Falando sobre Saúde Mental Após a Chacina em Las Vegas

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Publicado em Washington Post: culpar os tiroteios em massa como  “doença mental” é uma distorção dos fatos e uma maneira conveniente de esquivar uma conversa necessária sobre controle de armas.

“Não há provas de que o atirador de Las Vegas estava louco. (Eu prefiro não usar seu nome e dar-lhe publicidade, até mesmo póstuma.) Ele não teve uma história de doença mental que conhecemos, nem foi relatado comportamento que sugerisse tal condição. Ele foi claramente um homem maligno, ou pelo menos um homem que fez algo realmente malvado. Mas o mal não é louco. Se definimos a tentativa tirar a vida de um ser humano inocente como loucura, então todo assassino é louco. Caso contrário, devemos reconhecer que é um termo sem sentido que acrescenta pouco à nossa compreensão do problema “.

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Um Diagnóstico Psiquiátrico tem o Impacto de uma Maldição Médica?

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mcornwallNos últimos 40 anos, como terapeuta dissidente e ativista, conheci muitas pessoas que foram tão negativamente impactadas pela experiência subjetiva de receber um diagnóstico psiquiátrico altamente duradouro, que eu comecei a ver como uma rotina tão desumanizante como é a prescrição de diagnósticos é equivalente a uma maldição médica.

Uma maldição é definida como sendo: “Uma declaração solene destinada a invocar um poder sobrenatural para infligir dano ou castigo a alguém”. Claro, os profissionais de saúde mental não pretendem causar dano quando proclamam solenemente, da sua posição de autoridade médica, que uma pessoa tem um transtorno / doença psiquiátrica para toda a vida, como é definido no modelo de doença psiquiátrica do sofrimento emocional humano e codificado no DSM. Mas, uma e outra vez, eu vi as consequências desse poderoso ritual de receber e assimilar um diagnóstico de patologização para toda a vida. Esses rótulos dos modelos de doença não consideram como perdas pessoais, necessidades não atendidas, isolamento, traumas e a toxicidade social afetam nossas vidas de maneira dolorosa.

Muitas pessoas lutam por décadas, ou realmente sucumbem e tiram suas próprias vidas, por causa da dor emocional e do peso corrosivo da experiência de serem rotuladas inequivocamente. O rótulo psiquiátrico delas é reforçado, objetivamente e poderosamente, pelos prejudiciais tratamentos psiquiátricos que acompanham e seguem sempre o rótulo oficialmente decretado.

Mais uma vez, mesmo os tratamentos prejudiciais são sempre administrados com ares de benevolência, se não com uma intenção benigna. Porém, toda hospitalização, consulta clínica, prescrição escrita e entregue para medicamentos psiquiátricos, são um verificador objetivo e reforçador, em tempo real, do ‘fato’ indelével da validade do rótulo de diagnóstico, que deve ser mantido para que o tão necessário “tratamento” médico continue.

No meu artigo ao Mad in America “O Processo de Diagnóstico Psiquiátrico qualifica-se como uma Cerimônia de Degradação?”, eu descrevo as dinâmicas sociais, que permitem aos especialistas dos rituais médicos em nossa sociedade de serem investidos com o poder de mudar, permanentemente, a personalidade do ‘paciente mental’, que eles avaliam, diagnosticam e tratam.

Nesse ritual de diagnóstico / degradação, eu acredito que  uma antiga experiência humana subjetiva ocorre, com elementos que fazem com que a pessoa diagnosticada se torne o destinatário do que só pode ser descrito como uma maldição.

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Há alguns anos atrás, uma grande amiga, agora na casa dos 80 anos, estava batalhando para começar a escrever um livro sobre sua vida, o qual ela desejava escrever há décadas. Ela me contou que quando ela era uma jovem paciente de um hospital psiquiátrico falou com a sua psiquiatra sobre o desejo de escrever um livro sobre sua vida. A psiquiatra respondeu a ela: “A ideia que você tem sobre escrever um livro algum dia é uma grandiosa ilusão, é um sintoma do seu transtorno mental!” Minha amiga me perguntou, “Você acha que a fala dela, dita há tanto tempo atrás, possivelmente ainda esteja me bloqueando, Michael? Eu lembro do horrível sentimento que senti ao escutar ela me dizer que era só uma grandiosa ilusão do meu transtorno mental. Eu comecei a escrever meu livro, e parece que sempre, por alguma razão, algo me faz parar de tentar escrever. “

Eu repliquei, “Ela lhe amaldiçoou.”

Os olhos da minha amiga se arregalaram e seu queixo caiu, enquanto ela perguntava, “O que você disse?”

Respondi: “Eu disse que ela amaldiçoou você. Eu acredito que ela lhe deu o equivalente a uma maldição médica a partir da sua posição de autoridade, com um enorme poder sobre você, e por causa da crença dela que só ela sabia a verdade sobre as suas capacidades.  Ela acreditava que você deveria ser megalomaníaca, na medida em que ela sempre viu você como prejudicada e doente mental, devido ao diagnóstico que ela lhe deu. “

Minha amiga então, chorou suavemente enquanto sacudia a sua cabeça, e dizia repetidamente, “Ela me me amaldiçoou. Ela realmente me amaldiçoou.”

E finalmente ela disse veementemente, “Eu vou escrever essa droga de livro agora nem que seja a última coisa que eu faça!”

Eu não acho que nós possamos subestimar o extraordinário poder de receber tais anúncios sobre nossa personalidade, por pessoas autorizadas pela nossa cultura a servirem de árbitros da verdade. Bem como o poder sacerdotal de seus predecessores, quem amaldiçoavam rotundamente aqueles que eles acreditavam merecer tais consequências.

Parte da distorção, confusão e mistificação da experiência que RD Laing descreveu, acontece quando nós somos pegos em um vínculo recebendo duas mensagens contraditórias sobre nós próprios que são enviadas por outras pessoas, ajudando a criar uma áurea sombria da maldição médica quando somos rotulados.

Este duplo vínculo insustentável ocorre quando, em essência, nos é dito com bondade: “Eu sou um profissional médico que só tem as melhores intenções no coração, assim como tantos médicos, enfermeiras e profissionais de saúde, que ajudaram você desde que era um bebê e uma criança pequena. Baseado no meu treinamento e na melhor ciência medica atual, você precisa reconhecer que agora você está diagnosticada com um importante transtorno mental ou uma desordem psiquiátrica, principalmente por causas genéticas, biológicas e neurológicas. Quando nós hospitalizarmos você de novo, contra sua vontade, forçando injeções de drogas poderosas dentro do seu corpo, novamente contra a sua vontade, enquanto você está imobilizado por várias amarras de couro, tudo isso será sempre para o seu próprio bem. Sua raiva, medo e tristeza, que você expressa em resposta à nossa necessária intervenção, são manifestações sintomáticas e emocionalmente desafiadoras da sua doença mental, estamos fazemos o melhor para tratar você, assim como nós tratamos alguém que tem diabete, ou alguma outra doença ou transtorno. “

Em outras palavras, a mensagem diz: “Nós cuidamos de você até mesmo quando lhe machucamos, e você não consegue aceitar isso por causa da sua doença, o que nos obriga a continuar lhe machucando indefinidamente, enquanto seguimos cuidando continuamente de você. “

Eu acho que a natureza humana é regredida e se sente muito vulnerável, quando estamos assustados e isolados, e as figuras quase parentais que os médicos, enfermeiros e outros profissioanis da saúde mental, se tornam em nossas horas de necessidade, contribuem para que tomemos suas palavras como verdade.

Mas esse processo de internalização também pode nos destruir. Porque eles estão errados sobre o que está causando, e causou, o nosso sofrimento emocional.

Eles não sabem que estão errados, então eles se entregam como cuidadores profissionais apenas querendo o que é melhor para nós, porque acreditam que eles sabem o que é melhor. Tragicamente, suas opiniões grosseiramente falsas, que eles nos impõem, podem se tornar tão destrutivamente poderosas como se tivessem nos amaldiçoado.

Seria muito melhor, porque poderíamos entender isso, se a maldição médica fosse dada com eles grunhindo em fúria e condenação, em vez de serem dadas com seus rostos profissionais, plácidos e profissionais – parece que muitas vezes, sem o conhecimento de si e geralmente sem conhcer-nos , estão expressando fascismo amigável.

Em memória do querido Matt Stevenson, blogueiro da comunidade Mad e companheiro com um coração grande.

 

Mergulho em um Caso de Memória Reprimida ou Manipulada

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Nicole Kluemper. Photograph: Steve Schofield for the Guardian

Matéria publicada no The Guardian nesta semana. Trata-se do caso de Nicole Kluemper, um dos casos mais controversos na psicologia moderna: a memória (ou suposta memória) de haver sido abusada por sua mãe quando tinha quatro anos de idade.

O casamento de seus pais havia se quebrado em meses após o seu nascimento. Mas o divórcio de seus pais foi brutal e longo, com a batalha pela custódia que se prolongava ao longo dos anos. Em 1984, para criar provas para audiências judiciais, um psiquiatra chamado David Corwin filmou entrevistas com Kluemper. Ela tinha 6 anos de idade. E ela diz que sua mãe abusava sexualmente dela. Como consequência, seu pai ganhou na justiça a guarda de sua filha, a Nicole.

O vídeo passa a ser material de ensino para a carreira do psiquiatra que a entrevistou:  David Corwin. “Mais um caso de abuso de uma criança.” O que se sabe que infelizmente é que ocorre com uma frequência nada pouco significativa. Independente do gênero dos pais.

A pesquisadora Elizabeth Lotus, em seu doutorado, em Stanford University,havia se  debruçado sobre a problemática da ‘memória’ de eventos passados, com particular atenção ao que vinha ocorrendo nos Estados Unidos, em que  ‘memórias falsas’ haviam condenado equivocadamente pais por supostos abusos sexuais. Elizabeth entrevistará a Nicole e passa a usar o seu caso como ‘falsa memória’.  O que impactará a vida de Nicole, evidentemente.

E o que será da Nicole desde de então?  Nicole construiu a sua identidade tendo esse componente básico: sua mãe abusou sexualmente dela.  E se esse significante-mestre, como diria Lacan, não passa então de ser imaginário?

Eis aí um interessante problema para quem trabalha (ou se interessa) pelo campo da construção da subjetividade e o papel dos profissionais de saúde mental. A construção da ‘narrativa de vida’.  Algo de uma enorme complexidade, que evidentemente não admite simplificações.

Eis ái o artigo na íntegra.

Artigo ⇒

 Nicole Kluemper. Photograph: Steve Schofield for the Guardian
Nicole Kluemper. Photograph: Steve Schofield for the Guardian

Antidepressivos Aumentam o Risco de Morte

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Photo Credit: Flickr

Peter SimonsNova pesquisa, liderada por Paul Andrews na McMaster University, sugere que o uso de antidepressivos (AD) está associado ao aumento do risco de morte por qualquer causa, além de aumentar o risco de problemas cardíacos. Os TCAs mais antigos (antidepressivos tricíclicos) e os novos ISRS / IRSN (inibidores seletivos da recaptação da serotonina / inibidores da serotonina-norepinefrina) tiveram esse efeito, assim como outros medicamentos como os inibidores da MAO (monoamina oxidase).

Segundo Andrews, “nas amostras da população em geral, as ADs aumentaram o risco de mortalidade em 33% e o risco de experimentar um evento cardiovascular em 14%”.

 

Photo Credit: Flickr
Photo Credit: Flickr

Outros pesquisadores propuseram que aqueles em antidepressivos possam ter uma depressão mais grave, aumentando o risco de morte independentemente se eles tomaram essas drogas ou não. No entanto, quando Andrews e seus colegas controlaram a depressão pré-medicação, o que eles descobriram foi que o risco aumentou. Quando a depressão pré-medicação foi contabilizada, os TCAs aumentaram o risco de morte em 26% e os ISRSs aumentaram o risco de mortalidade em 49%. Os medicamentos classificados como ‘outros’ (como bupropiona, mirtazapina, trazodona e inibidores de MAO) geraram um risco aumentado de 75% de morte.

Este achado é particularmente preocupante à luz da literatura de pesquisa que repetidamente vem questionando a eficácia dos medicamentos antidepressivos. Na verdade, Andrews escreve que “uma possível explicação é que o uso de AD só leva à uma redução transitória nos sintomas depressivos […] sintomas depressivos sob uso prolongado de AD (ou seja, meses ou mais) são maiores do que seriam sem medicação”.

Andrews e seus colegas explicam as maneiras pelas quais os antidepressivos afetam sistemas amplos em todo o corpo.

“Embora cada AD provavelmente tenha um perfil de sintoma distinto, há boas razões para suspeitar que todos eles degradam o funcionamento de alguns processos adaptativos no corpo”.

Os TCAs afetam principalmente os sistemas de norepinefrina e dopamina. De acordo com os pesquisadores, “Norepinefrina afeta o sistema nervoso simpático e partes do cérebro que envolvem atenção e excitação. A dopamina tem efeitos amplos, incluindo funções imunológicas, endócrinas, renais, gastrointestinais e pancreáticas, bem como a regulação do peso corporal e o tempo de vida saudável”.

