O livro “Somos todos desatentos?”, publicado no ano de 2005, com a autoria do Dr. Rossano Cabral Lima, surgiu trazendo importantes questionamentos acerca de um transtorno que cada vez mais se popularizava, denominado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. À época de sua publicação, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade tinha como referência diagnóstica os manuais psiquiátricos DSM-IV-TR e CID 10, neste último o quadro era designado como Transtorno Hipercinético.
Este livro marcou fortemente um lugar de resistência aos excessos produzidos pelo discurso hegemônico biomédico, produzindo efeitos que perduram até os dias de hoje. Entretanto, desde que foi publicado, há dezessete anos, muita coisa se passou.
Nos dias de hoje, com o advento do DSM-5 e da CID-11, houve um incremento do TDAH que passou a integrar o hall dos transtornos do neurodesenvolvimento.
Ao longo dos últimos anos, temos observado que, tanto no panorama nacional como no internacional, a produção e o consumo mundial de metilfenidato cresceram exponencialmente, bem como outras drogas (psicofármacos) foram lançadas no mercado. Redes de serviços hiper especializados em TDAH despontaram e se proliferam cada vez mais para compor o quadro das terapêuticas e serviços associados à condição enquanto “doença”.
O diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade se tornou mais frequente do que nunca, sendo a escola e o desempenho escolar o seu eixo nevrálgico.
Podemos pensar que o “fenômeno TDAH” se ampliou e se tornou mais complexo, mas, seus críticos também se multiplicaram e ganharam força. No Brasil, o Dr. Rossano Cabral Lima, autor deste livro e diversos artigos na área, se destaca por suas críticas contundentes e atuais que orientam o debate.
Luciana: Dr. Rossano, quais as mudanças que considera mais importantes desde a publicação do seu livro em 2005, no que se refere ao TDAH?
Rossano: Naquela época, aqui no Brasil, já existiam vozes críticas ao diagnóstico de TDAH, mas ainda tinham pouca visibilidade. O livro, apesar da tiragem limitada, ajudou a dar destaque a esse debate e publicizá-lo. De lá para cá, o cenário ficou mais complexo: de um lado surgiram movimentos como o braço nacional do STOP DSM, o Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, o Despatologiza, e uma boa literatura crítica. Por outro lado, o lobby do TDAH também se fortaleceu, com a expansão da ABDA (Associação Brasileira do Déficit de Atenção), a criação de grupos online de familiares e portadores de TDAH, e a consolidação de grupos de pesquisa, com destaque para o do Hospital das Clínicas da UFRGS – todos ou quase todos associados com a indústria farmacêutica. Tanto num polo quanto no outro, um elemento decisivo foi a influência da internet e suas redes sociais na articulação, troca de experiências e na mobilização política, dando origem, por exemplo, a diversas leis ou projetos de leis em torno do TDAH pelo Brasil afora. Isso para não falar no aumento do consumo de psicoestimulantes, seja para tratamento do quadro, seja para “aprimoramento” cognitivo em vestibulandos, universitários e “concurseiros”.
Luciana: Houve modificação na ênfase dada ao TDAH, tendo em vista que outros diagnósticos adquiriram maior visibilidade? Quais diagnósticos concorrem hoje com o TDAH?
Rossano: Sim, o TDAH abriu o caminho para a chegada de outros diagnósticos, alguns bastante associados a ele, como o de Transtorno de Oposição Desafiante (TOD). Além disso, há a expansão dos Transtornos do Espectro Autista, a penetração do Transtorno Bipolar na faixa etária infantil e o surgimento do controverso diagnóstico de TDDH – Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor. Neste caso, quando me refiro a controvérsias não falo apenas dos críticos, mas aos dois sistemas diagnósticos mais utilizados no mundo. O TDDH surgiu nas páginas do DSM-5, mas a CID 11 não faz referência a ele, o substituindo por um subtipo do TOD. Esse exemplo deixa explícitas as engrenagens da construção de diagnósticos em psiquiatria, revelando as frágeis bases de sustentação científica de muitas entidades nosológicas, que dependem de consensos entre especialistas para existirem ou não. E como as relações e fronteiras entre esses quadros não são totalmente claras, o resultado é uma inflação de comorbidades psiquiátricas – com frequência a mesma criança recebe mais de 1 deles, somados a outros como depressão e transtornos de ansiedade.
