Antipsiquiatria – Diz O Que ?

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bburstowAo longo dos últimos dois anos, escrevi vários artigos destinados a esclarecer o termo / fenômeno “antipsiquiatria”. Para citar apenas alguns desses meus artigos, “Sobre a Antipsiquiatria“, “Antipsiquiatria Revisada” e “Lutando contra a Psiquiatria Institucional com o ‘Modelo de Desgaste ‘ ”). Este artigo é o próximo dessa série.

As questões aqui abordadas incluem: o que exatamente significa “antipsiquiatria”? E havendo mais de um significado ou referência, como você escolhe entre eles? O termo é útil ou irremediavelmente ambíguo? Pode haver antipsiquiatria sem ser abolicionista? A antipsiquiatria participa de graus, como alguém ser “muito antipsiquiatra” ou “um pouco antipsiquiatra”? E se alguém quiser acabar  com a coerção psiquiátrica apenas, isso o qualifica como antipsiquiatra?

No processo de oferecer o esclarecimento que está ao meu alcance , farei uma imersão dentro e fora da história, pois não podemos chegar a um acordo sobre este fenômeno ou se desembaraçar do emaranhado de confusões que o cercam sem investigar os desenvolvimentos históricos. Gostaria apenas de acrescentar que estou escrevendo este artigo não apenas como um teórico da antipsiquiatria, mas como alguém envolvida ativamente no ativismo antipsiquiátrico há quarenta anos.

Mais uma consideração prévia quero fazer: ao longo do texto irei escrever “antipsiquiatria” exatamente como até hoje tenho feito. Para saber mais sobre a questão do termo, veja o final deste artigo.

Para começar, o termo “antipsiquiatria” (expresso inicialmente como “anti-psiquiatria”) é uma expressão que foi inventada por um colega de Ronald Laing, Dr. David Cooper, em 1967[1] . Esse termo foi rapidamente recuperado pelas várias pessoas que conviviam com o Laing. Com o termo o que o grupo laingiano pretendia era uma abordagem diferente para “ajudar” as pessoas com os chamados problemas psiquiátricos, reformatando-os como sendo intrinsecamente problemas sociais, políticos e psicológicos, ao em vez de médicos. A filosofia existencial de Jean-Paul Sartre foi fortemente apropriada por eles [2]. Laing e Cooper também exploravam na época (e em diferentes graus) como é viver em uma comunidade terapêutica, onde as pessoas recebiam, pelo menos hipoteticamente, ajuda na sua viagem pela loucura. E é nessa mesma época que Cooper introduziu o conceito “anti-hospitalar”, assim como o conceito de “antipsiquiatria”.

Cooper era muito mais ativista do que Laing e pensava muito em termos de movimentos sociais. No entanto, o que é evidente é que mesmo com Cooper, apesar de sua legendária crítica  aos “especialistas”, o movimento que ele discutia era o movimento profissional – não um movimento vindo dos próprios oprimidos. O que também é relevante é que, apesar de quão profundamente ele se sentisse antipsiquiatra, a sua oposição à psiquiatria era à sua maneira uma oposição muda; e mais ainda, ela foi se silenciando ao longo do tempo (embora, reconhecidamente, Cooper avançasse e recuasse); e ele acabou se tornando tão “moderado” que até mesmo abandonou o termo antipsiquiatria (como pode ser visto nas memórias informativas de Stephen Ticktin “Brother Beast-A Personal Memoir of David Cooper “), quando ele voltou ao termo” não-psiquiatria ” e, alternativamente,” psiquiatria não médica “.

Agora, no que diz respeito a este último termo, tive uma conversa interessante com Ticktin sobre isso, há menos de um mês atrás, que ocorreu aproximadamente da seguinte maneira:

Ticktin: Mais tarde, David abandonou a palavra “antipsiquiatria”, usando, em vez disso, o termo mais político: “psiquiatria não médica”.

Burstow: Isso não soa para mim como mais político. Parece menos político.

Ticktin: Você acha que é menos político?

Burstow: Veja o termo. Não está anunciando oposição à psiquiatria ou mesmo à psiquiatria biológica, é simplesmente levar em conta uma forma diferente de prática. (Conversa pessoal, reunião CAPA, 3 de junho de 2017).

Irei comentar essa curiosa mudança mais tarde. Por enquanto, deixo os próprios leitores refletirem sobre como podemos entender isso.

