Para desenvolver algumas das questões que nos últimos anos têm sido objeto do meu interesse e investigação, eu resolvi tomar uma matéria recentemente publicada em um famoso veículo da impressa do Reino Unido.
Estamos nos últimos anos sofrendo dos retrocessos do processo de reforma psiquiátrica brasileira. A perspectiva é que a atual política para a assistência em saúde mental não perdure após as eleições de 2022.
Não obstante, as principais forças políticas em jogo, hoje, no campo da assistência em saúde mental, continuarão provavelmente presentes após as eleições.
Estamos nós preparados para enfrentar o modelo biomédico da psiquiatria, que é ontem e hoje o modelo dominante?
Será que iremos considerar que a “psiquiatria pós-asilar”, objeto da minha tese de doutorado na Universidade Católica de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgique), em 1994, é essa com a qual estamos convivendo nas últimas décadas?
É possível haver a atenção psicossocial propriamente dita, mantendo o modelo biomédico como a sua referência hegemônica?
O que é o bio-psíquico-social?
O modelo biomédico da psiquiatria é nefasto, causa problemas incomensuráveis, conforme o que oficialmente é dito.
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Em tela uma matéria publicada recentemente, em 9 de fevereiro de 2022, no respeitável jornal britânico The New Statesman. Uma matéria assinada pela jornalista Sophie McBain. A seguir, trechos dessa matéria intercalados por comentários meus.
“Numa tarde de dezembro de 2004, Samantha deixou a sua casa no norte da Inglaterra e caminhou até o rio vizinho. Ela tentou não pensar em seus cinco filhos pequenos, ficando sozinhos em casa. Ela queria se jogar nas águas; ela não sabia nadar.
“Alarmada pela ausência de sua mãe, a filha de 11 anos de Samantha discou o 999, e a polícia a encontrou na margem do rio. Ela foi transferida para um hospital psiquiátrico, onde passou quatro dias enroscada em uma bola, chorando. Ela já era conhecida pelos serviços sociais: Samantha teve um ex-namorado violento e havia sido abusada quando criança e aos 12 anos foi atendida. Era difícil saber como ser uma boa mãe quando ela mesma nunca tinha tido a mãe.
“Pouco tempo depois, um psiquiatra, solicitado pela autoridade local para avaliá-la, diagnosticou a Samantha com transtorno de personalidade limítrofe. No ano passado, Samantha leu o relatório para mim, via Zoom. Por essa altura, já estávamos falando há três meses. Ela era calorosa e solícita – ‘Mas de qualquer forma, como você está?, ela sempre me perguntava – mas agora a sua voz era cheia de raiva. O relatório observava a sua ‘falta de senso de responsabilidade pessoal’ e ‘pobre controle de impulsos’; acusava-a de ‘fingir um transtorno mental enquanto se encontrava internada no hospital’.
” ‘Mas eu não sou assim, não sou assim’, ela se lembra de dizer ao seu advogado, aterrorizada. Uma assistente social lhe disse que ela precisava alcançar uma maior ‘estabilidade emocional’. (‘Se você pudesse fechar os olhos por um segundo e imaginar alguém levando os seus filhos embora’, perguntou-me Samantha, ‘como você se sentiria?’) Mas a psiquiatra considerou o seu transtorno ‘intratável’, e os seus filhos foram retirados dela.
“[…] Em 2015, dez anos depois que os seus filhos foram retirados dela, um psicólogo lhe deu um novo diagnóstico: o complexo transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Confirmou o que Samantha estava se dando conta: de que não havia nada de errado com a sua personalidade, que os seus problemas podiam estar todos ligados ao que havia acontecido com ela. ‘Apesar de ter sido um alívio, eu fiquei realmente furiosa’, disse-me ela. ‘Porque aquele rótulo foi usado para me prejudicar e a meus filhos. Ele destruiu as nossas vidas’.