Por sua vez, os ISRS / IRSNs afetam principalmente o sistema de serotonina, que é responsável por inúmeros processos corporais.

“A serotonina regula o crescimento, desenvolvimento, reprodução, atividade neuronal, digestão, função imunológica, termorregulação, reparo de tecidos, manutenção, equilíbrio de eletrólitos, função mitocondrial, e armazenamento, mobilização e distribuição de recursos energéticos. Ao bloquear o transportador no cérebro e na periferia, os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), que são os ADs mais amplamente prescritos, poderem potencialmente degradar inúmeros processos adaptativos”.

A pesquisa foi publicada na revista Psychotherapy and Psychosomatics. Andrews e os outros pesquisadores realizaram uma meta-análise para examinar todos os ensaios relevantes de medicamentos antidepressivos que relataram estatísticas detalhadas sobre a mortalidade e controlados para potenciais fatores de confusão. Dos 16 estudos incluídos na meta-análise, 11 examinaram principalmente pacientes cardiovasculares, enquanto os 5 restantes não. O número total de participantes foi de 378.400, dos quais 140.787 estavam tomando medicamentos antidepressivos.

Curiosamente, o uso de AD não parece aumentar o risco de pacientes que já tenham problemas cardíacos graves. Em alguns estudos anteriores, os antidepressivos demonstraram melhorar a mortalidade em pacientes cardiovasculares.

Os pesquisadores explicam que os ISRS e TCAs têm um efeito anticoagulante, o que pode ser bastante útil para as pessoas com problemas cardiovasculares. No entanto, eles observam que esse mesmo efeito pode ser problemático para a população em geral. Para a pessoa média, “ADs podem inibir a coagulação e assim aumentar o risco de eventos cardiovasculares, particularmente aqueles associados à hemorragia anormal (AVC hemorrágico, por exemplo)”.

Os pesquisadores sugerem que os médicos devem tomar muitos cuidados antes de prescrever ADs.

“Quando o paciente não tem doença cardiovascular, nossos resultados sugerem que o médico deve pensar duas vezes antes da prescrição, porque os ADs aumentam os riscos para a saúde, incluindo o risco de morte”.

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Maslej, M. M., Bolker, B. M., Russell, M. J., Eaton, K., Durisko, Z., Hollon, S. D. . . . Andrews, P. W. (2017). The mortality and myocardial effects of antidepressants are moderated by preexisting cardiovascular disease: A meta-analysis. Psychotherapy & Psychosomatics, 86(5), 268-282. DOI: 10.1159/000477940 (Link)

XVII Congresso Mundial de Psiquiatria, Berlim

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fernando_foto_definitivaNos dias 8 a 12 de outubro, em Berlim, está ocorrendo o XVII Congresso Mundial de Psiquiatria. O tema geral é bastante sugestivo,  A Psiquiatria no Século XXI: Contexto, Controvérsias e Compromisso.

É com grande satisfação que tenho recebido mensagens de vários colegas da nossa comunidade do Mad – militantes do movimento de ex-usuários, profissionais de saúde mental e intelectuais, da Europa, Estados Unidos e Canadá – felizes por estarem indo à Berlin para participar desse Congresso; sobretudo para a mesa-redonda intitulada ‘Retirada dos Psicotrópicos”. Entre os palestrantes dessa mesa-redonda estão Peter Lehmann, quem irá coordenar, Laura Delano e Peter Gotzsche.  Laura estará entre nós daqui a duas semanas, para o nosso Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, Causas, Danos e Alternativas.

Para que melhor se tenha uma ideia da problemática que será abordada em nosso Seminário, certamente é do interesse de todos – inscritos no Seminário e o público em geral – ter mais uma vez uma ideia do que hoje vem sendo discutido internacionalmente a respeito da problemática das drogas psiquiátricas. Em um blog anterior apresentei a experiência de Soteria, uma abordagem de tratamento de pessoas vivendo a experiência de surto ou de grave crise psicológica, que foi desenvolvida no início dos 70 nos Estados Unidos, cujas principais características é o tratamento dado primariamente por não-profissionais de saúde e sem uso (ou o mínimo indispensável) de drogas psiquiátricas. Seus resultados surpreendentes têm sido objeto do escrutínio científico há décadas. Infelizmente, aqui no Brasil muito pouco ainda se sabe a respeito de experiências como a de Soteria, o que tem contribuído para que a nossa assistência em saúde mental seja quase que absolutamente dependente do modelo biomédico da Medicina mental, assim como criado obstáculos incontornáveis para que a eficácia das abordagens de natureza psicossocial seja implementada.

O Mad in Brasil vem sistematicamente disponibilizado em suas páginas postagens à respeito dos danos das drogas psiquiátricas e diferentes iniciativas para interromper o seu uso de forma segura, viável e com o mínimo possível de sofrimento.  O debate ganha força internacional, e não é por acaso que o Congresso Mundial de Psiquiatria está dando espaço para a discussão dessas problemática.

É interessante se observar como foi desenhada essa mesa-redonda da qual a Laura Delano está participando. Por isso estou apresentando o seu programa, com tradução do resumo do que será colocado por cada palestrante. Mais importante do que a importância internacional dos palestrantes é ao meu ver o conteúdo do que cada um irá apresentar.

 

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Withdrawal from psychotropics (A Retirada dos Psicotrópicos)


11.10.2017 | 15:15 – 16:45 | Hall Berlin 1

Peter Lehmann, Berlin

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Leia o resumo:

Os medicamentos em psiquiatria, como na medicina geral, devem atingir uma síndrome específica para um período de tratamento definido, e devem ser reduzidos ou encerrados após algum tempo. Os pacientes podem preferir suporte não farmacológico para aliviar problemas mentais. No entanto, há uma falta de diretrizes sobre como reduzir a medicação e uma preocupação crescente de que medicamentos farmacêuticos podem causar sintomas de abstinência com diferentes graus de nocividade. Vemos um fosso crescente entre o conhecimento sobre os problemas de abstinência associados aos antidepressivos e neurolépticos e o suporte existente para a retirada.
Que conclusões podem ser extraídas? Quais formas de suporte, o da Internet incluído, já existentes? Quem está educando sobre estratégias de redução de risco para a retirada? As diretrizes de melhores práticas não deveriam exigir que os profissionais tentem rotineiramente retirar os pacientes das drogas psiquiátricas? Seria apropriado falar sobre a dependência física de antidepressivos e neurolépticos mesmo quando não há vício (craving)? Os pacientes a quem não são oferecidas oportunidades para reduzir ou retirar medicamentos psiquiátricos podem reclamar na justiça pelos danos sofridos?


Co-Chair

Andreas Heinz, Berlin


Speaker (palestrante)

Peter C. Gøtzsche, Copenhagen, Denmark

001 –International institute for psychiatric drug withdrawal

(Instituto Internacional para a Retirada das Drogas Psiquiátricas)

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Leia o Resumo

Em outubro de 2016, onze pessoas de sete países incluindo ex-pacientes, psiquiatras, psicólogos, terapeutas e cientistas, decidiram abrir um Instituto Internacional para a Retirada de Drogas Psiquiátricas, reconhecendo que muitos milhões de pacientes tornaram-se dependentes de drogas psiquiátricas e têm dificuldade em sair delas, o que leva a resultados pobres a longo prazo, com taxas crescentes de pensões por invalidez. É um dos maiores problemas de saúde que temos, mas muito pouco é feito para ajudar esses pacientes a reduzir suas drogas com segurança. Infelizmente, alguns profissionais de saúde acreditam que a dependência é apenas um problema com os benzodiazepínicos, embora tenha sido amplamente documentado que este também é um grande problema para outras classes de drogas psiquiátricas, por exemplo, também para antidepressivos e antipsicóticos. Pesquisa, educação e a criação de clínicas de retirada e linhas de ajuda são algumas das iniciativas que vamos realizar e apoiar em todo o mundo.


Speaker (palestrante)

Tom Bschor, Berlin

002 –Do antidepressants cause dependence? A comparison to benzodiazepines with special regard to withdrawal reactions

(Os antidepressivos causam dependência? Uma comparação com os benzodiazipínicos com especial atenção para as reações à retirada)

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Leia o resumo

Apenas cerca de 20 anos após a introdução no mercado, foi amplamente aceito que os benzodiazepínicos podem causar dependência. Além de outros sintomas, reações acentuadas de abstinência, muitas vezes obrigando o indivíduo a voltar a fazer uso da droga, ilustram o poder viciante dos benzodiazepínicos. Nos últimos 20 anos, ocorreu um aumento acentuado das prescrições de antidepressivos. Igualmente reações de abstinência severas ocorrem após a cessação dos antidepressivos, com muita frequência, mas não apenas, após o término dos ISRSs. Essas reações também impedem as tentativas de parar a medicação. Sendo uma característica distinta, os sintomas de abstinência não são simplesmente o retorno da depressão pré-tratamento. Uma característica é o seu desaparecimento imediato após a re-administração do antidepressivo.
Alguns especialistas argumentam que essas reações de retirada são indicativas da dependência aos antidepressivos. No entanto, a dependência é uma doença caracterizada por um conjunto de mudanças físicas e psicológicas. O que se segue pode ser observado em pacientes dependentes de benzodiazepina, mas não em pacientes com antidepressivos: ingestão para experimentar um efeito imediato; aumento da dose, tolerância e ingestão várias vezes ao dia; negligência progressiva de prazeres ou interesses alternativos, devido ao uso de substâncias psicoativas; maior quantidade de tempo necessário para obter ou armazenar o medicamento; formas ilegais de obter a droga (dificilmente existe qualquer mercado negro de antidepressivos).
Diagnosticar a dependência pela ocorrência de uma reação de retirada apenas ignoraria as dimensões psicológicas da dependência. Por isso, os antidepressivos geralmente causam sintomas de abstinência, mas geralmente não a dependência como a da benzodiazepina. Os antidepressivos têm uma latência de início do efeito desejado, que normalmente é uma desvantagem dessa classe de fármacos. No entanto, a falta de um efeito imediato dos antidepressivos é provavelmente o fator mais importante que evita a dependência.


Speaker (palestrante)

Volkmar Aderhold, Greifswald

003 –The withdrawal of neuroleptics: When to do so? How? When not to do so? What then?  

(A retirada dos neurolépticos: Quando fazer isso? Como? E quando não proceder dessa forma?)

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Leia o resumo

Objetivo

Estudos de longo prazo de pessoas que experimentam seus primeiros ou múltiplos episódios de psicose sugerem que entre 20% e 35% podem se retirar com sucesso dos neurolépticos no curto e longo prazos. Sob condições ideais de apoio social e orientação profissional, pode-se esperar uma maior proporção. Estudos de longo prazo da era pré-neuroléptica também apóiam essa conclusão.
Surpreendentemente, não há estudos de descontinuação nos 15-20% dos pacientes que não respondem aos neurolépticos.

Métodos

Avaliação de publicações conforme a pesquisa bibliográfica.
Experiência clínica.

Resultados / Discussão

As tentativas guiadas de antecipação da retirada são benéficas devido às alterações cerebrais adversas causadas por neurolépticos e também servem para atingir a menor dose possível. <BR> A não conformidade aos neurolépticos é consistentemente alta (entre 50% e 75%). Isso geralmente é uma reação a fortes efeitos colaterais e baixa eficácia, e tende a resultar em tentativas de retirada profissionalmente não guiadas e, muitas vezes, perigosas. O que é necessário, portanto, é o desenvolvimento de uma prática cooperativa de redução e retirada, de modo a não deixar pessoas e familiares afetados por conta própria, expostos a altos riscos assim como a tensões físicas e psicológicas. Precisamos de equipes de pacientes ambulatoriais multiprofissionais, incluindo especialistas com experiência e ex-pacientes, que tenham a habilidade para ajudar as pessoas a reduzir / retirar, além de outras práticas psicoterapêuticas efetivas. <BR> Previsores positivos de retirada bem-sucedida nos poucos estudos existentes podem nos ajude a julgar a viabilidade de retirada / redução. O apoio social é um dos preditores centrais. Além disso, os preditores negativos, bem como as contra-indicações para a retirada, podem ser identificados. <BR> Dúvidas que precisam de esclarecimentos, bem como as etapas recomendadas na preparação de uma tentativa de retirada, serão apresentadas Em seguida, será descrito um procedimento de redução, bem como fenômenos que podem ocorrer ao se reduzir / retirar os neurolépticos. Através dessa prática, podemos aprender mais sobre as diferentes estratégias farmacológicas necessárias para o tratamento da síndrome muito heterogênea (em causa e curso) chamada “esquizofrenia” e desenvolver a melhor cooperação possível com todos os afetados.


Speaker (palestrante)

Laura Delano, Medford, MA, USA

004 –Start low, go slow – bridging the divide between the lack of clinical research on safe psychiatric drug withdrawal protocols and the growing evidence base of successful tapering methodologies by users of psychiatric drugs  

(Comece lentamente, avance devagar – colmatando o fosso entre a pesquisa clínica sobre protocolos seguros de retirada de drogas psiquiátricas e a crescente base de evidências de metodologias de redução bem sucedida criadas por usuários de drogas psiquiátricas.)

