Para Evoluir, a Psiquiatria Precisa Aprender a Desmedicar.

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Escute o paciente, ele lhe dirá o diagnóstico.A vontade de tomar remédios é, talvez, a maior característica a distinguir o homem dos outros animais.

William Osler ( 1849-1919 ), eminente médico canadense.

 

Após mais de trinta anos em pesquisas sem alcançar resultados satisfatórios sobre a etiologia cerebral do sofrimento psicológico, assistimos espantados à falta de esclarecimentos à população sobre esta situação. Uma das repercussões ainda presente é o engano instalado de que as medicações “corrigem” problemas cerebrais.1 E na esteira deste entendimento veio uma avalanche de consumo medicamentoso. O que foi prometido pelas Neurociências não foi entregue e pior, grande prejuízo foi introduzido através de crenças de difícil desconstrução.

As Neurociências anunciaram que o sofrimento humano iria ceder frente aos avanços da racionalidade e da ciência. Receberam tanto incentivo que a década ficou caracterizada como a Década do Cérebro.2 Uma parte significativa da Psiquiatria tentou colocar de lado suas compreensões morais, políticas, filosóficas, espirituais e do senso comum sobre os sofrimentos psicológicos, adotando o enquadramento tecnológico das Neurociências. Havia a ilusão de se explicar a mente através do cérebro.

Infelizmente no Brasil as discussões em torno do uso inadequado de medicações ainda é incipiente. Muitas pessoas recebem as medicações para sintomas que se relacionam a problemas emocionais e cronificam os mesmos por não terem assistência para resolver as questões de relevância em suas vidas. Por isso, motivei-me em contribuir com uma perspectiva de quem está trabalhando para clarear algumas confusões e tentar instruir na redução das medicações, dada a quantidade de pessoas tomando excesso de medicações, com claros sinais de danos e dependência das mesmas. Tenho esperança que este relato seja útil àqueles que estão experimentando semelhantes questionamentos e ainda não encontram pares para discutir o tema no país. Além disso, que saibam que existem profissionais já trabalhando com a mentalidade atualizada.

Esquizofrenia, transtorno mental como conceito de psiquiatria e psicologia em um estilo de ilustração 3D.

Por característica pessoal, desde que iniciei a carreira em Psiquiatria clínica de adultos, sempre questionei essa prática de “tranquilização” das pessoas via química. Adentrei sozinho na prática crítica do uso das medicações psiquiátricas, mas não sem dificuldades, pois recebi treinamento para aplicar a CID (Classificação Internacional das Doenças) cuja décima edição havia acabado de ser oficializada durante a residência e aprendemos que os remédios tinham indicações conforme a caracterização do quadro clínico descrito. No entanto, por perceber que todas as alterações mentais ocorrem em um contexto, dentro de relações humanas, e por constatar que os resultados são muitas vezes insatisfatórios com os remédios, alojou-se em minha mente uma desconfiança sobre a real utilidade das medicações para o tratamento de problemas mentais.

A observação mostrava que alguns casos pareciam se beneficiar no curto prazo, um tanto menor no médio prazo e poucos no longo. Havia algo de errado em manter medicações por longos períodos.3 Com tanta ênfase em “novas” drogas durante a Década do Cérebro, minhas desconfianças cederam parcialmente. Assim, prescrevi as medicações, mas com um fundo conflituoso, dividido entre as demandas para consumo das “novidades”, as indicações e a inespecificidade das medicações e seus fracos resultados, além das queixas dos efeitos adversos. Acreditei que estava conduzindo tratamentos corretamente conforme as “evidências” que os pesquisadores nos ofereciam, tendo em mente que nós, enquanto clínicos, prestamos reverência àqueles que verdadeiramente labutam para extrair através de árduas pesquisas algum conhecimento válido.

Devo admitir que meus conflitos só foram aumentando ao longo do tempo, muito em função das observações clínicas em contraste com as divulgações científicas que estavam disponíveis na época. Estas provaram-se bastante problemáticas diante de leituras mais rigorosas.4 Descobri, a duras penas, que as medicações não se aplicavam de acordo com o discurso prevalente de que são tratamento específico de distúrbios mentais. No máximo, podíamos pensar em termos de aproveitar um efeito da droga para ajudar no alívio e controle momentâneos. Durante um bom tempo, tudo se passou como se eu estivesse sem chão, sentindo-me perdido e confuso com as novas percepções. Precisei vivenciar vários erros e questionamentos para que eu pudesse direcionar-me para um caminho de mais clareza e ressignificar meu trabalho finalmente.