“Por essa altura, ela voltou a entrar em contato com quatro dos seus filhos, que muitas vezes tinham fugido de seus lares adotivos para estar com ela. Ela fazia campanha sobre saúde mental e estava dirigindo um grupo de apoio de colegas. Ela também tinha se juntado ao Twitter, onde é uma presença com opiniões, e entrou em uma conversa – bem, uma discussão no início – com uma psicóloga que lhe deu uma nova visão de mundo. E se o diagnóstico de Samantha sobre o complexo TEPT também não estivesse correto? Ela tinha sido suicida, sim: mas quem em sua posição não teria se sentido desesperada? Alguma vez ela tinha estado mentalmente doente?”
A conversão do sofrimento psíquico de Samantha em doença mental é algo que sabemos ser a lógica da medicalização psiquiátrica. É o que ocorre em nosso cotidiano. Que é acentuada nesses tempos da pandemia do Covid-19. Como bem nos lembra Sophie McBain, a jornalista:
“[…] Recentemente, tem havido uma ampla cobertura de uma crise de saúde mental em desenvolvimento. Dados do governo sugerem que, desde o início da pandemia, o número de adultos com depressão dobrou para um em cada cinco. Os encaminhamentos de crianças também dobraram: 200.000 menores de 18 anos foram encaminhados aos serviços de saúde mental do NHS em Abril-Junho de 2021. Será que a Covid desencadeou uma onda paralela de doença mental – ou será que o sofrimento tão generalizado é uma resposta natural aos meses de isolamento, incerteza e contagem diária de mortes? O debate na psiquiatria é em parte uma discussão sobre como lidar com esta pandemia sombria: alguns argumentam que o que parece ser uma emergência sanitária é melhor entendido como infelicidade em massa.”
Quem é a psicóloga com quem Samantha entrou em contato? Ela é conhecida por nós aqui no Brasil, é a Dra. Lucy Jonhstone. Ela esteve conosco, na FIOCRUZ, durante o 4 Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátrica.
“A psicóloga Samantha encontrada no Twitter foi Lucy Johnstone. Ela faz parte de um grupo unido de psiquiatras, psicólogos e pacientes britânicos que rejeitam a ideia de doença mental. Eles/elas argumentam que os diagnósticos são cientificamente inválidos e prejudiciais porque patologizam reações compreensíveis e sugerem falsamente a existência de soluções médicas. ‘Doença mental não é um conceito válido’, disse-me Johnstone – em vez disso, deveríamos estar falando de ‘sofrimento psíquico’. Ela argumenta que a linguagem medicalizada dos transtornos e sintomas cria uma falsa distância entre os sentimentos de uma pessoa e a causa de seu sofrimento, seja trauma, abuso, pobreza, ou mesmo expectativas culturais irrealistas.”
Para que você tenha um melhor entendimento do que Lucy Johnstone está dizendo, recomendo a leitura da manifestação oficial da Divisão Clínica da Sociedade Britânica de Psicologia, um documento de mais de 400 páginas, o Power Threat Meaning Framework (PTMF). Esse documento está fortemente fundamentado em centenas e centenas de evidências científicas.
A abordagem do PTMF tem como background um modo muito particular que psicólogo(a)s e terepeutas do Reino Unido compreendem e abordam os problemas dos pacientes, que é conhecido como “Formulações“. A “formulação” é entendida como um processo dinâmico que explora o significado e a importância do processo colaborativo e reflexivo entre o clínico e o(a) s paciente(s) na construção da narrativa sobre o sofrimento psíquico em questão, dando conta dos contextos relacionais e sociais. Chama a atenção, pelo que eu saiba, ser uma forma de abordar clinicamente o sofrimento psíquico que é desconhecida entre nós. O PTMF é apresentado de forma mais sucinta no livro de Lucy Johnstone em coatoria com Mary Boyle.