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Leia o resumo

Os usuários de drogas psiquiátricas estão desenvolvendo sofisticados protocolos de redução gradativa de drogas psiquiátricas que estão produzindo resultados positivos – inclusive entre aqueles que estiveram em várias drogas por muitos anos. Esta apresentação elucidará essa base de evidências anedóticas crescentes, ricas, mas não reconhecidas “oficialmente”, de metodologias de redução gradativa, para provocar uma conversa sobre como poderemos criar pontes entre aqueles que vieram de drogas psiquiátricas e ajudaram outras pessoas a fazê-lo de forma segura e exitosa e os profissionais psiquiatras.

 

Como Deveríamos Pensar os Estados Mentais? A contribuição de Wittgenstein

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O segundo de uma série de blogs que apresentam uma análise filosófica do moderno sistema de saúde mental e o que está em causa nele.

Wittgenstein-211x300Existem duas abordagens amplas para o ‘mental que as ideias de Wittgenstein desafiam.  Uma delas é que todos os nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos são causados por, ou são ‘epifenômenos’ de, um estado ou processo específico do cérebro. Isso às vezes é referido como “fisicalismo” (o ‘epifenomenalismo’ sendo uma variante do fisicalismo). Para esta visão – aquela em que a neurociência está baseada – os estados cerebrais que estão por trás das sensações e comportamentos são o que é primário e importante. Assim como para entender com precisão o comportamento da água necessitamos conhecer a sua estrutura molecular, para entender o comportamento humano precisamos identificar os estados cerebrais que o produzem.

A segunda abordagem para a compreensão da experiência humana é a ‘psicológica’. Com isso quero dizer a ideia de que os eventos e comportamentos mentais podem ser estudados e teorizados por seu próprio direito, sem referência nem ao cérebro nem ao indivíduo que os possui. De acordo com esta visão, os estados mentais têm características independentes que podem ser categorizadas, comparadas e manipuladas experimentalmente, assim como as coisas materiais no mundo, como minerais ou plantas.

Embora Wittgenstein não tenha negado que tenhamos experiências pessoais, por exemplo dor ou tristeza ou culpa, algumas das quais nos referimos como estados mentais ou psicológicos, o que ele ressaltou é que entendemos essas experiências pelo modo como as expressamos. Nós nos expressamos através de palavras, gestos e ações, que por sua vez derivam seu significado pela maneira como são usados em um contexto público e social.

Philosophical-Investigations-194x300Em Investigações Filosóficas, Wittgenstein dá o exemplo da dor. Embora a dor seja uma experiência pessoal ou subjetiva, expressamos dor através de respostas bem reconhecidas, que são automáticas ou involuntárias (recuando do estímulo doloroso, chorando) e voluntárias (implorando a alguém para parar de fazer o que for que está provocando a dor). Esses comportamentos e enunciados são reconhecidos como manifestações de dor por outras pessoas quando ocorrem em circunstâncias particulares (como alguém que caiu ou feriu o dedo). Se alguém está gritando, mas nenhum estímulo doloroso é aparente, podemos duvidar se seu comportamento é uma manifestação de dor, mesmo que afirme que o é.

Pense em uma criança pequena que aprende que expressar dor vai trazer amor e atenção de um adulto! O que está em questão é que são as manifestações públicas da dor e seu contexto particular que constituem nossa compreensão imediata e comum da dor, não a experiência ‘interna’ ou pessoal dela e nem o que for que aconteça na área dolorosa ou no cérebro ou no sistema nervoso. O significado da dor é como usamos a palavra na linguagem do cotidiano.[1]

No entanto, nós podemos investigar a base neural da dor e os processos corporais locais que a produzem. Esta é uma atividade perfeitamente legítima, mas não revela o significado da dor. Ela revela a base corporal da dor, mas não a forma como entendemos o fenômeno da dor na vida cotidiana.

O filósofo wittgensteiniano Peter Hacker descreveu como as emoções e os estados de espírito também são entendidos através de expressões públicas específicas, que constituem o critério de atribuir um estado emocional a alguém[2]. Algumas emoções são demonstradas por uma reação imediata, como um sorriso ou uma expressão de surpresa, e algumas, como tristeza, pesar ou ansiedade, por padrões de comportamento mais duradouros. Implícito na maior parte da linguagem da emoção é a ideia de que o sentimento é uma reação a alguém ou a alguma coisa. O amor, o ódio e a ira muitas vezes têm como objeto outro ser vivo. Surpresa e prazer são geralmente reações imediatas a eventos próximos. Tristeza, medo, culpa, vergonha e felicidade são reações menos imediatas, mas também normalmente entendidas como respostas a algo que aconteceu, está acontecendo ou pode acontecer com alguém. Parte do contexto da linguagem emocional é o objeto ou os eventos para os quais a emoção é dirigida.

Reconhecemos tristeza quando alguém nos diz que está triste, quando alguém parece triste e se comporta de maneira triste, e geralmente isso envolve explicar o que os deixou tristes. Essas coisas são necessárias para se entender e aceitar que alguém está triste. Se alguém diz que está triste, mas tem um grande sorriso no rosto, e continua a rir e a agir de forma alegre e animada, não entendemos porque alega que está triste. Da mesma forma, se alguém diz que está triste, mas não pode explicar o porquê, nós não necessariamente o desacreditamos, mas provavelmente acharemos a sua afirmação mais difícil de se aceitar do que se ele nos dissesse que está triste porque seu gato foi atropelado.

Como Rom Harré (outro filósofo muito influenciado por Wittgenstein) apontou, as emoções são diferentes das respostas fisiológicas, como dor ou fome, que são principalmente experimentadas no corpo. As emoções podem estar associadas a sensações corporais particulares, mas não são redutíveis a essas sensações [3]. Portanto, ao contrário da dor, não é claro que as emoções possuam correlatos físicos específicos. Na verdade, as evidências sugerem que não. Vários tipos diferentes de emoção; medo, ansiedade, raiva e euforia, por exemplo, estão associados ao estado fisiológico de excitação que está associado à liberação de substâncias químicas como a adrenalina e a noradrenalina (às vezes referida como a resposta “luta ou voo“). Este estado fisiológico e suas características bioquímicas, portanto, não são específicas de uma emoção particular, mas sim atravessam vários tipos de resposta emocional.

Mesmo que encontrássemos um estado específico do cérebro que se correlacionasse perfeitamente com a experiência do medo, e outro que estaria presente sempre que alguém sente alegria ou piedade, os estados cerebrais não são o que entendemos como emoção na vida cotidiana. Não são cérebros que sentem medo, piedade e alegria, são pessoas. As emoções são atributos das pessoas que vivem e atuam dentro de um mundo social ou público.

Então, o que isso significa para o estudo do domínio “mental”, incluindo as situações que chamamos de ‘transtornos mentais’? Isso significa que as entendemos através das expressões públicas pelas quais se manifestam. É assim como se refere a nossa linguagem de estados mentais e emoções. Refere-se às ações voluntárias e involuntárias, publicamente disponíveis, de pessoas vivas inteiras que estão ativamente envolvidas no mundo social e material.

Que se tome a depressão por exemplo, ou a tristeza prolongada ou a melancolia ou o desânimo (o termo depressão tornou-se tão fortemente associado hoje em dia com a abordagem psiquiátrica, que às vezes é melhor usar outras palavras para esclarecer o que queremos dizer quando pensamos sobre esse tipo de estado emocional) . Existem vários padrões de comportamento que podemos associar a essa emoção tão amplamente concebida. Alguém pode ir para a cama e deixar de lado as suas atividades cotidianas. Alguém pode estar chorando muito e exibindo sinais óbvios de angústia. Alguém pode se preocupar com uma visão negativa e pessimista do mundo. Geralmente, o uso de tais termos implica em uma mudança: que alguém anteriormente agia normalmente e então passou a agir de forma deprimida.

O ponto importante é que o tipo de comportamentos que associamos à depressão não são sinais ou sintomas de uma doença cerebral subjacente ou constructo mental. Quando nos referimos a alguém como “deprimido”, mesmo quando fazemos isso como psiquiatras conforme à estrutura de sistemas de diagnóstico, como o Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM), não estamos identificando a natureza real de seu sistema nervoso ou como está construído o seu mental. Estamos nos referindo aos tipos de comportamentos[4] que as pessoas estão exibindo, e como normalmente os interpretamos. A depressão é apenas os comportamentos que entendemos como expressão de depressão.

O etnometodólogo Jeff Coulter tem escrito sobre as características da expressão de psicose ou loucura. Coulter explica que a loucura é atribuída quando alguém age de uma forma que não é facilmente compreensível e quebra as regras não escritas de conduta social, como comportar-se imprevisivelmente ou não realizar tarefas esperadas. Seguindo Wittgenstein, Coulter enfatiza que a loucura, como outros estados mentais, é reconhecida e atribuída pela comunidade em resposta a padrões públicos de comportamento e não é algo oculto que só pode ser detectado pelos especialistas [5].

Portanto, o ponto importante que Wittgenstein faz é que os estados mentais, incluindo distúrbios mentais, como depressão ou psicose, não são apenas eventos primários ou privados – sejam eles considerados eventos cerebrais ou eventos em uma mente abstrata. Reconhecemos e identificamos essas situações através do tipo de comportamentos e reações que as pessoas exibem publicamente e do contexto em que elas ocorrem. Nem os cérebros nem as mentes estão deprimidos, ansiosos ou psicóticos – as pessoas reais estão, em situações sociais reais!

Estudar transtornos mentais como se fossem condições de mentes individuais ou cérebros, portanto, é perder o que de fato elas são. Precisamos compreendê-las a nível social, como problemas que aparecem em grupos ou contextos sociais. No entanto, nossos atuais serviços de saúde mental são configurados para ajustar cérebros ou mentes individuais, como se isso pudesse resolver o problema. Mas o problema reside na interação do comportamento de uma pessoa com seu ambiente social, que inclui as expectativas sociais de como as pessoas devem se comportar.

Isso sugere que às vezes pode ser o ambiente que precisa ser corrigido e não o indivíduo. Tomemos como exemplo o chamado “Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade”. Muitas pessoas vêm apontando que, em vez de ajustar o comportamento das crianças individuais através de produtos químicos modificadores do cérebro, devemos elaborar um sistema de educação que acomode uma gama mais ampla de trajetórias de desenvolvimento; um sistema que seja mais capaz de lidar com crianças que necessitem de mais atividade física e estimulação do que a criança média da sua idade.[6]

Outros ‘transtornos mentais’ também atuam como barômetros que revelam os atritos e as tensões de nossas instituições sociais. Se reconhecermos isso, poderemos imaginar outras formas de organizar a sociedade que possam tornar os ‘transtornos mentais’ menos prevalentes ou menos problemáticos.

Referências Bibliográficas Citadas:

[1] Wittgenstein, L. (2014). Investigações Filosóficas. Petrópolis: Editora Vozes.

[2] O filósofo de Oxford, Peter Hacker, aplicou a análise de Wittgenstein ao domínio das emoções: Hacker, P.M.S. (2004) The conceptual framework for the investigation of the emotions. International Review of Psychiatry, 16, 199-208.

[3]  Harré, R. Editor, (1986) The Social Construction of Emotions, New York: Blackwell.

[4]  Behaviorismo, também conhecido entre nós por ‘comportamentalismo’, é a escola que alinha o comportamento humano com comportamento animal instintivo ou reflexos neurológicos, trouxe confusão ao uso do termo ‘comportamento’, de modo que alguns escritores agora o evitam, escolhendo termos como “funcionamento”. Eu escolhi ficar com ‘comportamento’ em seu sentido comum, isto é, como indicando atividade humana auto-iniciada e dirigida.

[5]  Coulter, J. (1979) The Social Construction of Mind: studies in ethnomethodology and linguistic philosophy. Totowa, NJ: Rowman & Littlefield.

[6] Esse argumento é feito por vários autores, neste livro : Timimi, S. & Leo, J. Editors (2009) Rethinking ADHD: from brain to culture. Basingstoke: Palgrave, assim como por vários outros incluindo as contribuições em Mad in Brasil.

Las Vegas: mais um Caso em que Drogas Psiquiátricas estão associadas

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Publicado hoje, em Los Vegas Review-Journal. A respeito de Stephen Paddock, quem matou pelo menos 58 pessoas e feriu centenas mais em Las Vegas no domingo, com rifles de alta potência. A ele havia sido  prescrito uma droga ansiolítica em junho, o que pode haver levado a um comportamento agressivo.

Stephen-C-Paddock

Segundo os registros do Programa de Monitoramento de Prescrição de Nevada obtidos na terça-feira, à Paddock havia sido prescrito 50 comprimidos de 10 miligramas de diazepam, pelo médico de Henderson, Steven Winkler, em 21 de junho.

O diazepam é um medicamento sedativo-hipnótico da classe de medicamentos conhecidos como benzodiazepínicos, cujos estudos já demonstraram que podem desencadear um comportamento agressivo. O uso crônico ou abusivo de sedativos, como o diazepam, também pode desencadear experiências psicóticas, de acordo com drugabuse.com.