Então, em uma sequência bastante curta, a “antipsiquiatria” (e sim, ainda soletrada por Cooper como “anti-psiquiatria”) tornou-se o léxico aceito pelos acadêmicos. No entanto, em vez de ter um significado claro, tornou-se algo como categoria de “um saco onde cabem todos”, com o termo sendo aplicado às posições de um grande número de estudiosos que criticavam substancialmente a psiquiatria, embora sob perspectivas muito diferentes. Exemplos são os teóricos tão variados como Thomas Szasz, nos EUA, e Michel Foucault, na França. O primeiro, um psiquiatra libertário de direita, que demonstrou que o próprio conceito de “doença mental” era um mito, o segundo, um filósofo francês que abordou a profissão / prática como um exemplo paradigmático do que ele chamava de “conhecimento-poder”[3]. Significativamente, enquanto que quase todos os teóricos – cujas críticas à psiquiatria impactavam fortemente nos anos 1960, 1970 e 1980, por exemplo, Szasz, Foucault, Goffman, Becker – eram agrupados sob o termo “antipsiquiatria”, e enquanto todos eles influenciaram muito outros que assim se identificavam, nenhum desses teóricos  assumiu pessoalmente o termo antipsiquiatria. Na verdade, foi o contrário: em um dos últimos livros de Thomas Szasz (2009 [4]), ele atacou especificamente o que ele via como antipsiquiatria, não apenas simplesmente se afastando dela, mas descartando-a como sendo profundamente um “charlatanismo ao quadrado”.

Dito isto, há ainda um outro público – que eu sugiro ser o mais importante – associado à palavra “antipsiquiatria”. Ele é composto por sobreviventes psiquiátricos e seus aliados, pessoas que se veem como parte de um movimento social, cujo objetivo primordial é abolir a psiquiatria. O que distingue esses ativistas (e para ser claro, eu me considero entre eles) dos indivíduos e grupos discutidos até o momento são os seguintes princípios:

  1. Eles invariavelmente combinam uma posição médica (uma posição sobre o que a ciência mostra e não mostra sobre o que está errado com as reivindicações alegadamente médicas que estão sendo apresentadas) com uma posição epistemológica (uma posição sobre como conhecemos e sobre a própria natureza do conhecimento) e uma posição ética (o que, à luz do que é revelado como conhecimento, a sociedade é chamada a fazer).
  2. Eles se identificam como parte de um movimento social libertário.
  3. A experiência e o ponto de vista dos sobreviventes – e não dos profissionais – são considerados como sendo o fundamental.
  4. A psiquiatria é teorizada como um falso e opressor campo da medicina.
  5. O compromisso geral é livrar o mundo desta opressão – isto é, livrar o mundo da psiquiatria – assim como as feministas estão empenhadas em livrar o mundo do sexismo.
  6. A antipsiquiatria não é simplesmente um rótulo dado aos membros deste movimento para os distinguir dos outros. É ao mesmo tempo uma forma de auto-identidade e um chamado para que todos abracem ativamente esse modo de ser.

Esta posição e essa identidade vem se expressando em várias publicações do movimento, desde o início dos anos 80  (veja, por exemplo, as várias questões da revista totalmente antipsiquiátrica com sede em Toronto, a Phoenix Rising, com o subtítulo  “a voz dos psiquiatrizados”), que apresentou, entre outras coisas, as vozes de sobreviventes icônicos como a voz de Don Weitz. Enquanto se baseiam fortemente nos fundamentos teóricos fornecidos por escritores como Szasz – e orientados significativamente sobre a experiência vivida, bem como a teorização de sobreviventes psiquiátricos em todos os lugares, sob a bandeira da antipsiquiatria – o que todos esses ativistas fizeram e continuam a fazer ao longo dos anos é fundamentalmente criticar a psiquiatria e lutar por sua abolição. Isso tem sido também um componente importante em revistas de sobreviventes que combinam antipsiquiatria e outras vozes críticas, por exemplo, Madness Network News.

Alguns pontos que sobressaem e distinções importantes: embora dificilmente seja idêntica ao movimento do sobrevivente psiquiátrico, a antipsiquiatria praticada pelas pessoas discutidas acima se conecta profundamente com o movimento dos sobreviventes. Ao mesmo tempo, também é distinta. Conforme discutido por Shaindl Lin Diamond em sua tese inovadora[5], alguns membros do movimento dos sobreviventes são antipsiquiátricos, enquanto outros não o são. Do mesmo modo, embora os sobreviventes psiquiátricos constituam a maioria do movimento da antipsiquiatria, o movimento não se restringe a eles.