“[…] Depois de falarmos pela primeira vez no Zoom, ela [Lucy Jonhnstone] me enviou um link para um artigo relatando o aumento da doença mental entre aqueles que haviam perdido renda durante a pandemia. O governo respondeu afirmando planos de investimento na saúde mental; o ponto de vista de Johnstone é que se deveria enfrentar o problema raiz – a pobreza, não a doença. Ela enfatiza que as pessoas em dificuldade merecem apoio – mas que as doenças mentais não existem da mesma forma que as físicas. ‘Se você diz a alguém, como um fato estabelecido, você tem transtorno bipolar, você tem esquizofrenia, você tem um transtorno de personalidade’, realmente, você está dizendo algo falso. E isso tem consequências para a identidade das pessoas, para a vida, para os seguros, para os relacionamentos. Essa é a maior crise do nosso tempo, em alguns aspectos’ “.
A matéria da jornalista prossegue lembrando o quanto o Reino Unido é uma sociedade que em muitos aspectos é pioneira internacional em saúde mental: tem uma comunidade ativa de sobreviventes (uma rede de pacientes atuais e antigos), uma história de pensamento radical e um sistema de saúde que é receptivo a abordagens não-médicas. E o SUS? É ele receptivo a abordagens não-médicas no campo da saúde mental? Como?
Lá também há como ela diz “uma amarga guerra cultural – entre aqueles que querem abandonar o modelo da doença psiquiátrica e aqueles que usam de todos os meios para conservar esse modelo de abordagem do sofrimento psíquico.” Lembra que a mídia social tem dado aos usuários uma voz proeminente.
Ela lembra que há hoje uma forte polarização: de um lado os que acusam a quem questiona o modelo biomédico da psiquiatria de colocar os pacientes em risco; por outro lado os que acusam os partidários do modelo biomédico de estarem envolvidos em uma falsa ciência e de intimidarem os seus críticos. Muitos foram os que a aconselharam não fazer a matéria jornalística, porque ela estaria mexendo em um vespeiro. Abro um parêntesis para dize que eu como editor do Mad in Brasil sei bem o que é isso!
“[…] Fizemos progressos decepcionantes ao buscar descobrir a base neurobiológica para muitas doenças mentais [afirma a jornalista]. Encontramos explicações para doenças degenerativas como Alzheimer ou Parkinson; mas nenhum exame médico pode confirmar uma condição como depressão ou esquizofrenia. Em vez disso, os psiquiatras frequentemente fazem o que seus pacientes lhes dizem, ou o que eles observam. Eles fazem diagnósticos com referência ao Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, agora em sua quinta edição (DSM-5), ou a um manual similar compilado pela Organização Mundial da Saúde, que ambos agrupam os transtornos de acordo com grupos de sintomas. Os livros são deliberadamente neutros sobre as causas dos transtornos.
” ‘Quando usamos a palavra ‘diagnóstico’, as pessoas imaginam que você está identificando uma causa’, disse-me o psiquiatra Sami Timimi. Timimi é membro da Rede de Psiquiatria Crítica, que foi fundada em Bradford em 1999 e agora conta com cerca de 350 psiquiatras, a maioria dos quais estão no Reino Unido. Identificar uma causa nem sempre é o foco da medicina geral (por exemplo, uma condição como enxaqueca), mas muitas vezes é o objetivo: é por isso que você pode sentir alívio, ao apresentar dor no peito, saber que você está sofrendo de refluxo gástrico em vez de um ataque cardíaco. ‘Mas em psiquiatria, o diagnóstico é apenas um termo descritivo. E é um termo descritivo ruim. Portanto, acho que não podemos fazer nenhum progresso até nos livrarmos do termo diagnóstico’ , disse Timimi.
[…] O fator mais complicado a considerar é o que se sente ao ser informado de que se tem um transtorno mental. Como diz Timimi: ‘O objeto de estudo, que é a mente, não é o mesmo que o objeto de estudo quando se trata de um rim’. O rim não se preocupa com o futuro. O rim não vai me abandonar se eu ler um conjunto de resultados renais’. Ele observou que o uso da linguagem pelos psiquiatras pode ter um enorme impacto na autopercepção de uma pessoa: há uma grande diferença, por exemplo, entre ser-lhe dito que você é ambicioso e ser-lhe dito que você está sofrendo de ilusões de grandeza”.