“Se alguém tem um problema de agressão subjacente e você o trata com essa droga, seus usuários podem se tornar agressivos”, disse o Dr. Mel Pohl, diretor médico do Centro de Recuperação de Las Vegas. “Pode desinibir um estado emocional subjacente. … É muito parecido com o que acontece quando você dá álcool a algumas pessoas … elas se tornam agressivas em vez de ir a dormir “.

Na segunda-feira, a atriz Kirstie Alley, mais conhecida por seu papel na comédia de TV “Cheers”, agitou a controvérsia ao colocar no ar que as armas e as drogas psiquiátricas são os denominadores comuns em recentes tiroteios em massa nos Estados Unidos.

Veja na íntegra a reportagem clicando aqui.

Experiências Alternativas ao Modelo Biomédico da Medicina Mental

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Soteria House in Santa Clara, California

Dias 30, 31 de outubro e 01 de novembro de 2017, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ), ocorrerá o Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, Danos e Alternativas. Como o próprio título aponta, entre as metas do Seminário está a busca por alternativas viáveis e seguras ao que hoje é reconhecido como ‘epidemia das drogas psiquiátricas’.

Para contribuir na preparação nossa para o Seminário, estou apresentando uma sequência de dois blogs. Dizem respeito a duas alternativas que podemos considerar como sendo não apenas viáveis – pois já realizadas -, mas também como seguras e reproduzíveis.

A primeira experiência é a de Soteria, objeto deste primeiro blog. O segundo blog será dedicado à apresentação e análise da experiência finlandesa do Open Dialogue (Diálogo Aberto).

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A EXPERIÊNCIA DE SOTERIA

No final da década de 60 e começo da de 70, muitas experiências foram criadas para oferecer alternativas de comunidades terapêuticas à hospitalização das pessoas diagnosticadas com esquizofrenia. Eram experiências que tentavam entender a esquizofrenia com quadros de referência distintos do modelo médico intervencionista, entendendo-a como um importante aspecto da história de vida individual [i].

Recusando o uso da medicação antipsicótica como primeira opção de tratamento, tais iniciativas tomavam como foco a necessidade de permitir os indivíduos atravessarem a sua experiência de psicose com um mínimo possível de interferência e o máximo possível de suporte psicossocial.

A lembrar: nos Estados Unidos e em vários países da Europa, nos anos 60 e 70, o ‘hospitalocentrismo’ estava deixando de ser a referência principal para a organização da assistência psiquiátrica. O ‘hospitalocentrismo’ demonstrava ser irracional, seja sob o ponto de vista econômico e político, mas também sob a perspectiva científica e ética propriamente dita.

E muito particularmente haviam os interesses da aliança entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica. Fora do hospital psiquiátrico, na ‘comunidade’/ou ‘território’, uma nova racionalidade de mercado se abria, com a conquista e a incorporação de novos ‘atores’ sociais. Novas categorias de pacientes, obviamente; mas, sobretudo, um novo mercado de ‘saúde mental’. Para que tais objetivos pudessem ser alcançados, centralizar no hospital os cuidados psiquiátricos se constituía em um incômodo obstáculo institucional. Já que ‘de perto ninguém é normal’, seria impossível incluir a todos no hospital psiquiátrico. O que somente seria possível na ‘comunidade’, no ‘território’.

É nesse contexto que a experiência de Soteria ganha relevância internacional. Ainda que entre nós brasileiros tenha sido uma experiência praticamente desconhecida.

Como foi iniciada? 

Soteria correu originalmente na baía de San Francisco, Califórnia, Estados Unidos, durante os anos 1970 e o começo dos anos 1980.  E desde então vem sendo implantada em diversos outros locais dos Estados Unidos, como em Vermon, e em países europeus, como Inglaterra, Suíça, Suécia, Finlândia, Alemanha, Hungria, entre outros .

Em abril de 1971, o psiquiatra Loren R. Mosher, Voyce Hendrix e um grupo de colegas se juntaram e fundaram a Casa Soteria.

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É para chamar a nossa atenção a escolha do nome ‘Soteria’. A palavra é de origem grega, que significa ‘libertação’, ‘salvação’. Soteria foi o nome dado a uma proposta de tratamento na comunidade, que não apenas era uma alternativa aos modelos dominantes, mas uma abordagem radical. Quer dizer, um tratamento fora do hospital, em uma residência, onde era oferecido refúgio às pessoas, a maioria jovens, a maioria diagnosticada como “esquizofrênicos”, e todos sofrendo de severo sofrimento psíquico. E tratados radicalmente fora dos parâmetros da ‘medicina mental’ vigentes na época e hoje em dia.

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Seus princípios básicos incluíam:

  • a provisão de um meio terapêutico pequeno, acolhedor, terapêutico, na comunidade;
  • com uma equipe formada por pessoas leigas;
  • preservando o poder pessoal, as redes sociais e as responsabilidades compartilhadas;
  • um estilo relacional ‘fenomenológico’, com o objetivo de dar sentido à experiência subjetiva da psicose da pessoa;
  • desenvolvendo um entendimento da experiência psicótica ‘estando com’ e ‘fazendo com’ os clientes;
  • e nenhuma, senão doses baixíssimas de medicação antipsicótica – com todas as drogas psiquiátricas sendo tomadas à partir de uma posição de escolha e sem coerção).

Nesse ambiente humanitário e igualitário, em Soteria as taxas de recuperação mostram ser muito mais elevadas do que em qualquer outro local de assistência psiquiátrica. Isso é o que foi alcançado na experiência original, na Califórnia; mas é o que ocorre em todos os locais onde a experiência Soteria é replicada.

Loteria Berne Switzerland
Soteria, Berne (Suíça)
Soteria, Vermont (USA)
Soteria, Vermont (USA)

 

 

 

 

O interesse no paradigma Soteria tem crescido tanto que recentemente foi criado no Reino Unido uma rede nacional Soteria, tendo havido uma conferência inaugural com vistas a implantar Soteria no país.

Soteria e o background

Soteria juntou uma diversidade de distintas noções clínicas:

  • Práticas da era do ‘tratamento moral’ em saúde mental surgidas no século XVIII nos Estados Unidos.
  • Pioneiros da psicanálise nos Estados Unidos (Henry Stack Sullivan e Frieda Fromm-Reichmann, explorando a importância do potencial de cura das relações humanas).
  • Terapeutas que descreveram o crescimento a partir da psicose (Karl A. Menninger).
  • Um grupo de psiquiatras considerados hereges (Ronald D. Laing; Thomas Szasz).
  • Cronistas do desenvolvimento do transtorno psiquiátrico como resposta à crise de vida.
  • Alternativas ao modelo de assistência asilar (“Manicômios, Prisões e Conventos” de Erving Goffman).
  • Um espaço para testar a validade das críticas dos ‘antipsiquiatras’, como na época eram vistos os que contestavam a psiquiatria vigente, tais como Laing, Cooper e Basagalia.

Características Gerais

A Casa Soteria original não era um hospital. Nem tampouco era um Centro de Saúde Mental (CSM). Seu programa não era dirigido por médicos (ou enfermeiros). Não obstante, Soteria admitia apenas clientes que seriam hospitalizados.

As drogas neurolépticas (antipsicóticos), o tratamento padrão para a “esquizofrenia”, eram usadas o menos frequentemente quanto era o possível, de preferência nunca.

A equipe era formada por não-professionais de saúde, com a responsabilidade, o poder e a autoridade para o tratamento primário e cotidiano.

E o mais importante, diferente das centenas de casas terapêuticas criadas em todo o território dos EUA durante os meados dos anos 1970 – os CSM -para servir de etapa intermediária entre a hospitalização e os lares, Soteria oferecia uma alternativa à hospitalização ao invés de acompanhá-la.

Soteria e as experiências alternativas da época

O que diferenciará radicalmente Soteria de outras experiências na época é que o paradigma Soteria tem o compromisso de ser uma alternativa de fato ao modelo biomédico da medicina mental. Assim sendo, o paradigma Soteria não propõe uma reforma psiquiátrica, mas um tratamento alternativo à psiquiatria propriamente dita, ao criar condições para se abordar os problemas tradicionalmente remetidos à psiquiatria – sem haver a necessidade do uso do diagnóstico psiquiátrico e do tratamento psicofarmacológico.

Daí que a principal fonte de inspiração de Soteria ter sido o projeto de Ronald Laing com a experiência de Kingsley Hall.

Kingsley Hall residents, 1965

Soteria: seu compromisso com as evidências científicas

O compromisso de Soteria com as evidências científicas para julgar a validade da experiência merece uma atenção bastante especial nossa. Seu idealizador e principal referência foi o psiquiatra e cientista Lauren Mosher. Mosher foi o chefe do Centro de Estudos de Esquizofrenia do poderoso NIMH, de 1968-1980. Mosher deixará o cargo de direção no NIMH em 1980, justamente quando o DSM-III surgiu.

Durante 10 anos, Soteria teve financiamento para desenvolver uma pesquisa, coordenada justamente por Mosher. Uma pesquisa quantitativa, empírica, randomizada. [2]  O suporte financeiro do NIMH foi para que Soteria respondesse a duas simples questões:

  • “Podem as pessoas recentemente nomeadas ‘esquizofrênicas’, e em situação tão disfuncional a requerer hospitalização, serem tratadas com sucesso em um ambiente pequeno, como um lar, em um espaço não hospitalar e sem drogas antipsicóticas? ”
  • “Como são os seus resultados clínicos comparados – em seis semanas, seis meses, e um ano e dois anos – com aqueles pacientes de um grupo de pessoas semelhantemente selecionadas e estudadas, que receberam a assistência habitual como paciente internado em um hospital e depois acompanhados fora do hospital? “

Resultados investigados:  saber se fatores tais como ‘hospitalização’, ‘medicamentos’ e ‘sintomas psicóticos’ continuariam presentes, e se os níveis de funcionamento psicossocial melhorariam ou deteriorariam.

Hipótese: Se o progresso dos grupos tratados experimentalmente (Soteria) e tradicionalmente (Hospitais Psiquiátricos e Centros de Saúde Mental) fossem comparáveis, então esse novo tratamento seria tão ou melhor do que a prática corrente, e um fenômeno poderia sido definido.  Suas partes constitutivas poderiam então ser estudadas para tentar desenredar as razões para a sua eficácia. Se o grupo experimental fosse pior, a pesquisa terminaria e o status quo estaria preservado.

Nos anos 1970, o senso-comum era que o tratamento psiquiátrico eficaz dependia do tratamento psicofarmacológico. A necessidade de diagnóstico psiquiátrico mais preciso estava em pauta, o que levará ao abandono dos critérios vigentes no DSM-I e DSM-II e à criação do DSM-III. Além disso, desde o começo dos anos 60, o tratamento psicofarmacológico era visto como essencial. Os hospitais psiquiátricos estavam sendo esvaziados, o tratamento sendo transferido para a ‘comunidade’.  E os Centros de Saúde Mental (CSM) eram na época, nos Estados Unidos, os espaços alternativos à assistência hospitalar.

As questões do projeto parecem simples, mas não eram. Há muitos interesses dominantes em jogo. Portanto, as respostas ao Projeto Soteria seriam difíceis de aceitação.

Se poderia esperar que, após mais que 10 anos de pesquisa (e mais a criação de um segundo serviço experimental que durou 6 anos), uma resposta clara teria aparecido. De fato, Mosher acreditava que sim, com a publicação do seu estudo sobre os resultados de dois anos [3].

Mas o establishment científico vigente não concorda com os resultados. A aliança entre os interesses corporativos da psiquiatria e da indústria farmacêutica não aceita os resultados que poderiam destruir a própria aliança. Uma falha científica é considerada: a ausência de uma estrita atribuição aleatória (‘amostra randomizada’).  Apesar da comparabilidade dos dois grupos em uma miríade de variáveis acessadas na admissão, o establishment científico finalmente negou fundos de pesquisa para estudar quais elementos no ambiente (“setting”) foram essenciais para o seu sucesso.  O financiamento é suspenso, acabando a experiência original de Soteria. Apesar disso, a análise dos dados foi completada em março de 1992.

O cotidiano de Soteria

A casa Soteria.  12 quartos, hospedando seis residentes (jovens, solteiros, recentemente diagnosticados e rotulados como “esquizofrênicos”), dois membros da equipe em trabalho integral, geralmente um homem e uma mulher, e vários voluntários e ajudantes em tempo parcial. Além disso, cada casa Soteria tinha um diretor da casa e acesso a psiquiatras disponíveis por um par de horas por dia. O fato da casa poder hospedar apenas 6 pessoas se devia às leis para licenciamento residencial. Um ou dois novos residentes eram admitidos a cada mês, geralmente permanecendo por um período de três a seis meses.

O núcleo da equipe de Soteria, geralmente cerca de sete funcionários remunerados em tempo integral e mais os voluntários, quando nos estabelecimentos convencionais eram entre 7 a nove funcionários. Na verdade, em momentos de alta atividade – geralmente entre as 16:00 até à meia-noite – Soteria tentou ter um equilíbrio entre 50-50% de pessoas em plena crise com aquelas funcionando mais ou menos normalmente, incluindo residentes que haviam se recuperado o suficiente para serem auxiliares.