Por força de concisão, darei um salto para o presente. Gostaria de expor algumas considerações sobre a experiência clínica da redução de medicações e ao final deixar algumas questões para nossa reflexão. Hoje não há dúvidas sobre a necessidade de se rever profundamente o uso de medicações na Psiquiatria. Busco contribuir com a melhora da especialidade. Só vejo possível a reversão da prescrição indiscriminada de medicações a partir de nós de dentro da área, remodelando os paradigmas do cuidado.5 A literatura, para quem quiser, é vasta e parcialmente acessível e uma dose de coragem é preciso para iniciar o caminho.

Estratégias clínicas para a “desprescrição”
I – O encontro inicial

O processo clínico de retirada de medicações é complexo. No nosso meio envolve considerar que boa parte da população tem dificuldades para executar um pensamento abstrato e culturalmente expressamos muito as emoções através do corpo. Estes fatos relacionam-se com uma conexão forte com meios concretos de alívio. O vínculo a remédios é estabelecido na perspectiva do corpo que expressa sintomas. Temos sempre que ver caso a caso, mas de modo geral há enormes dificuldades de expressão emocional e reconhecimento de vulnerabilidades. Somados a isto, temos diversos problemas sociais, que corroboram para formação de inúmeros traumas e memórias indizíveis.

Assim, o primeiro encontro médico-paciente é muito carregado. Aquele que chega para uma consulta traz expectativas. Muitas vezes, condutas prévias levaram a entender que as medicações são necessárias. As crenças em torno de remédios são fortes e há que se ter calma para avaliá-las, pois um elemento fundamental que não se pode perder é a esperança. A esperança frustrada pelos remédios precisa ser construída sobre outra fundação.

Além disso, existe uma grande assimetria neste encontro. O médico vem de uma formação e “conhece” mais que o paciente sobre seu problema. Muitos pacientes sentem um grande alívio por ter alguém que “sabe” o que é seu problema. Ele(a) ignora que ninguém sabe mais sobre seus problemas do que ele(a) próprio(a). Se por um lado é mais confortável alguém que orienta tudo, por outro, perder o poder pessoal é um dano ao psiquismo e uma barreira para tomar decisões. Essa discrepância leva a um desequilíbrio no poder de escolhas e de expressão Há que se considerar que a recuperação passa por construir a autonomia e assumir estar no mundo com todas as dores e sabores, livre para escolher e colher o que a vida oferece, seja o que for. Nossa medicina é carregada pelo paternalismo nada bem vindo nessas horas. Neste momento, precisamos evitar atos que possam ter um teor coercitivo. Quantas vezes não ouvimos: você tem que tomar seus remédios direitinho! O contrário também não devemos fazer.

II – A apresentação de uma proposta

Passada a primeira fase de conhecimento da pessoa e suas crenças, podemos chegar juntos à conclusão que a redução/retirada das medicações é o projeto escolhido. Deixar claro porque fazer isto é fundamental. Dada a falta de estímulos e materiais encorajadores, cabe ao profissional uma atitude educacional e pacienciosa a respeito do processo de redução de remédios. Com o passar do tempo, creio que mais pessoas chegarão ao consultório já buscando ajuda para a retirada, mas por ora é algo que é apresentado como novidade aos pacientes. O informar vai construir uma base de confiança para se começar tal empreitada. É incrível constatar a facilidade com a qual as medicações entram na vida das pessoas, mas para sair há que se ter uma estratégia muito elaborada e demorada.

E em antecipação àqueles que perguntam “o que vai ser colocado no lugar das medicações? ”, destaco algumas possibilidades que podem religar o indivíduo consigo mesmo, promovendo uma maior conscientização e consequente apropriação de seus recursos próprios. A prática de atividades artísticas, como a dança, por exemplo, trazem

benefícios comprovados ao psiquismo.6 Seguindo esta linha do autoconhecimento, há muitas outras ferramentas a serem melhor estudadas e praticadas no campo da saúde mental.