A jornalista chama a atenção para as diferenças da contestação ao modelo biomédico da psiquiatria feita nos anos 60 e 70 do século passado com o que vem após os anos 1980. Reconhecer essa distinção é muito importante para nós brasileiros, se olharmos para uma parte significativa da literatura dominante que circula entre nós a respeito da reforma psiquiátrica.
A referência dominante entre nós têm sido as lutas por reforma psiquiátrica dos anos antes do DSM-III e da explosão do mercado de psicofármacos. Laing, Cooper, Basaglia, senão o filósofo M. Foucault, eles que não foram contemporâneos da reforma psiquiátrica oficial.
“[…] O modelo da doença psiquiátrica nunca foi incontestável, mas a influência dos movimentos críticos tem flutuado. Os antipsiquiatras dos anos 60 e 70 desenvolveram suas ideias em oposição à natureza opressiva da psiquiatria de então, com seus terríveis asilos. A partir dos anos 80, mais abordagens biológicas se tornaram ressurgentes. Uma nova geração de antidepressivos como o Prozac despertou esperanças de uma ‘cura química’; o Congresso dos EUA declarou a década de 1990 como a ‘Década do Cérebro’, investindo bilhões em pesquisas destinadas a resolver as doenças mentais.
“Os críticos de hoje apontam para o fracasso desta pesquisa e para a forma como as sucessivas edições do DSM continuam ampliando o escopo do diagnóstico. O argumento contra a doença mental é também um argumento contra o crepúsculo da missão da psiquiatria: outrora, apenas os mais desesperados eram vistos como sendo doentes mentais, mas se, como relata a ONG Mind, um em cada quatro britânicos experimenta um problema de saúde mental em um ano, será que agora estamos caracterizando mal os desafios da vida?”
A matéria fala da experiência piloto com o Diálogo Aberto que vem sendo patrocinada pelo próprio National Health System (NHS), o equivalente britânico do SUS. Eis algo para o futuro próximo, que o SUS patrocine experiências como a do Diálogo Aberto.
“[…]Os princípios são simples: a pessoa em crise, aquelas próximas a ela e um pequeno grupo de pessoal de apoio trabalham juntos para resolver o problema. O pessoal não discute os pacientes em sua ausência. E nas reuniões todas as perspectivas têm o mesmo peso. Pesquisas na Finlândia sugeriram que as pessoas apoiadas desta forma passam significativamente menos tempo no hospital, requerem menos medicação e têm menos probabilidade de recaída.”
Quanto ao uso de medicação. A matéria lembra, o que diz a psiquiatra britânica Joanna Moncrieff. As drogas psiquiátricas podem ser usadas, não como medicamentos que tratam supostamente de algum transtorno psiquiátrico, mas sempre como substâncias psicoativas que podem funcionar para aliviar temporariamente o sofrimento.
“[…] Nisto, Johnstone é influenciada pela psiquiatra britânica Joanna Moncrieff, que é fortemente crítica da forma como os psicofármacos têm sido pesquisados e vendidos. Ela acredita que devemos pensar nos psicofármacos não como ‘tratamentos’, mas como substâncias embotadoras que podem ter efeitos úteis (como a melhoria do sono) a exemplo das substâncias nocivas. Neste sentido, os psicofármacos estão mais próximos de uma droga como o álcool: algumas bebidas podem aliviar a sua ansiedade social, mas com um custo. “
Sabemos que a questão da medicação psiquiátrica é um dos componentes mais controversos do atual modelo biomédico de tratamento psiquiátrico. Sophie McBain entrevistou a psicóloga american Nev Jones. O MIB tem um artigo recentemente objeto de nossa resenha do que Nev Jones vem produzindo. Mas retornemos à matéria:
“A medicação continua a ser uma área litigiosa. A psicóloga americana Nev Jones observou que, dentro das comunidades ativistas, a ‘armadilha’ não é incomum. Jones, que está baseada na Universidade de Pittsburgh, sofreu psicose há mais de uma década quando se encontrava no final dos seus vinte anos e estudava para um doutoramento em filosofia, tendo-lhe sido diagnosticada a esquizofrenia. Levou anos para se recuperar, mas quando o fez, Jones decidiu dedicar a sua carreira ao estudo da psicose. Os profissionais de saúde mental não pareciam compreender a sua diversidade e estranheza, pensou ela, e eles presumem que o mesmo tratamento irá funcionar para todos.