Essa equipe não profissional visava fornecer um ambiente social simples, semelhante a um lar, seguro, acolhedor, de suporte, calmo, tolerante e não-intrusivo.

Embora estivessem imbuídos pelos valores da contracultura dos anos 1960, os membros da equipe tinham um pacto de não serem militantes. A equipe de Soteria acreditava que o sincero envolvimento humano e o entendimento eram vitais para as interações de cura.

Os psiquiatras supervisionavam a equipe, serviam para dar segurança, e cumpriam com as suas responsabilidades formais médicas e legais.

A equipe e os residentes compartilhavam responsabilidade pela manutenção das tarefas da manutenção da casa, preparação da alimentação e limpeza.

O nome era ‘residentes’ (algumas vezes ‘clientes’), jamais ‘pacientes’, ‘consumidores’ ou ‘usuários’.

Não haviam cadeados nas portas; não haviam seringas e apenas haviam poucos medicamentos; nenhuma sala para contenção ou algo semelhante.

Seguindo a tradição que teve como pioneiro Sullivan, a equipe de Soteria, em tempo integral ou tempo parcial, não era de profissionais de saúde mental. Os administradores e os pesquisadores, esses sim tinham formação em vários campos da saúde mental – Alma, assistente social; Stan Redd, Ken Woodrow e Richard Poe, psiquiatras que sempre eram chamados e visitavam frequentemente, assim como Loren, o nome com maior projeção nacional e internacional, que havia estudado com psicanalistas sullivanianos em Harvard e com Laing em Londres, nos anos 1960. E Voyce Hendrix que não tinha formação formal alguma.

A Filosofia de Soteria

Loren estabeleceu a filosofia fundamental de Soteria. Ele planejou que a equipe de Soteria aprenderia a ver a reação  ‘esquizofrênica’ como estado alterado de consciência de alguém em resposta à crise. Se uma ‘psicose’ se desenvolveu, ela cresceu em e afetou a matriz psicossocial da inteira família ou outro grupo íntimo, formando a ecologia perturbada da pessoa. Por conseguinte, com frequência, o inteiro meio ambiente perturbado e perturbador da pessoa – que não pode facilmente tolerar ou coexistir com os estranhos comportamentos que vem de um estado alterado de consciência – também experimenta a crise, portanto não apenas o indivíduo etiquetado de ‘louco’ é que está em crise.

Tal visão da ‘esquizofrenia’ implica em um conjunto de atitudes terapêuticas.

  • A experiência psicótica perturbadora nem era abortada e nem forçada a assumir algo, mas vista como tendo potencial para reintegração e reconstituição.
  • A equipe era incentivada a ver os muito aspectos da experiência da ‘esquizofrenia’ quanto o mais possível real ao invés de um processo de fragmentação, para tratar os seus sentimentos como potencial crescimento psicológico, reconstituição e reintegração em um todo de desenvolvimento psicossocial em um nível mais amplo.

Soteria colocava limites, quando os indivíduos estavam em perigo para consigo próprios ou para com os outros, mas não por causa de uma inabilidade para tolerar a loucura.

A equipe também aprendia a ver as qualidades místicas como metaforicamente válidas e compreensíveis, também em relação ao background cultural como em relação à dinâmica da família.

As linhas de autoridade e de papeis não eram claramente delineadas.

O Novo Terreno: evitando a terapia com drogas

A ênfase de Soteria na possibilidade de crescimento da psicose, embora estivesse firmemente baseada nas teorias que haviam sido articuladas por Laing e Menninger, levou à criação de um ambiente organizado muito original. Soteria tinha poucos precedentes estabelecidos para ser seguidos quando passavam da teoria para a prática. Embora o modelo médico houvesse demonstrado valor heurístico, a sua aplicação aos transtornos psiquiátricos havia tido desafortunadas (e não intencionais) consequências para os pacientes individualmente. Soteria não propôs algumum modelo alternativo da época; porque nenhum deles parecia explicar a (s) condição (s) etiquetada de ‘esquizofrenia’.  Ao invés disso, Soteria trabalhou a partir de uma atitude, posição ou visão. A abordagem endossou uma abordagem interpessoal fenomenológica para a ‘esquizofrenia’, na medida em que a equipe tentava tanto entender como dividir a experiência psicótica da pessoa – sem julgar, rotular, derrogar ou invalidar.

Por causa do seu desenho experimental, os clientes de Soteria não recebiam as drogas antipsicóticas disponíveis (neurolépticos, tranquilizantes maiores) tais como Torazina, Haldol, Prolixin ou Stelazine (haviam 18 no mercado no começo dos anos 1970) durante as suas primeiras seis semanas na residência.

A razão principal para esse intervalo era para permitir um teste honesto da abordagem psicossocial de Soteria. A equipe acreditava que poderia demorar seis semanas antes que importantes relações pudessem ser formadas e antes que qualidades especiais da cultura pudessem ser transmitidas significativamente. Durante as seis semanas o progresso do cliente era avaliado, e se nenhuma melhora ocorresse, e se o residente, a equipe e o psiquiatra consultor todos concordassem, um ensaio clínico com tratamento psicofarmacológico geralmente era iniciado. Na medida em que algumas drogas antipsicóticas estavam bem-estabelecidas como eficazes para o tratamento dos sintomas psicóticos, deixar o paciente indefinidamente de fora do tratamento com as drogas poderia ser não-ético.

Durante as seis semanas da investigação do tratamento ‘sem drogas’ o uso de antipsicóticos era permitido:

  • Se acreditassem que as drogas poderiam dominar a violência sem controle ou impulsos suicidas que de outra forma não fosse possível manejar;
  • Se o residente estivesse com uma dor psíquica insuportável que não pudesse ser aliviada por meios interpessoais;
  • O residente solicitasse remédios para ajuda-lo/ajuda-la a se reorganizar.

O limitado uso de drogas antipsicóticas na Casa Soteria contrasta com o fato que quase que todos os sujeitos tratados nas enfermarias dos hospitais psiquiátricos ou gerais, bem como nos Centros de Saúde Mental, que serviram como unidades assistenciais para o estudo comparativo, todos recebiam neurolépticos durante toda a sua permanência.

Começamos o novo século, estamos em 2017, e apesar do acúmulo das evidências científicas a questionar o uso indiscriminado e massivo de antipsicóticos, ainda nos comportamos como se a ciência confirmasse a eficácia e a segurança do tratamento com antipsicóticos. Já em 1979, a Organização Mundial da Saúde (OMS), em um estudo sobre os resultados com o tratamento da ‘esquizofrenia’, mostrava a correlação entre a baixa confiança na medicação com antipsicóticos e recuperação, concordando com o que vinha sendo demonstrado em Soteria. Enquanto que mais do que ¾ dos indivíduos de sociedades do terceiro-mundo diagnosticados como “esquizofrênicos” estiveram ou recuperados ou levando suas vidas de um modo relativamente saudável após cinco anos do seu diagnóstico, apenas 25 %, quer dizer, ¼ de tais pacientes em países ricos desfrutavam um nível similar de sucesso. Uma segunda investigação da OMS, feita porque pesquisadores desacreditavam os resultados, dizendo que eles contrariavam o esperado, concluiu os mesmos achados [4] [5].

A propósito, destaco essa longa citação do que Mosher disse em 1979:

Nós vivemos em uma cultura sobre-medicada, muito frequentemente dependente de drogas, apesar da ambivalência resolvida ao se criar duas categorias de drogas: as boas, como álcool, e as más, como o LSD. A atitude da Psiquiatria não é diferente do que aquela do contexto social mais amplo: nós ainda estamos procurando por uma resposta mágica de uma pílula. As drogas antipsicóticas têm posto nas mãos dos psiquiatras uma substância real para a fantasia deles de cura mágica aplicada à esquizofrenia. Mas, como costuma ocorrer com a maioria das expectativas exageradas, a fantasia é melhor do que a realidade. Após duas décadas, está agora claro que as drogas antipsicóticas não curam a esquizofrenia. Está também claro que elas têm sérias, algumas vezes toxicidades irreversíveis (…) que a recuperação possa ficar prejudicada por elas, pelo menos para alguns esquizofrênicos (…) e que elas têm pouco efeito em longo-prazo no ajustamento psicossocial  (…) Essas críticas não negam a sua extraordinária ajuda na redução e controle de sintomas, diminuindo o tempo de internação, e revitalizando o interesse na esquizofrenia. Uma das metas do projeto Soteria é procurar uma alternativa viável bem informada com relação ao uso exagerado dessas drogas e a excessiva confiança nessas drogas, com frequência excluindo as medidas psicossociais. Nós usamos raramente drogas e, quando prescritas, elas estão primariamente sob o controle individual do residente (do paciente). Quer dizer, a ela/ele é solicitado que monitore cuidadosamente as suas respostas à droga para nos dar um feedback, para que assim nós possamos ajustar a dosagem, e , após um período de ensaio de duas semanas, a ele/ela é dado o papel principal de determinar se ele/ela irá continuar a usar as drogas.

– Mosher & Menn, 1979, p. 73 –

Muitos artigos escritos por Mosher e colegas com os resultados da experiência foram publicados, recomendo que pelo menos este aqui seja lido.

E para se conhecer melhor toda a fascinante história de Soteria, recomendo este livro aqui.

E Loren Mosher, explicando o paradigma Soteria. Clique aqui.

Referências bibliográficas citadas:

[i] Jenner, FA, Monteiro ACD, Zagalo-Cardoso JA, Cunha-Oliveira JA. Schizophernia: a disease or some ways of being human? Sheffield, UK: Sheffield University Press, 1993.

[2] Mosher, I. R. (1972). Research design to evaluate psychosocial treatments of schizophrenia. In D. Rubinstein & Y. O. Alanen (Eds.), Psychotherapy of Schizophrenia, (251-260). Amsterdam: Excerpta Medica Foundation.

[3] Mosher, I. R., Menn, A. Z. & Matthews, S. M. (1975). Soteria: Evaluation of a home-based treatment for schizophrenia. Americans Journal of Orthopsychiatry, 45 (3): 455-467.

[4] Jablenski, A. (1992). Schizophrenia: manifestations, incidence, and course in different cultures: a World Health Organization ten-country study. Psychological Medicine, Suppl. 20, 1-95.

[5] Leff, J. (1992). The international pilot study of schizophrenia”: five-year follow-up findings. Psychological Medicine, 22, 131-145.

[6] Mosher, L. R., & Menn, A. Z. (1979). Soteria: An Alternative to hospitalization for schizophrenia. New Directions for Mental Health Services, I, 73-83.

 

Irving Kirsch: O efeito Placebo e o que ele nos informa sobre a eficácia do antidepressivo

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James MooreEsta semana tive a honra de entrevistar o Dr. Irving Kirsch. O Dr. Kirsch é Diretor Associado do Programa em Estudos de Placebo e professor de medicina na Harvard Medical School e na Beth Israel Deaconess Medical Center. Ele também é Professor Emérito de Psicologia da Universidade de Plymouth e da Universidade de Hull no Reino Unido e da Universidade de Connecticut nos EUA. Ele publicou 10 livros e mais de 250 artigos de revistas científicas e capítulos de livros sobre efeitos placebo, medicação antidepressiva, hipnose e sugestão. Ele originou o conceito de expectativa de resposta. Suas meta-análises sobre a eficácia dos antidepressivos tiveram ampla cobertura na mídia internacional e influenciaram as diretrizes oficiais para o tratamento da depressão no Reino Unido. Seu livro de 2009, The Emperor’s New Drugs: Exploding the Antidepressant Myth, foi selecionado para o prestigiado prêmio Mind Book of the Year e foi o tema do famoso programa 60 Minutes na CBS e foi capa na Newsweek com uma matéria de 5 páginas.

Nesta entrevista com o Dr. Kirsch, é discutido o efeito placebo e a eficácia das drogas utilizadas para a depressão.