Luciana: Vemos uma incidência maior de TDAH nos dias de hoje do que há 17 anos. A que se deve esse aumento? Haveria, atualmente, dispositivos tecnológicos de diagnóstico mais eficientes disponíveis no mercado?
Rossano: O aumento tem pouco a ver com o avanço das tecnologias médicas, até porque o anúncio de um marcador biológico é sempre adiado para um futuro incerto. Hoje há maior uso de escalas diagnósticas, que dão uma sensação de maior objetividade na detecção, e avaliações neuropsicológicas, que até podem ser úteis se seus resultados forem interpretados no contexto de vida da criança e não tomados como uma medida fixa e definitiva do seu funcionamento mental. Na verdade, o aumento na incidência se dá por outros caminhos, nem sempre fáceis de rastrear: o diagnóstico passa a ser feito, ou pelo menos sugerido, por outros especialistas médicos, como pediatras, e por não médicos, como psicólogos – neste caso, associado a maior penetração das terapias cognitivo-comportamentais; a própria escola passa a levantar a suspeita de TDAH em alunos com problemas comportamentais ou dificuldades de aprendizagem, muitas vezes sem antes avaliar o problema do ponto de vista pedagógico.
Luciana: Os manuais diagnósticos de hoje (DSM-5 e CID-11) têm maior precisão metodológica e descritiva das condições tidas como patológicas? Estariam eles mais alinhados com as recentes descobertas neurocientíficas?
Rossano: Apesar das neurociências terem ocupado o lugar de outros saberes, como a psicanálise, como referencial epistêmico da psiquiatria, continua sendo muito difícil aplicar o conhecimento gerado nas pesquisas neurocientíficas ao contexto da clínica. O principal exemplo disso é o grupo dos “Transtornos do Neurodesenvolvimento”, introduzido no DSM-5 e a CID 11. Mesmo com o aval científico do radical “neuro”, os critérios continuam sendo fenomênicos (no sentido fraco do termo), descritivos. E estes mudam no decorrer das edições, mas não necessariamente por aprimoramento metodológico ou avanço do conhecimento científico. No caso do TDAH, é difícil enxergar rigor epistêmico ou metodológico em critérios do DSM como “Com frequência ‘não para’, agindo como se estivesse ‘com o motor ligado’”, que incorporam lugares comuns e vocabulário coloquial naquilo que – supostamente – deveria primar pela objetividade científica.
Luciana: Com o suposto “avanço” na detecção e a disseminação cada vez maior de tratamentos associados ao TDAH não seria de se esperar uma redução no número de casos? Como podemos pensar esse enigma?
Rossano: Esse é um dilema da clínica psiquiátrica como um todo, e não apenas no caso do TDAH: a introdução de diversas modalidades de tratamento, incluindo os psicofármacos, não foi acompanhada de redução na prevalência de transtornos mentais. Mesmo a intervenção precoce, que tem sido proposta para diversos transtornos, como o autismo, não resulta na redução do número de crianças afetadas. Essa foi uma das razões das críticas feitas à proposta de inclusão da “Síndrome Psicótica Atenuada” no DSM-5 (que acabou entrando no capítulo de” Condições para estudo posterior”), que daria margem a uma vasta farmacologização de quadros supostamente “pré-psicóticos” ou de psicose incipiente, com pouca sustentação científica ou clínica. Mas voltando ao TDAH, de fato o número de casos só faz aumentar, na medida em que o diagnóstico se expande globalmente e em direção a outras faixas etárias. Dada a visão do TDAH como um transtorno ao longo da vida e sua associação quase automática com o uso de psicoestimulantes, a tendência é a criação de novos crônicos, pois o tratamento farmacológico acaba se estendendo por tempo indeterminado. Isso reforça a importância de recorrer a outras estratégias de cuidado que não se limitem à medicação.
Luciana: A infância continua sendo o alvo principal desta categoria diagnóstica?