O que diz respeito àquela que é de longe a maior e a mais antiga organização antipsiquiátrica e rede social do mundo a respeito, Coalition Against Psychiatric Assault (CAPA), é instrutivo se notar. Comprometidos com a abolição da psiquiatria e orientados por um ponto de vista dos sobreviventes, a organização está aberta a todos que assumam uma posição abolicionista, independentemente da sua posição social. A este respeito, peço que se dê atenção a estas palavras de inclusão que está na declaração da sua missão institucional: “A CAPA é uma coalizão de pessoas comprometidas com o desmantelamento do sistema psiquiátrico e a construção de um mundo melhor. Radical e visionária, somos formados por ativistas, sobreviventes psiquiátricos, dramaturgos, acadêmicos e profissionais “. Como lá, as organizações de antipsiquiatria refletem as operações de grupos de movimentos sociais, como as organizações marxistas, por exemplo, em que a base da unidade é o conjunto de princípios e compromissos comuns, e não a posição social das pessoas. E aqui este movimento difere tanto do movimento dos sobrevivente quanto do movimento dos loucos (ao qual, mais uma vez, está intrinsecamente conectado).

Mais um pouco de contexto: contrastando com outros graus interagindo com os vários grupos discutidos até agora – quer dizer, tanto aqueles que se auto-identificam como antipsiquiátricos como aqueles que são chamados por terceiros de antipsiquiátricos -, há ainda outros que ninguém vê como antipsiquiatras, mas que, no entanto, argumentam / lutam por algo melhor do que o que existe, que se veem como parte de um movimento social. Não localizo o movimento de sobreviventes nesta categoria, pois o movimento de sobreviventes tem sua própria entidade especial e abrange a maioria dos outros movimentos. Pivô aqui são movimentos de profissionais, com os quais os sobreviventes geralmente sentem que têm algo em comum e trabalham juntos. Um exemplo é “o movimento para uma Psiquiatria Democrática”, que se originou com Basaglia na Itália e é exemplificado atualmente pelo trabalho da Asylum Magazine na Inglaterra. Um exemplo ainda mais formidável é a rede muito maior de teóricos, sobreviventes e ativistas que se identificam como “psiquiatria crítica”, com o pessoal da “psiquiatria democrática”  em grande parte agora sendo subsumido sob o termo “psiquiatria crítica”. O mandato principal desses grupos pode ser descrito como “reforma da saúde mental” ou “reforma psiquiátrica”.

O contexto agora estando claro, retornemos às perguntas com as quais este artigo começou: então o que significa “antipsiquiatria”? Esse termo é útil?

De uma perspectiva muito limitada, certamente parece ambíguo, pois o termo tem sido usado de diferentes maneiras por diferentes atores sociais. Dito isto, gostaria de seguir uma linha de raciocínio diferente aqui. Por um lado, a palavra evoluiu, e quando uma palavra evolui não a comparamos ao significado original e, com base na diferença entre eles, reivindicamos a sua ambiguidade. Fazer isso aqui seria um pouco como dizer que o significado da palavra “datilógrafo” é ambíguo, porque inicialmente o termo se referia à pessoa que fazia uso de uma máquina de escrever. O que também é significativo, o inventor original e o promulgador da palavra não dão conta do que ‘datilógrafo’ significa hoje em dia.

Para irmos mais além, as palavras podem ter significado e relevância sob várias bases diferentes. Uma – e uma importante – é a base prática. As perguntas a serem feitas, a este respeito, incluem: um determinado uso da palavra distingue claramente o fenômeno em questão de fenômenos separados, embora relacionados? E estabelece uma direção? O que é claro é que os ativistas que se proclamam antipsiquiatras estão usando o termo de uma forma que estabelece uma direção- abolição – e no processo, criamos um nicho que distingue muito bem  a antipsiquiatria da ‘psiquiatria crítica’. Como tal, a antipsiquiatria tem um “significado evoluído” que é ambivalente e útil. O que é igualmente relevante, de todos os usos do termo que surgiram ao longo dos anos, esse é o único – e apenas o único – e que se afirma como “linguisticamente correto”. Como assim?

Examinemos de perto a palavra “antipsiquiatria”. É um termo complexo composto de duas partes, a primeira das quais define a orientação a ser levada pela segunda. Então há “anti”, o que significa “contra”, e há “psiquiatria”, cujo significado, infelizmente, todos sabemos muito bem qual é. “Anti” identifica a orientação para a psiquiatria. Por conseguinte, ser antipsiquiatra, pela própria lógica de como funciona a linguagem, significa ser contra a psiquiatria. Ser “contra”, notem, é manifestamente diferente de “reformar a psiquiatria”, ou “modificá-la” ou “inventar uma nova versão”; o que, em essência, é o que a ‘psiquiatria crítica’ representa. Seguem-se duas conclusões. A primeira é que os ativistas que estão usando o termo “antipsiquiatria” o usam para designar uma posição abolicionista, que é o que a grande maioria dos ativistas da antipsiquiatria estão fazendo hoje, portanto estão usando o termo corretamente. O segundo, e já abordamos isso, é que não é uma palavra ambígua, mas uma palavra com um significado claro e preciso. Ser antipsiquiatra, em poucas palavras, deve ser estar “contra a psiquiatria” – é estar empenhado em se livrar dela.