A seguir, um pequeno resumo do conteúdo da entrevista:

  • Como, como estudante de graduação, o Dr. Kirsch se interessou pela terapia comportamental, mas que duvidou da lógica por trás dessas abordagem;
  • Que isso despertou nele um interesse pelas crenças que as pessoas tinham e passou a pesquisar o efeito placebo;
  • Como, ao trabalhar na Universidade de Connecticut, sua pesquisa sobre o placebo o levou a se interessar na eficácia das drogas antidepressivas quando comparadas ao placebo;
  • Como seu trabalho o levou à conclusão surpreendente de que, se há medicamentos antidepressivos, o efeito placebo seria tão grande que haveria muito pouco espaço para um efeito significativo da droga propriamente dita;
  • Como isso alterou os pontos de vista do Dr. Kirsch sobre drogas antidepressivas, fazendo com que ele perguntasse se os riscos valiam o pequeno benefício para pacientes deprimidos;
  • Que a crença de uma pessoa pode afetar a sua resposta a um medicamento de forma positiva (placebo) ou de forma negativa (nocebo);
  • O Dr. Kirsch descobriu que existem muitas condições em que o placebo pode mostrar o seu efeito profundo, incluindo depressão, ansiedade, síndrome do intestino irritável, dor, doença de Parkinson e asma;
  • Que o placebo tende a ter um efeito maior em condições que possuem um grande componente psicológico, como em distúrbios funcionais;
  • Esse placebo pode ter um efeito, mesmo que o paciente saiba que eles estão tomando um comprimido inativo, e que parte dessa resposta está abaixo do condicionamento clássico;
  • Que o Dr. Kirsch está trabalhando em “placebo aberto” sendo capaz de prescrever placebo para pacientes sem que haja decepção;
  • Que o Dr. Kirsch estava acostumado a encaminhar pacientes deprimidos para tratamentos antidepressivos, mas que sua pesquisa o deixou descrente quando passou a observar a evidência de eficácia quando comparada ao placebo;
  • Como é que quando você dá a alguém um novo tratamento, isso muitas vezes irá contrariar os sentimentos de desesperança que caracterizam as experiências depressivas;
  • Que, ao analisar o tamanho desse efeito, deixou claro que a diferença entre a resposta ao placebo e a resposta antidepressiva era tão pequena que não era clinicamente significativa;
  • Que mesmo drogas com modos de ação muito diferentes resultaram em respostas praticamente idênticas em pacientes, por exemplo, Tianeptine, que é um SSRE (potenciador selectivo da recaptação de serotonina) e diminui os níveis de serotonina entre os neurônios, esse medicamento deveria piorar as pessoas deprimidas, mas mostrou a mesma eficácia que os antidepressivos ISRS;
  • Como, ao analisar os ensaios clínicos utilizados para demonstrar a eficácia do antidepressivo, ficou claro que a natureza óbvia dos efeitos adversos provocados por antidepressivos significava que os participantes do ensaio freqüentemente “quebrariam” o duplo cego, e que saberiam se estavam no grupo de drogas ativas ou no grupo placebo, isso naturalmente influenciando radicalmente os resultados do julgamento;
  • Que, em um pequeno número de estudos, utilizou-se um placebo ativo, que era uma substância que imitava os efeitos colaterais da droga ativa, sem ter nenhum efeito clínico;
  • Que nesses estudos ativos de placebo, se estava muito menos propenso a obter uma diferença significativa entre o fármaco e o placebo, quando comparado aos ensaios que usavam um placebo interno;
  • Que os ensaios realizados por fabricantes farmacêuticos são projetados para mostrar sua droga na melhor perspectiva possível e, portanto, não usam placebo ativo em seus estudos;
  • Que o Dr. Kirsch está convencido que, ao se realizar ensaios para medicamentos utilizados para a depressão, os pacientes devem ser solicitados no início do estudo se pensam estar no grupo ativo ou no grupo de placebo, e que esta questão ajudaria a garantir que os ensaios fossem confiáveis;
  • Como, ao usar os dados de ensaios não publicados, a diferença entre o efeito placebo e o efeito do medicamento foi ainda menor;
  • Como o Dr. Kirsch ficou satisfeito que outros pesquisadores tenham encontrado suas conclusões controversas, o que significava que eles estavam prestando atenção ao estudo, e que outros que replicaram a abordagem encontraram resultados semelhantes;
  • Que influenciar os médicos para que equilibrem melhor risco versus benefício levará tempo, e que precisamos compartilhar os dados e discutir as conclusões tanto quanto possível para permitir que as mudanças aconteçam;
  • Que as pessoas precisam de ajuda com a depressão e que existem muitas intervenções diferentes que são pelo menos tão eficazes quanto os antidepressivos, mas sem os riscos a estes associados;
  • Como não podemos inferir que a prescrição “fora do rótulo” seja eficaz, até que  estudos tenham sido realizados para um transtorno específico.

Links Relevantes:

Dr Irving Kirsch

The Emperor’s New Drugs: Exploding the Antidepressant Myth

The Emperor’s New Drugs: Exploding the Antidepressant Myth (video)

60 Minutes: Treating Depression: Is there a placebo effect? (video)

Antidepressants and the Placebo Effect

Initial Severity and Antidepressant Benefits: A Meta-Analysis of Data Submitted to the Food and Drug Administration

A LEI 13.438 É UM RISCO À SAÚDE DAS CRIANÇAS

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maria-aparecida

Em 26 de abril de 2017, foi sancionada a Lei 13.438, com o seguinte texto:

Art. 1° O art. 14 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), passa a vigorar acrescido do seguinte § 5°:

“Art. 14. ……………………………………………………………………………………..

§ 5° É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico.” (NR)

Sob a aparente boa intenção de proteger e cuidar da primeira infância, desfere- se grave ataque às crianças e suas famílias, aos profissionais da área de saúde da criança, à pediatria, às políticas de atenção à saúde das crianças e, por fim, ao Sistema Único de Saúde.

Desvelam-se, ainda, as crescentes judicialização e patologização da vida.

Uma lei determinando que se realize uma ação técnica no interior das consultas pediátricas? Sob quais justificativas? Sustentada em quais embasamentos teóricos? O Ministério da Saúde (MS) e suas respectivas áreas estão falhando em definir normas, procedimentos, estratégias para melhorar a saúde infantil? Ainda, uma lei que é aprovada e sancionada apesar dos pareceres contrários das áreas específicas do MS? Será por isso que não é assinada pelo Ministro da Saúde mas sim pelo Ministro da Justiça?

Uma lei impondo a aplicação de screening universal no campo da saúde mental, já tão atingido pelos processos medicalizantes? Por que a preocupação exclusiva com o desenvolvimento psíquico, e não com o desenvolvimento integral da criança? Por que a marca temporal dos 18 meses? Após essa idade, não existem mais riscos psíquicos?

Essas são algumas das inquietações desencadeadas pela lei, perguntas que devem ser respondidas, aliás que deveriam ter sido respondidas se sua tramitação tivesse, minimamente, respeitado parâmetros democráticos e diálogo com pesquisadores da área, instituições de ensino superior, fóruns intersetoriais, entidades de pediatria e da psicologia e outras. Porém, como os interessados em sua aprovação optaram pelo trâmite veloz e na surdina (aproximadamente 30 dias entre desarquivar um PL parado há anos e sua aprovação), não houve espaço para questionamentos a tempo.

Porém, não se cala o questionamento nem se impede a luta desse modo. Ao contrário, retrocessos apenas nos lembram que só existem porque já havíamos avançado e, como ensinam várias culturas, inclusive a indígena, se já avançamos antes, podemos avançar de novo. [1]

A Pediatria, como campo científico, tem evoluído muito nas últimas décadas, avançando em conhecimentos gerais e específicos, em diferentes áreas (especialidades e sub-especialidades) e na sistematização desses conhecimentos em normatizações e guidelines.

Esta evolução tem-se refletido na participação na construção de políticas de atenção à saúde da criança e do adolescente cientificamente embasadas e devidamente contextualizadas, articuladas com outras áreas de conhecimento e, em especial, com as políticas públicas e o “já construído”.

Também a formação dos pediatras se modificou bastante nesse período, em um movimento que busca a especialização mas, em contraste com as demais áreas da medicina, ainda busca manter a formação generalista como eixo fundamental, para que a criança e o adolescente sejam vistos em sua integralidade. Daí, decorre que todo pediatra deve ser capaz de avaliar e acompanhar qualquer criança em relação às ações em cuidados primários de saúde preconizadas na Declaração de Alma Ata [2]: acesso a alimentação e saneamento básico; estado nutricional; imunização; crescimento e desenvolvimento; doenças de maior prevalência na idade.

Esta evolução do campo científico e o compromisso com a qualidade de vida e de atenção à saúde pode ser rapidamente identificada pela evolução da política de atenção à saúde da criança e do adolescente nos marcos legais do SUS e do ECA.

Tomemos, como referenciais recentes de análise, três documentos oficiais da União: a Caderneta de Saúde da Criança, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC) e o Marco Legal da Primeira Infância.

1. CADERNETA DE SAÚDE DA CRIANÇA (CSC)

A Caderneta de Saúde da Criança (CSC) foi implantada pelo Ministério da Saúde em 2005 para substituir o Cartão da Criança – em que somente constavam as vacinas recebidas-, e reúne o registro dos mais importantes eventos relacionados à saúde infantil. Além do cartão de vacina, a Caderneta apresenta o registro da história obstétrica e neonatal; indicadores de crescimento e desenvolvimento; aspectos importantes da alimentação como aleitamento materno e uso de sulfato ferroso e vitamina A; dados sobre saúde bucal, auditiva e visual; intercorrências clínicas; além de orientações para a promoção da saúde e prevenção da ocorrência de acidentes e violência doméstica.

A CSC é destinada a todos os nascidos em território brasileiro, e, por basear-se em ações de acompanhamento e promoção da saúde, inclui-se como estratégia privilegiada nas políticas de redução da morbimortalidade infantil.[3]

A CSC é composta por duas partes, uma a ser preenchida pelos profissionais com dados relevantes para o monitoramento da saúde de cada criança em particular e outra com informações e orientações relevantes para os cuidadores e vem sendo atualizada e aperfeiçoada em sucessivas edições.

Na edição de 2005 [4], o reconhecimento da importância da participação dos familiares no acompanhamento da criança se revela em orientações como:

  • Conversar e brincar com o bebê desde o nascimento é muito importante para que ele se desenvolva bem.
  • Acompanhe o desenvolvimento de sua criança.
  • Anote a idade da criança à medida que ela se desenvolve. Escreva também outras coisasque você observou que o seu filho ou filha já está fazendo.
  • Se achar que sua criança não está desenvolvendo como você espera, fale sobre isso com um profissional de saúde.

Em intervalos regulares (até os 2 meses, 2 a 4 meses, 4 a 6 meses, 6 a 9 meses, 9 a 12 meses, 1 ano a 1 ano e 6 meses, …) que refletem conhecimentos sobre marcos importantes para o desenvolvimento da criança, existem espaços para anotar o aparecimento de indicadores de desenvolvimento, acompanhados de orientações simples para os cuidadores sobre como lidar com a criança com afeto, auxiliando seu desenvolvimento:

  • 9 a 12 meses: Aproveite os momentos de cuidados com seu bebê (banho, troca de fraldas) para conversar e brincar com ele.
  • 1 ano e 6 meses a 2 anos: Sua criança já sabe o que é dela e o que é de vocês, mas quer ter o controle sobre tudo. É importante que vocês se sintam seguros em não satisfazer todas as vontades de seu filho ou filha.

Com orientações também sobre medidas reconhecidamente úteis para a segurança da criança:

  • Mantenha a criança longe de fogo, fogão, aquecedor e ferro elétrico.
  • Redobre a atenção. Produtos de limpeza, inseticidas e remédios devem ser guardadossempre em armários fechados e em lugar alto.
  • Verifique se o tanque está bem fixo, para evitar que ele caia sobre a criança e causelesões graves.

Na 10a. edição, de 2015 [5], o Sumário já indica a ampliação da CSC; as anotações de dados da criança pelos profissionais são mais detalhadas e revelam o embasamento no avanço científico; as orientações para os familiares são ainda mais abrangentes e respeitosas com a criança, a família e a comunidade.

Logo nas primeiras páginas, destacam-se orientações de grande relevância

A primeira parte é dedicada a quem cuida da criança. Contém informações e orientações para ajudar a cuidar melhor da saúde da criança. Apresenta os direitos da criança e dos pais, orientações sobre o registro de nascimento, amamentação e alimentação saudável, vacinação, crescimento e desenvolvimento, sinais de perigo de doenças graves, prevenção de acidentes e violências, entre outros.

A segunda parte é destinada aos profissionais de saúde, com espaço para registro de informações importantes relacionadas à saúde da criança. Contém, também, os gráficos de crescimento, instrumento de vigilância do desenvolvimento e tabelas para registros das vacinas aplicadas.

Converse com o profissional de saúde, tire suas dúvidas e peça orientações para que a criança cresça e se desenvolva bem.

Para que a criança cresça e se desenvolva bem, é fundamental comparecer à unidade de saúde para fazer o acompanhamento do seu crescimento e desenvolvimento.

Nas consultas de rotina, peça orientações sobre os cuidados necessários para que a criança tenha boa saúde e esclareça as suas dúvidas

Logo após o cronograma de consultas de rotina recomendado pelo Ministério da Saúde, o alerta:

Algumas crianças necessitam de maior atenção e devem ser vistas com maior frequência.

Destacamos, aqui, uma orientação fundamental para que a CSC atinja seu objetivo de possibilitar a avaliação contínua da criança: ela precisa ser preenchida e os cuidadores são convidados a participarem ativamente.

Solicite ao profissional de saúde que preencha a Caderneta de Saúde. Esse é um direito da família e da criança. (grifo nosso)

Esta orientação é enfatizada mais de uma vez:

É importante que o profissional de saúde anote as informações de cada consulta nos espaços próprios desta caderneta.

Retomaremos este ponto mais adiante.

A CSC em sua 10a. Edição revela a importância dada à avaliação e monitoramento do desenvolvimento de cada criança de modo bastante evidente: na parte inicial, destinada aos cuidadores, existem 5 páginas sobre desenvolvimento neuropsicomotor infantil, com orientações simples; na parte destinada aos profissionais, existem 8 páginas com orientações sobre desenvolvimento infantil e sua avaliação, 2 páginas sobre desenvolvimento em crianças com síndrome de Down e 1 página sobre autismo (reproduzida a seguir).