Rossano: Não, desde a época da publicação do meu livro se intensificou a expansão do diagnóstico de TDAH para os adultos, fenômeno que já era detectado fora do Brasil, especialmente nos EUA. Isso se reforçou com a publicação do DSM-5, que reduziu de 6 para 5 o número de critérios mínimos para o diagnóstico em adultos em cada dimensão (desatenção e hiperatividade/impulsividade), e ampliou a idade máxima para o início do quadro de 7 para 12 anos. Esse afrouxamento dos requisitos teve como objetivo reduzir os obstáculos ao diagnóstico em adultos, dado que alguns dos sintomas da infância podem ter se atenuado ou desaparecido com o tempo, e que muitas vezes essas pessoas não conseguem informar com precisão a presença dos sintomas na idade pré-escolar ou início da escola. Para reforçar essa tendência, é possível observar na clínica que pais de crianças e adolescentes que receberam o diagnóstico passam a identificar em si próprios características do quadro, geralmente recorrendo a uma visão simplista da causalidade genética, e buscam um neurologista ou psiquiatra para confirmá-lo.
Luciana: As consequências com o uso a médio e longo prazo das drogas de tratamento do TDAH são, em geral, negativas. A literatura científica é abundante em apresentar os diversos danos para a saúde, muitas vezes irreversíveis. Será que essa epidemia de drogas para o tratamento do TDAH apenas pode ser controlada na medida em que os prescritores passem a ser responsabilizados na Justiça? Trata-se do consentimento informado e esclarecido.
Rossano: De fato, a maior parte dos estudos sobre eficácia dos estimulantes se concentram nos efeitos de curto prazo, e as pesquisas de médio e longo prazo, quando existem, geralmente não apontam resultados favoráveis. Isso também é verdade para outras classes de psicofármacos, mas no caso dos remédios usados no TDAH há um efeito de longo prazo específico, que exige ainda mais cautela e acompanhamento clínico, ainda que não apareça na maior parte dos casos, que é a desaceleração da curva do crescimento.
Tudo isso poderia servir como estímulo para que fossem priorizadas, como estratégias iniciais, as abordagens não farmacológicas, fazendo com que a prescrição de metilfenidato (Ritalina, Ritalina LA e Concerta) ou lisdexanfetamina (Venvanse) se tornasse recurso complementar e de curto a médio prazo, mas na prática o que se vê é o inverso. Nos pacientes que eu medico, quase sempre proponho aos pais que a criança inicie o período letivo seguinte (já que o alvo da medicação é quase sempre a escola) sem o remédio, como modo de reavaliar a persistência (ou não) de sua indicação e seus impactos positivos e negativos.
O controle da prescrição desses estimulantes, quando comparado com os medicamentos vendidos com receituário branco especial (antidepressivos, antipsicóticos, estabilizadores do humor, indutores do sono) e com receituário azul (benzodiazepínicos), é até mais rigoroso, pois exige cadastro da vigilância sanitária, que disponibiliza o talão amarelo. Sabemos, porém, que isso não impede que se tenha acesso a ele por outras vias. No campo da atenção psicossocial, vale lembrar do protocolo das prefeituras de Campinas e São Paulo, na década passada, para regulamentar a prescrição de metilfenidato na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) desses municípios, que tiveram papel importante no controle ou prevenção dessa epidemia.
O termo de consentimento pode ser um dispositivo útil, especialmente para justificar o uso por médio e longo prazo – eu mesmo não teria problemas em assiná-lo! (risos) Mas não acho que o foco dessas medidas deva recair exclusivamente nos estimulantes. Os antidepressivos e antipsicóticos, hoje fartamente utilizados na faixa infantojuvenil na rede pública e nos consultórios privados, têm efeitos colaterais até mais graves (no caso dos antipsicóticos, alterações metabólicas e endócrinas como aumento de glicose, colesterol, triglicérides, insulina, prolactina). Acredito ser necessário um amplo debate e repactuação, na própria RAPS, sobre o papel dos psicofármacos no tratamento de crianças, jovens e adultos. Minha posição é que eles têm um lugar (e um tempo) nas estratégias do Projeto Terapêutico Individual, desde que ponderadas as potenciais vantagens e desvantagens, mas que não devem se tornar o principal recurso ou o eixo do tratamento, dada a existência de outras formas seguras e efetivas de cuidado, que muitas vezes acabam subutilizadas quando a prioridade é dada à psicofarmacologia.