“Quando falámos no Zoom, perguntei a Jones o que a tinha ajudado na sua recuperação. Ela não hesitou: ‘empowerment’ [empoderamento]. A pior parte de ficar doente tinha sido tornar-se uma doente psiquiátrica. ‘O problema não era: Você tem esquizofrenia, ou tem psicose … O mais profundo era perder todo o sentido na minha vida, todo o valor social. E a coisa que curava era poder entrar em conversas como um igual’.”
“Não foi a primeira experiência de esquizofrenia de Jones. Um parente também tinha sido diagnosticado com ela, e durante grande parte de sua vida foi incapaz de se comunicar. Jones ficou indignada porque aqueles críticos do diagnóstico e da medicação não consideravam os casos mais difíceis de resolver. ‘É preciso reconhecer que existe aqui um componente biológico. Estes pacientes não estão produzindo a extrema desorganização e associação que os psiquiatras descreveriam como as marcas de um distúrbio do pensamento realmente grave””.
O papel do biológico continua sendo problemático, disso todos nós sabemos. Negar pura e simplesmente o biológico é negar que as experiências traumáticas, por exemplo, literalmente remodelam tanto o corpo quanto o cérebro, comprometendo as capacidades de quem as sofre para o prazer, interações intersubjetivas, auto-contole e a confiança. Porém, uma coisa é afirmar que esse ou aquele transtorno psiquiátrico seja causado por um desequilíbrio químico no cérebro, outra coisa bem distinta é que as experiências de vida afetam positiva ou negativamente no cérebro e no corpo como um todo.
A respeito, recomendo a leitura de um livro que já figurou meses entre os bestseller do New York Times, The Body Keeps the Score [O Corpo Conserva as Marcas]. Como o subtítulo do livro diz: Cérebro, Mente e Corpo na Cura do Trauma. Considero que esse livro é da maior importância, é uma pena que não o tenhamos em português.
Por isso é que tratamentos como neurofeedback, meditação, esportes, artes, yoga, bem como psicoterapias que trabalham com as emoções e sua corporificação, para dar alguns exemplos, que são caminhos para recuperação – com forte base em evidências científicas -, ao ativarem a neuroplasticidade natural do cérebro.
As nossas experiências, muito em particular as primeiras, moldam as nossas vidas, enquanto corpo, mente e espírito, sabemos disso pelo menos desde Freud.
Como é muito bem é narrado pela famosa Ophra Winfrey, apresentando as suas experiências traumáticas na infância, e como elas impactaram todo o seu ser. Recomendo o seu livro em coautoria com o psiquiatra Bruce D Perry.
Mas voltemos à matéria jornalística em tela:
“Muitos psiquiatras concordam que é errado concluir que a biologia nunca é a causa subjacente da doença mental. Mas talvez o que causa mais dano seja quando um profissional impõe a sua visão de mundo a um paciente. Alguns ativistas me disseram [Sophe MacBain] que achavam que a psiquiatria crítica negligenciava (e até mesmo promovia) as pessoas que achavam útil um diagnóstico e tratamento médico; alguns acham que os debates acadêmicos ignoram as grandes questões enfrentadas por aqueles em crise – discriminação, pobreza, a luta para ter acesso a qualquer tipo de cuidado. Alguns psiquiatras já dizem que irão perguntar a seus pacientes se consideram útil um diagnóstico e seguir as suas orientações. O que parece ser uma questão científica – uma investigação sobre a natureza da doença – pode, em última análise, ser mais sobre o poder.”
Retornando ao papel do PTMF para a Samantha, ela com quem foi iniciada a matéria do The New Stateman. Como reconstruir uma narrativa que dê sentido ao que Samantha e os pacientes em geral sofrem? Como explorar os recursos disponíveis nas redes de interações sociais?