Como enquadrar esta realidade com o início do uso histórico do termo? Reconhecendo que as palavras mudam de significado. Além disso, no entanto, ao aceitar que, quando Cooper inventou o termo “antipsiquiatria”, o que ele fez, com efeito, foi criar um termo “inapropriado” – pois, enquanto ele tinha problemas com a psiquiatria, estritamente falando ele não era “contra a psiquiatria”. O termo foi rapidamente aceito sem que ninguém comentasse ou parecesse notar o nome inapropriado. O que resultou dessa aceitação do termo é que, durante muito tempo, todos com uma crítica substancial da psiquiatria foram reunidos sob esta palavra. Vieram os ativistas modernos – e os sobreviventes sendo absolutamente fundamentais para essa mudança – e pouco a pouco foram certeza produzindo uma enorme reviravolta. Pela primeira vez, o significado linguístico da palavra e para o que ela está sendo usada para designar realmente se uniram! O resultado? Embora o termo “antipsiquiatria” tenha entrado no nosso vocabulário político como um nome equivocado, o que se materializa na plenitude do tempo é uma palavra útil, uma palavra associada a uma posição clara e a uma agenda muito importante. Consequentemente, não há dúvida sobre sobre a precisão do significado da palavra.

Aqui estão as respostas para a maioria das questões colocadas no início deste artigo. Sim, o termo é útil. Não, ele não é ambíguo. Sim, é claro qual o uso a seguir. Não, não está sujeito a graus. Com respeito a este último aspecto, para ser clara, é óbvio que se pode ter uma forte crítica à psiquiatria sem querer livrar-se dela – e nesse caso se é da “psiquiatria crítica” e não da “antipsiquiatria”. O mesmo é verdade para as pessoas que se chamam de antipsiquiatras, quando, por exemplo, na prática tomam a posição de que eles só querem se livrar da psiquiatria não consensual, e que como tal isso já seria um avanço importante. Para entender por que estou dizendo isso, considere termos políticos comparáveis em outras áreas – termos como “antirracismo” e “anti-sexismo”. Ninguém, por exemplo, diria que eles não sejam antirracistas, mas isso não implica que eles queiram parar todo o racismo, apenas “racismo não consensual”. Nem alguém diria que são contra as discriminações, mesmo sendo a favor quando ocorrem privadamente – que são apenas contra a discriminação socialmente organizada, porém que não têm objeção a outros tipos de discriminação.

Agora, se as pessoas optam por assumir uma posição crítica à psiquiatria, elas são, é claro, livres para fazê-lo. O que seria útil, no entanto, é que elas não confundam a sua própria posição com a antipsiquiatria, que elas não transformem um termo inequívoco em um termo vago, que elas não combinem a antipsiquiatria com a ‘psiquiatria crítica’ – que, por assim dizer, não nos enviem – recuando no tempo – de volta à era da categoria “onde tudo cabe”.

Estou ciente, evidentemente, de que existem pessoas que estão em cima do muro entre a antipsiquiatría e a ‘psiquiatria crítica’, ou para colocar isso de outra forma, entre abolição e reforma. E, é claro, respeito o direito das pessoas de usar as palavras que escolherem. No interesse da clareza, no entanto, o que eu incentivaria as pessoas que se encaixam nessas posições é que procurem articular sua posição sem chamá-la de antipsiquiatria, pois apesar das melhores intenções – e eu de modo algum duvido que as intenções das pessoas sejam honradas – agindo dessa forma elas “turvam as águas”. E como estou ciente de que estou aqui “indo fundo na questão”, gostaria de encorajá-los de forma mais geral a se perguntarem: o que os impede de assumir uma posição de abolição? Não há talvez melhores maneiras de lidar com o que os preocupa sem tomar uma posição que, para todos os efeitos, envolva sustentar um sistema falso e destrutivo, emprestando tanto poder quanto legitimidade a ele? (Para um artigo que ilustra que, apesar das melhores intenções, a história mostra uma e outra vez que aonde a reforma não abolicionista nos leva, veja ” Liberal ‘Mental Health’ Reform: A ‘Fail-Proof’ Way to Fail”.

