o desenvolvimento de psicopatologias esteja associado seja à falta ou ao excesso de alguma substância no próprio cérebro, seja por um funcionamento considerado “irregular” de determinada área, região ou lugar do cérebro. Chegando mesmo a serem consideradas as investigações post-mortem que comparam peso e medidas de cérebro de pessoas que não tiveram algum tipo de psicopatologia às que tiveram.

Mas, e se o funcionamento do cérebro não for bem assim? E se a gente descobrisse que: 1. O excesso ou falta de substâncias no cérebro como fonte das psicopatologias fosse, na verdade, um mito ou um sintoma e não a causa? 2. E se o cérebro não funcionasse exatamente assim, com localizações estritas para cada ação do nosso comportamento? 3. E, por fim e mais importante, se este não fosse um órgão autônomo e independente e, na verdade, ele se “moldasse” a partir do nosso comportamento e da nossa ação no mundo e da ação que a gente sofre do mundo? Ou seja, que o desenvolvimento e atividade do cérebro são mais influenciadas pelo desenvolvimento cultural, ou seja, pelo meio e pelas condições objetivas e materiais que esse meio proporciona à pessoa portadora do cérebro?

Foi exatamente isso que Vygotski (1931) apontou com suas pesquisas sobre o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores (que são funções psicológicas próprias somente aos seres humanos) em crianças. Em suas investigações ele aponta que as teorias do desenvolvimento infantil têm um amplo debate sobre as primeiras idades da criança, até 3 anos, pois é justamente quando o cérebro se desenvolve substancialmente aumentando seu tamanho e peso. Porém, de acordo com Vygotski este período de desenvolvimento da criança onde também se desenvolve seu cérebro é apenas a “pré-história” do desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores.

É certo que a materialidade é essencial para o desenvolvimento cultural, assim, o cérebro e o corpo humano são necessários e base para o desenvolvimento cultural, da mesma forma que todo o ambiente à nossa volta. Mas, trata-se aqui de demonstrarmos a preponderância do desenvolvimento cultural ao biológico em indivíduos da espécie humana, sem perder de vista que o biológico e o cultural formam uma unidade. Luria (1979) afirma: “(…) a atividade consciente do ser humano não está obrigatoriamente ligada a motivos biológicos. Além do mais, a grande maioria dos nossos atos não se baseia em quaisquer inclinações ou necessidades biológicas. (p. 71)

Isto quer dizer que, grande parte das atividades que realizamos em nosso dia-a-dia não tem relação direta ou imediata com necessidades biológicas, boa parte do nosso comportamento e de nossas atividades são mediadas por sentidos e significados sociais. Por exemplo, a necessidade do conhecimento, das artes, da estética, são necessidades sociais humanas, por mais que encontremos estruturas cerebrais que expliquem a forma como a arte age em nosso cérebro. O caminho não é de dentro para fora, mas, ao contrário, é de fora para dentro.

Vygotski (1931) afirma: “O desenvolvimento cultural se sobrepõe ao processo de crescimento, maturação e desenvolvimento orgânico da criança, formando com ele um todo.”(p. 26)

E isto, faz a gente pensar, então, a dinâmica de funcionamento do cérebro de forma radicalmente diferente e, ao invés de um órgão autônomo, como um órgão que faz parte desse todo – dessa unidade – que é o Ser Humano. Isto quer dizer que somos fruto do processo de evolução biológico, mas fundamentalmente somos frutos do desenvolvimento cultural.

Nosso corpo biológico também está submetido e é um processo “moldável” aos determinantes culturais, às influências que sofre da nossa relação com o meio. E de forma análoga, o cérebro é também um órgão moldável, ou para ser fiel à neuropsicologia luriana, nosso cérebro é um sistema funcional plástico. Ou seja, é um órgão que sofre alteração adaptativa em sua estrutura e funcionamento, à medida que nos relacionamos com o meio. Como afirma Vygotski (2011)

“(…) entendendo como plasticidade, a capacidade de uma substância para adaptar  ou conservar as pegadas/marcas de suas mudanças (…)Nosso cérebro e nervos, possuidores de enorme plasticidade, modificam facilmente sua finíssima estrutura quando submetidos a enormes pressões (…) Acontece com o cérebro algo parecido ao que acontece com uma folha de papel se a dobramos ao meio: no lugar da dobra fica um vinco como fruto da mudança que realizada; vinco que propicia reintegrar a mesma mudança posteriormente. Bastará soprar o papel para que volte a se dobrar ao meio novamente.” (p. 08)

Além disso, somos capazes de criar caminhos diversos, dentro da rede neuronal, para a realização das atividades, para expressarmos nosso comportamento e, caso a gente sofra algum tipo de lesão cerebral, a partir de estímulos externos, o cérebro é capaz de reorganizar suas funções e seus caminhos. Caminhos que integram suas várias partes, funcionando, assim, em “concerto” (Luria, 1981).

É apoiada nestes princípios: sistema funcional em concerto e neuroplasticidade cerebral em unidade com os determinantes sociais e culturais e a relação que estabelecemos com estes determinantes, que constitui o conjunto daquilo que denominamos, então, personalidade que por sua própria raiz não é algo estático, mas algo que se modifica ao longo de nossas vidas, conforme mudam as condições externas e internas e a forma como nos relacionamos com elas.

Assim como não há vida nos mamulengos sem o mestre bonequeiro, o mestre bonequeiro não é mestre sem seus mamulengos e nem mestre nem mamulengos são o que são sem a mediação do significado social e cultural, pois é no encontro, no conjunto entre cultura, mestre-bonequeiro e mamulengos que a mágica acontece e o drama da vida humana é encenado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARX, K. O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo. In: O Capital. Ed. Boittempo

LURIA, A. R. (1981). Fundamentos de Neuropsicologia. Trad. Juarez Aranha: Ricardo Ed. USP

LURIA, A. R. (1979). A Atividade Consciente do Homem e Suas Raízes Histórico-Sociais. In:  Curso de Psicologia Geral. Trad. Paulo Bezerra. Civilização Brasileira. disponível em: https://marxists.info/portugues/luria/ano/mes/90.pdf

VYGOTSKI, L. S. (1931) El Problema del Desarrollo de las Funciones Psíquicas Superiores. In: Obras Escogidas, Tomo III.

VYGOTSKIi, L. S. (2011) La Imaginación y el arte en la infancia. Ediciones Akal.