Autismo

Especial atenção deve ser dada aos sinais de autismo, pela sua elevada incidência e também pelo frequente diagnóstico tardio, comprometendo o tratamento e o prognóstico.

A detecção precoce do autismo é fundamental para a imediata intervenção. Até o momento, inexistem exames laboratoriais ou marcadores biológicos para a identificação do autismo, a qual se dá pela avaliação do quadro clínico e pela observação do comportamento.

O autismo aparece, tipicamente, antes dos 3 anos de idade e caracteriza-se por desvios qualitativos na comunicação, na interação social e no uso da imaginação. As crianças com autismo, quando crescem, desenvolvem habilidades sociais em extensão variada.

No caso de suspeita, é importante orientar os pais/cuidadores e encaminhá-los para locais que possam fazer o diagnóstico e o tratamento.

Sinais de Autismo

Alterações do sono variáveis e inespecíficas.

Indiferença em relação aos cuidadores, ausência de sorriso social, desconforto quando acolhido no colo e desinteresse pelos estímulos oferecidos (brinquedos por exemplo).

Ausência de atenção compartilhada (não compartilham o foco de atenção com outra pessoa) e de contato visual (não estabelecem contato “olhos nos olhos”).

Comportamentos estereotipados (mexer os dedos em frente aos olhos, movimentos repetitivos da cabeça e/ou de antebraços e mãos, andar nas pontas dos pés descalços, balanço do tronco).

Ausência de resposta ao chamado dos pais/cuidadores, aparentando surdez.

Aversão ao contato físico (a criança evita relacionar-se com pessoas desde o início da vida).

Ausência de reação de surpresa ou dificuldade para brincar de “faz de conta”. Hipersensibilidade a determinados tipos de sons.
Ecolalia – repetição imediata ou tardia de palavras ou frases.
Tendência ao isolamento, autoagressão, inquietação, comportamentos estranhos. Interesses circunscritos (às vezes, gosta de girar objetos).

Em alguns casos, presença de habilidades especiais (matemáticas, musicais e plásticas).


 

A CSC cumpre, assim, em sua estrutura, a proposta de ser uma estratégia privilegiada nas políticas de redução do adoecimento e da mortalidade infantil, exatamente por se basear em ações de acompanhamento e promoção da saúde.

Devemos destacar que os diagnósticos na infância, em especial nos campos de crescimento e desenvolvimento, são, na grande maioria dos casos, dinamicamente provisórios, alterando-se muito rapidamente, o que impõe a necessidade de acompanhamento cuidadoso de como evolui cada criança em particular, exigindo cautela em evitar diagnósticos rígidos e prematuros. Apenas a título de exemplo, Gisela Untoiglich, reconhecida psicanalista argentina, docente da Universidad de Buenos Aires, assim intitulou um de seus livros mais recentes [6], coletânea de textos de autores de diferentes países: En la infancia, los diagnósticos se escriben con lápiz.

A avaliação de crescimento e desenvolvimento não se faz em uma única consulta, mas é construída longitudinalmente, com o acompanhamento continuado; em caso de dúvida, a próxima avaliação deve ser antecipada. A atenção à saúde se baseia em normas e guidelines cientificamente embasados e, por isto mesmo, flexíveis de acordo com os resultados encontrados.

A elaboração da CSC se baseia exatamente neste conhecimento já bem estabelecido na Pediatria em todo o mundo. Com indicadores bem fundamentados de desenvolvimento e orientações para o profissional sobre como pesquisar, vai-se construindo um gráfico de seguimento longitudinal das conquistas da criança em seu desenvolvimento.

A CSC prevê, ainda, diferentes possibilidades desse gráfico longitudinal de desenvolvimento e orienta o profissional sobre a conduta a ser seguida, como se vê na figura abaixo.

avaliação de desenvolvimento

Devemos, então perguntar: se a CSC constitui instrumento tão valioso para a atenção à saúde da criança, por que a identificação de problemas no desenvolvimento – físico, mental, cognitivo – tem sido tão atrasada? Por que crianças com visão ou audição subnormal demoram tanto a serem identificadas? Por que crianças com deficiência mental importante não são diagnosticadas em tempo adequado?

A resposta, infelizmente, é simples: os profissionais não anotam regularmente os dados na CSC.

Ainda são relativamente poucas as pesquisas sobre este tema, mas todas revelam que o preenchimento de dados é bastante precário; em consequência da desvalorização da CSC por parte dos profissionais (notadamente médicos e enfermeiros), as famílias tendem a não terem ainda incorporado a CSC como um direito da criança e instrumento de qualificação da atenção à saúde. Destacamos duas pesquisas mais recentes. Em 2014, Palombo et cols. [7] encontraram que apenas 9 e 8% das CSC tinham, respectivamente, os gráficos de crescimento e desenvolvimento preenchidos. Em 2016, Lima et cols. [8] revisaram a bibliografia sobre o uso da CSC na atenção à saúde de crianças e também relatam a precariedade das anotações e, consequentemente, do uso da CSC, sendo um dos motivos o perfil dos profissionais diante da relevância do instrumento, concluindo ser imprescindível sua capacitação e sensibilização.

Em revisão sistemática do uso da CSC por pesquisadores ligados ao IFF (Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira), publicada em 2015, os autores destacam a importância da CSC como estratégia de qualificar a atenção à saúde da criança – e, logicamente, qualificar a própria saúde das crianças – e seu baixo uso pelos profissionais.

Outro problema evidenciado nesta revisão é o baixo resultado no preenchimento do quadro de acompanhamento dos marcos de desenvolvimento da criança. A ação de vigilância consiste em fazer sistematicamente exame físico, avaliação neuropsicomotora de maneira minuciosa, identificação da presença de fatores de risco e registro na CSC de todos os procedimentos feitos na criança, bem como dos achados das consultas. Essa ação constitui uma modalidade de intervenção preventiva que compreende atividades relacionadas à promoção do desenvolvimento normal e à detecção de problemas nesse processo. (Almeida et als, 2015). [9]

Recentemente, no dia 12 de setembro de 2017, foi realizado o Seminário de Apresentação de Resultados dos Projetos da Caderneta de Saúde da Criança, organizado pelo IFF (Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira), Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e Ministério da Saúde, com apresentação de dados detalhados de pesquisa empírica realizada por essas pesquisadoras do IFF, desenhada a partir da revisão sistemática descrita acima.

Um dos dados apresentados, sobre o preenchimento de dados sobre crescimento e desenvolvimento na CSC corrobora as pesquisas citadas.

Na população estudada, abrangendo todas as regiões do país, encontrou-se que apenas 9,9% das cadernetas tinham anotações relativas à vigilância do desenvolvimento infantil.

Entende-se, então, a ênfase dada na CSC a seu adequado preenchimento, como destacamos anteriormente, neste texto.

É internacionalmente reconhecido que a qualidade da anotação em prontuários (e em instrumentos como a CSC) reflete diretamente a qualidade da consulta.

O profissional ética e cientificamente comprometido com a atenção à saúde da pessoa à sua frente sabe que suas anotações qualificam os atendimentos, especialmente em consultas ambulatoriais, de seguimento, como acontece na Atenção Básica. Se o profissional não se preocupa em anotar corretamente seus achados, hipóteses diagnósticas, condutas, plano terapêutico, esse seu descompromisso com o seguimento da pessoa se reflete também na qualidade da atenção prestada.

Elaborar estratégias de formação e sensibilização dos profissionais, aqui os pediatras em especial, para a importância de anotar corretamente seus achados e propostas constitui estratégia de qualificar a atenção à saúde de crianças.

É exatamente isto que os dois outros documentos oficiais que tratamos neste texto buscam atingir.

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC)

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC)foi instituída no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) em 5 de agosto de 2015, pela Portaria No 1.130, do Ministério da Saúde. [10]

Como portaria ministerial, a PNAISC situa-se hierarquicamente superior à CSC, um manual técnico, estabelecendo normas legais para qualificar a atenção à saúde da criança.

Alguns de seus artigos merecem ser destacados, na medida em que preveem estratégias e ações que devem ser implantadas em todo o território nacional, incluídas aqui as relativas a desenvolvimento infantil. Ressalte-se o embasamento na concepção de que saúde, em todos os seus aspectos, é socialmente determinada e a atenção aos agravos deve ser feita de modo integrado e articulado, respeitando o dado inegável de que a criança que sofre o agravo é um ser integral, não passível de ser abordada, avaliada ou cuidada em “partes” artificialmente construídas.

Art. 6° A PNAISC se estrutura em 7 (sete) eixos estratégicos, com a finalidade de orientar e qualificar as ações e serviços de saúde da criança no território nacional, considerando os determinantes sociais e condicionantes para garantir o direito à vida e à saúde, visando à efetivação de medidas que permitam o nascimento e o pleno desenvolvimento na infância, de forma saudável e harmoniosa, bem como a redução das vulnerabilidades e riscos para o adoecimento e outros agravos, a prevenção das doenças crônicas na vida adulta e da morte prematura de crianças, a seguir relacionados:


III – promoção e acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento integral: consiste na vigilância e estímulo do pleno crescimento e desenvolvimento da criança, em especial do “Desenvolvimento na Primeira Infância (DPI)”, pela atenção básica à saúde, conforme as orientações da “Caderneta de Saúde da Criança”, incluindo ações de apoio às famílias para o fortalecimento de vínculos familiares;

VI – atenção à saúde de crianças com deficiência ou em situações específicas e de vulnerabilidade: consiste na articulação de um conjunto de estratégias intrassetoriais e intersetoriais, para inclusão dessas crianças nas redes temáticas de atenção à saúde, mediante a identificação de situação de vulnerabilidade e risco de agravos e adoecimento, reconhecendo as especificidades deste público para uma atenção resolutiva;

A PNAISC, como se vê, revela a atenção que deve ser dada à avaliação contínua do crescimento e desenvolvimento de cada criança, que devem ser continuamente monitorados, com orientações adequadas aos cuidadores para que riscos e alertas identificados nessa vigilância possam ser superados ou minimizados.

O inciso IV trata especificamente da atenção à saúde de crianças com deficiências, estabelecendo firmemente que deve ser articulada de modo intra e intersetorial, regionalizada e hierarquizada. Isto reflete seu embasamento na própria concepção do SUS, internacionalmente reconhecida como fundamental para o sucesso de uma política de saúde voltada à qualidade de vida de toda a população.

O artigo 9°. enfatiza, novamente, a importância estratégica do acompanhamento continuado do crescimento e desenvolvimento integral (grifo nosso) e o papel fundamental da CSC para sua qualificação.

Art. 9° São ações estratégicas do eixo de promoção e acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento integral:
I – a disponibilização da “Caderneta de Saúde da Criança”, com atualização periódica de seu conteúdo;

II – a qualificação do acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da primeira infância pela Atenção Básica à Saúde;

É impossível pensar em políticas de atenção à saúde universalizadas e com qualidade se não forem enraizadas na concepção de articulação, regionalização e hierarquização. O Art. 14o fortalece a concepção de que a atenção à saúde se organiza de modo articulado entre os diferentes níveis de atenção e redes temáticas, sempre a partir da atenção básica.

Art. 14. A PNAISC se organiza a partir da Rede de Atenção à Saúde e de seus eixos estratégicos, mediante a articulação das ações e serviços de saúde disponíveis nas redes temáticas, em especial aquelas desenvolvidas na rede de saúde materna neonatal e infantil e na atenção básica, esta como coordenadora do cuidado no território.

A PNAISC, assim, em 2015 estabeleceu firmemente a importância de que todas as crianças sejam acompanhadas na rede de atenção básica, com monitoramento continuado de seu crescimento e desenvolvimento, com o uso adequado da CSC, ou seja, anotação completa de todos os dados solicitados.

3. MARCO LEGAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA

Em 8 de março de 2016, foi promulgada a Lei No. 13.257 [11], conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, que “Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância (…)”

Já no Art. 3° se afirma a preocupação e compromisso do Estado com o desenvolvimento integral de todas as crianças em território nacional.

Art. 3° A prioridade absoluta em assegurar os direitos da criança, do adolescente e do jovem, nos termos do art. 227 da Constituição Federal e do art. 4o da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, implica o dever do Estado de estabelecer políticas, planos, programas e serviços para a primeira infância que atendam às especificidades dessa faixa etária, visando a garantir seu desenvolvimento integral.

O Art. 4° estabelece marcos legais para as políticas públicas voltadas à primeira infância: respeito a diferenças entre as crianças, notadamente em relação a ritmos e tempos de desenvolvimento; respeito aos contextos sociais e culturais da criança e de seu grupo social, assumindo esses contextos como condicionantes e facilitadores do desenvolvimento infantil; importância de os conhecimentos científicos e tecnológicos não se pretenderem neutros e absolutos, mas enraizados nas construções humanas, devendo se articular com outros campos de conhecimento e com a ética e a política. Mais uma vez, se enfatiza a necessidade imperiosa de ações articuladas entre diferentes áreas e setores.