Existem muitos aspectos a se considerar dentro dessa nova prática, impossíveis para se encampar neste texto. Os primeiros manuais para a chamada “desprescrição” já estão sendo publicados e neles há muitos detalhes do processo.7

III   –  A polifarmácia

 O mais frequente na clínica é encontrar pessoas tomando mais de um psicotrópico. As associações de medicações são utilizadas na medicina em geral de forma estratégica. No entanto, na Psiquiatria prevalece uma irracionalidade no uso de múltiplas drogas concomitantemente, sem uma base farmacológica clara que sustente as condutas. Quando tais drogas são colocadas para interagir entre si, a previsibilidade do que vai acontecer é de difícil elaboração. Os bancos de dados que temos disponíveis para consultar a respeito de interações farmacológicas são insuficientes para esclarecer sobre as consequências de várias drogas nas diversas combinações possíveis. E tem sido mais fácil para a maioria dos profissionais simplesmente ignorar este assunto devido às dificuldades de observação e caracterização das interações farmacológicas.

Uma das questões que aparece quando vamos planejar a redução ou retirada dessas medicações é com qual sequência de retirada devemos trabalhar. A experiência clínica mostra que não há uma regra fixa para essa sequência. No entanto, existem alguns pontos norteadores. Pode-se pensar a princípio sobre a segurança ou insegurança do paciente em relação às medicações e seguir conforme a confiança do paciente permite.

De modo geral, o plano precisa ser flexível. Isto quer dizer que se a primeira escolha, pensada como mais fácil, tornou-se difícil, é possível voltar atrás e iniciar outra. Importante é perceber o relacionamento do paciente com cada substância e no que ele imagina que ela está ajudando ou causando mal. Às vezes escolhemos aquela que seria menos útil, mas é aquela que o paciente está mais apegado e terá mais dificuldade para diminuir. Os caminhos podem ser retraçados tranquilamente, desde que já no início sejam anunciadas estas condições.

Todas as condutas nestas novas abordagens ainda estão sendo construídas e muito bom senso pode ser aplicado. Uma regra que tenho utilizado é não desistir facilmente. Parto da ideia que não é fácil reduzir medicações. Mapear a situação com calma é o que permitirá evitar mal estar e mal entendidos na trajetória. Outra regra em mente: sempre uma droga de cada vez. Isto permite foco e melhor observação de um fenômeno que tem aterrorizado muitas pessoas, qual seja, a síndrome de abstinência que comentaremos a seguir.

IV  – A síndrome da abstinência

Muitos pacientes já experimentaram sintomas de abstinência de psicotrópicos, mas não sabiam que era isto. Resolvem diminuir drasticamente ou parar as medicações por conta própria, seja porque estavam cansados de tomá-las ou porque sentiam efeitos adversos. O mal estar que elas sentem em seguida é na maioria das vezes interpretado como recaída e muitas pessoas, inclusive médicos dizem: “ Tá vendo, você não pode parar os remédios!”

Esta situação é responsável por induzir uma crença altamente danosa que associa a tomada das medicações para vida toda. Um equívoco que vem sendo alertado em diversos fóruns da saúde mental.8 Muito embora a distinção entre abstinência e recaída seja por vezes confusa, é fundamental para o bom andamento do trabalho que ela seja feita.

Sintomas de abstinência são frequentes e tendem a ser tanto mais intensos quanto maiores as doses e maior o tempo de uso. No entanto, as dificuldades podem incluir outras variáveis, inclusive é difícil afirmar sobre quais remédios são mais difíceis de abordar. Mas os benzodiazepínicos estão sempre entre os maiores desafios. Muitas vezes conseguimos evitar manifestações de abstinência se pudermos fracionar adequadamente as reduções. Quando há a forma líquida, trabalhar uma gota de cada vez é uma excelente opção.

Costuma dar certo. Infelizmente são poucas as medicações que possuem esta apresentação. O fracionamento de comprimidos, drágeas e cápsulas é um grande desafio na clínica das reduções de medicações. Há saídas para esta encruzilhada, mas a lógica destas reduções requer um espaço próprio e não fará parte deste texto.9

A abstinência pode ser uma barreira às progressões das reduções. Dependendo da intensidade, pode levar o paciente a desistir. Portanto, caso ela ocorra, um acompanhamento mais próximo permite observar melhor e colocar alternativas para alívio e, ao mesmo tempo, não perder os objetivos de vista. Nestas horas, o tempo é o tempo do paciente. Não há que se ter pressa. Um ponto crítico da redução pode levar meses para ser superado. No meio tempo, vai se estruturando confiança e esperança.

