Um novo estudo realizado na Finlândia e publicado na revista Health examina em profundidade as entrevistas de médicos e pacientes diagnosticados com transtornos de personalidade, prestando particular atenção às discrepâncias entre clínico e paciente quanto à generalização de seu comportamento.
Por meio de pesquisa interativa e análise de conversas, os resultados revelaram que pacientes freqüentemente contextualizavam o seu comportamento como resultado de uma série de fatores situacionais que os clínicos então traduziam para a linguagem psiquiátrica de traços de personalidade. Os resultados sugerem a importância de tornar visíveis as práticas subjetivas que moldam o processo de diagnóstico na psiquiatria.
Além disso, os autores problematizam a tradução dos relatos dos pacientes para a linguagem psiquiátrica a fim de adequá-los aos critérios diagnósticos.
“Mostramos alguns padrões problemáticos nos quais a suposição de sintomas descontextualizados se torna desafiada. Nossas observações mostram que os pacientes frequentemente enfatizam fatores contextuais excessivamente generalizantes. Esse modelo explicativo às vezes está em conflito com o SCID-II que procura traços inerentes e duradouros que causam certo comportamento”.
Em geral, uma entrevista psiquiátrica não tem definição formal, mas é uma variante de uma entrevista médica na qual os participantes criam significados para eventos em suas vidas e assim constroem a realidade. Normalmente, o entrevistador controla o assunto dirigindo a discussão com base em perguntas, silêncios e redirecionamento.
Um tipo mais formal de entrevista psiquiátrica é a Entrevista Clínica Estruturada para Transtornos de Personalidade do Eixo II do DSM-IV, SCID-II, desenvolvida em 1997 para determinar se um indivíduo atende aos critérios para um transtorno de personalidade diagnosticável. Isso segue um conjunto de perguntas pré-determinadas, mas ainda tem uma variabilidade baseada no estilo do entrevistador e destina-se a ser usado em conjunto com o “julgamento clínico”.
Os autores, liderados por Maarit Lehtinen da Universidade de Helsinki, destacam as dificuldades de aderir à estrutura médica na qual o objetivo da entrevista é obter informações “factuais” para o diagnóstico, muitas vezes forçando os psiquiatras a transformar o comportamento contextual em um traço intrínseco e estável.
Dentro da psiquiatria, há dois manuais primários para diagnósticos psiquiátricos nos países ocidentais: o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) e a International Statistical Classification of Disease Related to Health Problems (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Embora esses manuais tenham recebido muitas críticas, eles continuam sendo o principal uso para o diagnóstico psiquiátrico ocidental.
A ideia de uma personalidade desordenada tem sido altamente contestada. Pesquisas têm apontado que entre os diagnósticos psiquiátricos, que geralmente são construções contestadas, os transtornos de personalidade são especialmente difíceis de serem categorizados. Há questões conhecidas com são a validade de construção, comorbidade e a etiologia. Com relação ao transtorno de personalidade limítrofe, não há um acordo claro sobre se ele deve ser tratado como um transtorno de personalidade ou uma condição de resposta a trauma. Além disso, uma análise da história do transtorno de personalidade anti-social mostrou que os termos e definições mudaram dependendo da influência pessoal do membro do comitê do grupo DSM no processo de decisão.
O estudo atual analisou dez pacientes adultos, gravados em vídeo, durante uma entrevista do SCID-II conduzida por uma enfermeira psiquiátrica em uma clínica ambulatorial na Finlândia. O método focalizou o uso da psicologia discursiva, que é o estudo de questões psicológicas conforme a perspectiva de um participante, assim como a análise de conversas, que é uma abordagem ao estudo da interação social e da linguagem. Os autores argumentam que a aplicação da análise de conversas no campo psiquiátrico permite a investigação de práticas psiquiátricas a partir de uma visão sociológica.
Os resultados revelaram seis tomadas de posição primárias.
Primeiro, os pacientes freqüentemente faziam sentido do seu próprio comportamento de maneira diferente do que o SCID-II prevê; e principalmente consideravam seus comportamentos como um resultado de muitos fatores situacionais.
Em segundo lugar, os pacientes raramente se opunham diretamente ao formato das perguntas da entrevista, mas suas respostas às vezes contrariavam as suposições subjacentes das perguntas.
Terceiro, quando os pacientes excluíam informações sobre a personalidade ao explicar seu comportamento eles estavam se referindo ao contexto social.
Quarto, os pacientes às vezes se referiam a estados internos agudos como fatores importantes que afetavam seu comportamento num contexto específico e, portanto, não o viam como generalizável a outras situações.
Da mesma forma, os pacientes tinham a tendência a pensar que o comportamento toca apenas uma pequena área da vida e não pode ser generalizado com base nisso. Assim, por exemplo, em muitos casos, eles foram capazes de criar um contexto no qual eles se comportavam como se lhes pedia, mas eles não viam isso como uma descrição de sua personalidade geral.
Finalmente, os pacientes não pensavam necessariamente que sua personalidade permanecesse estável durante a vida adulta; pelo contrário, eles poderiam notar mudanças com o passar do tempo devido a experiências de vida. Os autores escrevem”.
“Observamos como os médicos operam dentro da psiquiatria orientada medicamente e, portanto, precisamos isolar a conduta do paciente das variáveis contextuais antes de fazer suas avaliações”.
Embora a pesquisa apresentada não tenha dados causais, ela fornece uma visão observável de como a formulação de um paciente se torna problemática na estrutura de entrevistas do SCID-II. Para caber dentro dos limites da entrevista SCID-II, parte das respostas dos pacientes deve ser reformulada ou ignorada, o que manipula a resposta em linguagem psiquiátrica.
Os autores destacam dois níveis de incerteza em relação aos transtornos de personalidade. Primeiro, a própria construção permanece em questão, incluindo a sobreposição entre transtornos de personalidade e outros sintomas psiquiátricos. Isso leva à questão fundamental de por que certos traços de personalidade estão sendo mantidos como desordens em nossa sociedade e questionando onde se traça a linha entre personalidade “normal” e personalidade “patológica”.
Em segundo lugar, há um problema com o processo diagnóstico, sua objetividade e os fundamentos institucionais das entrevistas SCID-II. Estudiosos têm enfatizado a importância de uma compreensão crítica do diagnóstico psiquiátrico entre profissionais de saúde mental, incluindo a consciência crítica de como diferentes instituições moldam as construções de desordens e manuais, como o do SCID-II, e, portanto, as possíveis conseqüências do diagnóstico de transtorno de personalidade para um paciente.
Para concluir, os autores esperam que a pesquisa aqui apresentada aumente a probabilidade de se desenvolver tal consciência.
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Lehtinen, M., Voutilainen, L., & Peräkylä, A. (2022). ‘Is it in your basic personality?’ negotiations about traits and context in diagnostic interviews for personality disorders. Health: An Interdisciplinary Journal for the Social Study of Health, Illness, and Medicine, 136345932210947. https://doi.org/10.1177/13634593221094701 (Link)
[trad. e edição Fernando Freitas]