Art. 4° As políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos da criança na primeira infância serão elaboradas e executadas de forma a:

III – respeitar a individualidade e os ritmos de desenvolvimento das crianças e valorizar a diversidade da infância brasileira, assim como as diferenças entre as crianças em seus contextos sociais e culturais;

12 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm

V – articular as dimensões ética, humanista e política da criança cidadã com as evidências científicas e a prática profissional no atendimento da primeira infância;

VII – articular as ações setoriais com vistas ao atendimento integral e integrado;

Mais adiante, o Marco Legal firma a obrigatoriedade legal de que as políticas para a primeira infância sejam articuladas com as instituições de formação profissional, reconhecendo que uma lei somente se torna real se se concretiza nos espaços onde acontece o objeto sobre o qual legisla. No caso das políticas de atenção à saúde de crianças, a legislação deve alterar os modos de funcionamento e práticas profissionais que se realizam na rede de atenção primária, nas unidades básicas de saúde, no interior dos consultórios, no espaço de cada consulta. Para tanto, os profissionais envolvidos devem ser comprometidos com os objetivos da lei em questão; se pediatras não forem formados em consonância com o Marco Legal da 1a. Infância, a PNAISC, não avaliarem adequadamente todas as crianças em todos os aspectos envolvidos em uma consulta pediátrica, incluídos aqui crescimento e desenvolvimento, anotando corretamente em prontuários e documentos como a CSC, a lei será mais uma letra morta.

Art. 9° As políticas para a primeira infância serão articuladas com as instituições de formação profissional, visando à adequação dos cursos às características e necessidades das crianças e à formação de profissionais qualificados, para possibilitar a expansão com qualidade dos diversos serviços.

No caso das políticas de atenção à saúde de crianças, a legislação deve alterar os modos de funcionamento e práticas profissionais que se realizam na rede de atenção primária, nas unidades básicas de saúde, no interior dos consultórios, no espaço de cada consulta. Para tanto, os profissionais envolvidos devem ser comprometidos com os objetivos da lei em questão; se pediatras não forem formados em consonância com o Marco Legal da 1a. Infância, a PNAISC, não avaliarem adequadamente todas as crianças em todos os aspectos envolvidos em uma consulta pediátrica, incluídos aqui crescimento e desenvolvimento, anotando corretamente em prontuários e documentos como a CSC, a lei será mais uma letra morta.

Também, as políticas públicas de saúde devem conter a necessidade de monitoramento das pessoas atendidas, além de serem, elas mesmas, objeto de monitoramento contínuo e fiscalização, permitindo inclusive a construção de banco de dados de todas as crianças em território nacional.

Art. 11. As políticas públicas terão, necessariamente, componentes de monitoramento e coleta sistemática de dados, avaliação periódica dos elementos que constituem a oferta dos serviços à criança e divulgação dos seus resultados.
§ 1° A União manterá instrumento individual de registro unificado de dados do crescimento e desenvolvimento da criança, assim como sistema informatizado, que inclua as redes pública e privada de saúde, para atendimento ao disposto neste artigo.

A LEI 13.438 DESRESPEITA E AGRIDE CRIANÇAS, FAMÍLIAS, PEDIATRAS E O SUS

Os marcos legais estão prontos. As normas técnicas estão disponíveis. Os instrumentos existem. Mas ainda não estão de fato implementados na rede de saúde. As crianças com problemas continuam sendo identificadas – quando o são – muito tarde.

Como se resolve este problema?

Com uma nova lei, que atropela o já construído, o coletivamente construído, o científica e politicamente embasado?

A Lei 13.438 ignora tudo que já se construiu nas últimas décadas no campo de promoção e monitoramento da saúde de crianças; prepotentemente, impõe ao atendimento pediátrico na Atenção Básica uma ação que agride e desconstrói o que o campo cientifico da Pediatria vem desenvolvendo e implementando nas políticas públicas, de modo articulado com outros campos.

Em toda consulta pediátrica, deve ser avaliado o desenvolvimento da criança, no contexto de uma avaliação mais ampla, da criança como um ser integral. O desenvolvimento infantil se realiza em uma criança que precisa comer, dormir, interagir, tomar vacinas, ter acesso a saneamento básico, crescer, aprender, ser cuidada com afeto e segurança. O desenvolvimento só é um objeto estanque e abstrato em alguns textos.

Ainda, o desenvolvimento acontece de modo multifacetado: motor, sensitivo, sensorial, cognitivo, psíquico, neurológico, afetivo…

Em uma consulta pediátrica na Atenção Básica, toda criança deve ser avaliada integralmente, aí incluído seu desenvolvimento.

A criança avaliada como um ser integral, com seu desenvolvimento avaliado em suas diferentes facetas, permite que o pediatra perceba que “algo não vai bem”, que a criança não está se desenvolvendo (de acordo com o que se esperaria em suas condições concretas de vida, inserção social, cultural, geográfica, afetiva etc e não segundo tabelas e protocolos alheios à sua vida).

O que quero dizer é que uma criança com problemas em seu desenvolvimento psíquico exibe isto em todas as facetas do prisma que é seu desenvolvimento, do prisma que ela é! Exatamente do mesmo modo como alterações de sono ou de alimentação, infecções recorrentes e tantas outras patologias interferem com o desenvolvimento da criança; aliás, muitas vezes são percebidos pelas alterações no desenvolvimento.

Somos nós, profissionais e pesquisadores, que “fatiamos” as pessoas em partes, por nossa incapacidade em abarcar o todo, como se conhecer as partes nos permitisse conhecer o todo.

Retomando, a criança (ou adolescente, ou adulto) com problemas no na constituição psíquica assim como no desenvolvimento neuromotor, reflete isto em todas as áreas de sua vida. Problemas no desenvolvimento psíquico se manifestam como problemas no desenvolvimento, ou melhor, como “um desenvolvimento que não se desenvolve bem”. Ou seja, um pediatra bem formado, saberá avaliar uma criança em sua integralidade e será competente para identificar quando ela não vai bem, quando ela exibe sinais de alerta, quase como pedindo ajuda.

O pediatra detecta não risco psíquico, mas sinais de sofrimento psíquico, algo diferente de patologia mental, mas que precisa de intervenções adequadas capazes de alterar seu curso, sua evolução.

Detectado qualquer sinal de alerta, deve-se proceder à investigação mais específica, diminuindo os intervalos entre as consultas e referenciando a criança a especialistas, se necessário.

É importante ainda, destacar, que avaliar risco psíquico exige, obrigatoriamente, uma formação mais aprofundada no campo, pois implica em dominar conhecimentos sobre a própria instituição subjetiva do ser. Um campo de conhecimentos muito importante, mas que extrapola a formação do pediatra sem nenhum demérito para ele. Mas também um campo de conhecimentos e práticas que extrapola o que se preconiza na Rede de Atenção Primária à Saúde.

Impor, por um mecanismo de lei, não discutido com nenhuma instância vinculada ao tema, que se aplique determinado instrumento para avaliar uma área especifica do desenvolvimento infantil constitui desrespeito com o pediatra, com a criança, com a família, com os gestores políticos, com as agências formadoras, com pesquisadores. Mas, acima de tudo, denota a arrogância e o desconhecimento do que seja uma consulta pediátrica e uma rede pública de saúde e quais os reais entraves para que todo o já construído (CSC, PNAISC, Marco Legal e muitos outros) transformem a realidade da detecção tardia.

Se for realizado o imposto pela Lei 13.438, privilegiando a avaliação de risco psíquico em detrimento de todas as demais ações de uma consulta pediátrica, isto implicará em deixar de avaliar a criança como sujeito integral, o que ela come, como dorme, como está o cocô, se está crescendo bem, se brinca com outras crianças, se é bem cuidada, se seus olhos brilham ou trazem embutido um pedido de socorro, se tomou as vacinas e tantas outras coisas que vão sendo construídas e pactuadas em cada consulta, na relação do pediatra com o cuidador, com a criança, com a comunidade sob seus cuidados.

Enfatizo que ele deixará de fazer isto não por maldade ou vingança, mas pela dinâmica da rede de saúde, pelo tempo que ele pode dispor para cada consulta, pelo tempo que a mãe pode dispor, pelo tempo que a criança pode aguentar no consultório.

Então, se obrigado por lei, ele priorizará a avaliação do risco psíquico – para a qual, como já dito anteriormente não tem formação específica, o que se afirmará resolver com treinamentos aligeirados, caros e ineficientes – em detrimento da avaliação da criança.

Assim, entrará no consultório, uma-criança-potencialmente-portadora-de-risco- psíquico, não a criança. A Mariazinha, o Pedrinho, o Joãozinho, a Rosinha serão tornados invisíveis, somente o risco psíquico será visível.

Tal risco será, assim, obrigatoriamente avaliado em crianças abstratas, pois a criança real, de carne e osso, com necessidades, desejos, problemas, possibilidades, sofrimentos, não será nem vista nem ouvida. Tal lei conseguirá, assim, a proeza de abstrair a criança real, tirando a vida de cena.

Ainda, tal lei provocará uma epidemia de diagnósticos de risco psíquico, com resultados duplamente cruéis: crianças com risco psíquico real não serão identificadas na avalanche de encaminhamentos e continuarão não sendo diagnosticadas e cuidadas em tempo adequado; crianças normais ou com outros problemas serão rotuladas com esse diagnóstico, em conhecido processo de patologização da vida.

O argumento de que os protocolos não farão diagnósticos, mas identificarão riscos é reconhecida e repetidamente falacioso. Usado sempre que se propõe triagens como essa, busca escamotear que será, sim, feito um diagnóstico, o diagnóstico de risco psíquico, a ser carregado por toda a vida. Como carimbo indelével, será a justificativa para todos os problemas que venham a acontecer na vida da criança, mesmo que decorrentes dos modos de organização da sociedade.

O diagnóstico de risco rapidamente se transforma em diagnóstico de uma patologia, o risco é transformado em doença. E aí, se cria a demanda, artificialmente construída, por serviços especializados no tratamento do risco.

Nessa previsível epidemia de diagnósticos, será impossível elaborar / financiar políticas públicas voltadas à atenção de crianças com risco psíquico. A patologização mais uma vez movimentará os moinhos da judicialização e da privatização do público.

Por fim, a pergunta necessária: quem ganha com a Lei 13.438? Quais os interesses que a subsidiam e a sustentam?

Com certeza, não são as crianças com riscos de qualquer ordem em seu desenvolvimento.

O entrave real para as políticas públicas de saúde é o sub-financiamento do SUS, atrelado à estratégia privatizante da saúde que vem sendo imposta.

Este entrave, político e ideológico, se reflete na formação dos profissionais – voltada para e pautada pelo mercado -, o que explica a existência de profissionais descompromissados com a saúde da população brasileira.

O SUS é uma conquista do povo brasileiro e não pode ser atacado, seja por agentes financeiros, seja por mecanismos legais comprometidos com outros interesses.

NOTAS DE PÉ DE PÁGINA:

[1] Davi Kopenawa, grande xamã e porta-voz dos Yanomami, ensina que o céu já caiu no passado e, se já caiu, poderá cair novamente. “A queda do céu: palavras de um xama yanomami” Davi Kopenawa e Bruce Albert São Paulo: Companhia das Letras.

[2] Documento final da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada em Alma Ata, URSS, em setembro de 1978. É considerada a primeira declaração internacional que enfatiza a importância da Atenção Primária à Saúde, exortando governos, OMS, UNICEF a buscarem com urgência estabelecer a promoção de saúde como prioridade. Disponível em http://www.who.int/publications/almaata_declaration_en.pdf,  acesso em 10/09/2017)

[3] Observatório da Saúde da Criança e do Adolescente . http://site.medicina.ufmg.br/observaped/eixos/caderneta-de-saude-da-crianca/ acesso em 10 de setembro de 2017 acesso em 10/09/201

[4] Disponível em http://189.28.128.100/nutricao/docs/geral/caderneta_saude_da_crianca.pdf acesso em 10/09/2017

[5]http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderneta_saude_crianca_menino_10ed.pdf

[6] Untoiglich, Gisela, et al. (2013) En la infancia los diagnósticos se escriben con lápiz. La patologización de las diferencias en la clínica y la educación. /266 p. Buenos Aires: Noveduc.

[7] Palombo CNT, Duarte LS, Fujimori E, Tamami A, Toriyama M Uso e preenchimento da caderneta de saúde da criança com foco no crescimento e desenvolvimento Rev Esc Enferm USP, 2014; 48 (Esp):60-7 (http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v48nspe/pt_0080-6234-reeusp-48-esp-060.pdf)

[8] Lima LG, Nobre CS, Lopes ACMU, Rolim KMC, Albuquerque CM, Araujo MAL A utilização da Caderneta de Saúde da Criança no acompanhamento infantil R bras ci Saúde 20(2):167-174, 2016 (http://periodicos.ufpb.br/index.php/rbcs/article/viewFile/21266/15747)

[9] ALMEIDA, Ana Claudia de et al . Use of a monitoring tool for growth and development in Brazilian children – systematic review. Rev. paul. pediatr., São Paulo , v. 34, n. 1, p. 122-131, Mar. 2016 Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 05822016000100122&lng=en&nrm=iso . Acesso em 10 de setembro de 2017

[10] http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2015/prt1130_05_08_2015.html

[11] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm

 

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