O PTMF é um exemplo para todos nós. Relembrando que não se trata de um discurso ideológico, do tipo de algo em moda atualmente entre nós: “ser contra a medicalização da vida”. Abordar o sofrimento psíquico, tendo compromisso com as “evidências cientificas” é da maior importância. O PTMF tem esse compromisso com as “evidências”; não se trata em hipótese alguma de mais um discuros ideológico.
“[…] Logo após a publicação do Power Threat Meaning Framework, Samantha decidiu aplicá-lo a sua própria vida. Foi a primeira vez que ela foi levada a contar a sua própria história. Ela escreveu sobre o abuso que sofreu e como ela havia formado ‘uma relação subserviente com um sistema psiquiátrico controlador a fim de ter acesso a apoio’. Uma das perguntas do PTMF era: ‘O que é que ela tem?’ ‘Quais são seus pontos fortes?’ Ninguém lhe havia perguntado isso. Ela escreveu sobre sua ‘inteligência e resiliência’, e sobre a sua ‘bela família’.
“Quando falávamos, o neto de Samantha estava frequentemente com ela. Ele nasceu em 2010, e ela se lembra que a sua filha o entregou a ela quando ele tinha apenas três dias de idade. ‘Porque meus filhos tinham sido levados, eu tinha pavor de me apegar a qualquer um ou a qualquer coisa. Mas ele apenas olhou para mim e deu este pequeno ‘yap’ e foi isso’. Ele a ensinou a amar.
“Samantha não acredita mais no diagnóstico e rejeita a idéia de que ela tem o transtorno de estresse pós-traumático; o trauma a havia afetado profundamente, ela reconheceu, mas também as suas experiências de desigualdade.
“[…] Clinicamente vulnerável, Samantha raramente saiu de casa nos primeiros 18 meses da pandemia, e quando o fez, muitas vezes se sentiu ansiosa. Ela ainda fala freqüentemente com a sua terapeuta, mas agora elas usam uma linguagem diferente. ‘Eu não tenho sintomas’, disse-me ela. ‘Sou uma pessoa normal que está respondendo e reagindo de forma compreensível. Isso me faz sentir humano novamente'”.
Como editor do Mad in Brasil, eu recebo alguns relatos de experiências de vida de pessoas a mostrar como sobreviver ao modelo biomédico da psiquiatria. Infelizmente, quando se pede para que coloque a sua experiência para o conhecimento do público, a reação é em geral o medo de se expor.
Com certeza que há muitas e muitas experiências dos profissionais em saúde mental, em particular no SUS, que são alternativas ao modelo biomédico da psiquiatria.
A esperança minha é que futuramente apareçam usuários e ex-usuários/sobreviventes organizados, que ajudem a se construir novas condições estruturais para a assistência em saúde mental.
Quem sabe? A palavra de ordem deixe de ser “reforma psiquiátrica” e passe a ser “reforma da assistência em saúde mental”!
Para isso, “placas teutônicas” terão que ser mexidas. Há muitos interesses em jogo para a manutenção do “status quo”.
Que os que hoje são oprimidos pelo sistema criado se rebelem e passem a ter voz ativa. Como a experiência dos que organizaram o suporte entre pares no Inner Compass Initiative ou Surviving Antidepressants. A ciência, atualmente, cada vez mais busca dar conta do know-how dos usuários, como vemos mostrando aqui no Mad in Brasil.
Vem aí a Conferência Nacional de Saúde Mental. Uma ocasião muito importante para o debate e tomada de decisões. Algumas questões:
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A Conferência Nacional de Saúde Mental irá enfrentar, de fato, o que é o “modelo biomédico” da psiquiatria entre nós? Como ele está institucionalizado?
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Estarão os médicos/psiquiatras abertos a perder o seu atual “status quo”?
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Estarão os usuários dispostos a mudar a sua condição de consumidores do modelo biomédico?
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Que forças políticas contamos hoje para influir positivamente nesse debate?
É isso aí!!
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Não deixe de ler o artigo da jornalista Sophie McBain.
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