V – A política de redução de danos

Diante dos casos mais graves e crônicos, a estratégia das reduções recebe questionamentos no que se refere a seus limites. Sem dúvida, haverá casos, felizmente a minoria, que não poderão chegar a um ponto considerado ótimo. Por diversas razões, como por exemplo quadros delirantes intensos, com alto nível de agressividade, pessoas muito idosas que tomaram remédios por longos anos e possuem poucos recursos emocionais, dificilmente poderão deixar o auxílio calmante das medicações. Mesmo síndromes ansiosas crônicas, muito arraigadas no funcionamento psicológico, com fortes sintomas físicos, precisarão de um efeito químico para equilibrar a vida. Em todos esses casos, dentre outros, cabe a política de redução de danos.

Assim, pode-se usar de preferência uma única droga em que haja alívio e adaptação na menor dose possível. Muitas vezes um ajuste de dose pode representar uma grande ajuda na prevenção/redução de alguns danos. Nesses casos, o esclarecimento, o apoio e a negociação para um plano terapêutico é o caminho para evitar mudanças de conduta quando houver flutuações de sintomas inerentes às pessoas e ao frequente processo de tolerância às drogas com o uso prolongado. Na prática, saber reduzir danos pode ser uma conduta valiosa.

VI – Conclusão

Certamente o universo de coisas a considerar é vasto e este texto nada mais pretende do que chamar a atenção para alguns pontos e estimular as discussões. Tenho convicção que no futuro os remédios serão melhor utilizados nas situações que forem necessários. Por ora, a balança está muito desequilibrada para o lado do uso irracional e abusivo, influenciada pela falta de esclarecimentos em vários níveis. A grande maioria das pessoas que toma medicações psicotrópicas não deveria estar consumindo essas drogas, principalmente as crianças e os adolescentes. Há uma responsabilidade enorme em proteger as pessoas nessa faixa etária. Um tanto de gente sempre precisará de tranquilizantes. Por outro lado, sabendo distinguir as situações, teremos mais chances de alcançar propostas mais saudáveis para se trabalhar na área de Saúde Mental.

Mas como fazer isso? Como desfazer a confusão que se instalou na área de tratamentos medicamentosos? Como explicar à população as omissões e distorções das pesquisas em farmacologia clínica? Como formar melhor os novos profissionais? Como rever o modelo médico prevalente no momento de modo que ocorra uma real melhora da assistência? Como negociar todas as diferenças existentes na área de Saúde Mental?

Como estimular a participação da sociedade como um todo nos caminhos que devemos adotar?

Haveriam muitas outras perguntas e elas todas não são para nos desanimar. Elas existem para instigar a curiosidade e trazer à tona a vida. Tendo a vida ativa dentro de nós, sabemos que só podemos fazer um tanto de cada vez e isto talvez seja tudo e o melhor que possamos fazer. Assim, a esperança continua…

 

 


1 Uma recente revisão sistemática feita por Joanna Moncrieff et al mostrou várias inconsistências nas teorias serotoninérgicas sobre a depressão. The serotonin theory of depression: a systematic umbrella review of the evidence, Molecular Psychiatry, July 2022.

2 Designação feita pelo ex-presidente norte-americano George H. W. Bush para expandir a consciência pública dos “benefícios” advindos das pesquisas sobre o cérebro (aspas do autor). Fonte: Wikipedia.

 3 Os trabalhos de Thomas J Raedler apresentam vários desses problemas. Ver, por exemplo,

Cardiovascular aspects of antipsychotics, Curr Opin Psychiatry, Nov; 23(6):574-81, 2010.

4 No site de Peter C. Gøtzsche Institute for Scientific Freedom encontramos análises detalhadas sobre os problemas das pesquisas.

5 Uma reflexão interessante está no artigo de Patrick Bracken e Philip Thomas, Postpsychiatry: a new direction for mental health, BMJ Vol 322 , 24 March 2001.

6 Ver as propostas de France Schott-Billmann em Quand la danse guérit, Le courrier du livre, 326 págs. 2012. Não podemos nos esquecer da pioneira Nise da Silveira (ver Imagens do Inconsciente, Editora Vozes, 280 págs 2015 e o significativo trabalho de Vitor Pordeus no Rio de Janeiro (ver Restaurando a Arte de Curar, Edições Nosso Conhecimento, 148 págs. 2023) entre tantos outros que trabalham com arteterapia.

7 Consultar M.Horowitz e D.M. Taylor The Maudsley Deprescribing Guidelines, 580 págs., Wiley-Blackwell, 1ª edição, 4 janeiro 2024.

8 Ver Thomas M. Laursen et al Excess Early Mortality in Schizophrenia Annual Review of Clinical Psychology, Vol. 10:425-448, 2014.

9 Ver os trabalhos do professor Peter C. Groot e Jim van Os na Holanda com os “tapering strips”.

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