A título de exemplo, se eles estão preocupados com o fato de as pessoas precisarem de ajuda – e quem entre nós nega isso? – então, sobre como trabalhar para estabelecer redes de ajuda participativa que sejam voluntárias e que não empoderem a psiquiatria? O mesmo  dito com outras palavras, se você está preocupado com o fato de as pessoas passarem a ficar privadas de sua maneira de lidar com seus problemas se a psiquiatria for eliminada – seriam deixadas sem as drogas que as ajudam a viver o dia-a-dia, por exemplo (obviamente, uma preocupação totalmente legítima) – por favor observe que há nada na agenda abolicionista que implique “deixar as pessoas abandonadas à sua própria sorte”. Aqui, permitam-me sugerir, reside a diferença entre trabalho abolicionista pensativo e aquele que é irrefletido.

Não irei aqui montar uma argumentação em defesa da antipsiquiatria neste artigo, pois muitas vezes já fiz isso e esse não é o objetivo deste artigo. Sobre isso basta dizer que já foi demonstrado repetidamente por centenas de teóricos sólidos (tanto da antipsiquiatria quanto da variedade dos que defendem a psiquiatria crítica) que a psiquiatria carece de fundamentos, que é um ramo falso da medicina, e isso prejudica esmagadoramente as pessoas (ver, por exemplo, Breggin 1991[6], Whitaker 2010[7], Burstow, 2015[8] e Gøtzsche, 2013[9]). Como tal, das diversas formas como isso está acontecendo, não faz sentido que a psiquiatria acabe? Nem a questão de respeitar as escolhas das pessoas é relevante, embora compreensivelmente, essa questão quase sempre apareça quando as pessoas explicam por que elas não são antipsiquiátricas. É claro que os desejos das pessoas precisam ser respeitados! Isso é absolutamente não negociável. E, claro, as pessoas precisam de escolhas! Como discuti em detalhes em outro lugar, é uma questão totalmente distinta daquela de impedir que os medicamentos falsos passem como remédio real, ou de interromper o financiamento público da psiquiatria e as indústrias que a cercam, parando de dar-lhes poder e legitimidade – o que, não é por coincidência, é uma boa parte do que a maioria de nós quer dizer com a abolição da psiquiatria. Além disso, como também se mostra no artigo mencionado acima, a psiquiatria elimina impreterivelmente a escolha; isto é, ela realmente aborta a multiplicidade de serviços que muitos querem, na medida em que cooptamos com o que está aí

Quanto àqueles que se sentem incomodados com a noção de abolição, na medida em que a abolição pode parecer extrema para as pessoas, eu entendo totalmente o impulso para a “moderação”, embora comumente uma posição sábia, a “moderação” nem sempre é uma resposta para tudo. Se uma prática ou instituição é fundamentalmente inaceitável (assassinar, escravizar), não devemos nos livrar dela ao invés de apenas procurar desenvolver uma versão menos horrível?

Da mesma forma, enquanto alguns temem o conceito, porque ele parece confuso, notem que não há nada no compromisso dos abolicionistas que de alguma forma envolva derrubar instantaneamente o sistema psiquiátrico. Gostaria de lembrar aos leitores o modelo de  ‘desgaste da psiquiatria’, onde pouco a pouco, a gente desencaminha a psiquiatria, apoiando apenas as reformas que levem na direção da abolição (para obter detalhes sobre como implementar uma estratégia como essa, veja Burstow , 2013[10]). Em termos mais gerais, trata-se de perseguir a abolição de forma inteligente, gentil, sensível e de modo a levar a sério a situação e os direitos de todos; é precisamente isso o que é o bom trabalho abolicionista.

Para resumir, em suma, o termo “antipsiquiatria” tem um significado muito claro, um objetivo muito claro. Estabelece um espaço totalmente distinto. E a sua agenda é defensável, pode-se até dizer necessária. Mais ainda, os argumentos contra os antipsiquiatras não são válidos. No máximo, eles se aplicam ao trabalho de abolição descuidada, o que não está de modo algum implicado no compromisso autêntico de abolição.

Dito isto, para retornar rapidamente à história inicial com a qual este artigo começou – sabendo que eu estava escrevendo um artigo desta história, há vários dias atrás um dos meus amigos me perguntou isso: se Cooper tivesse vivido o suficiente para ver em que a psiquiatria e a antipsiquiatria se tornariam, o que ele diria? Pensaria eu que ele mesmo teria endossado uma visão de antipsiquiatria honesta aos olhos de Deus? Embora seja difícil saber com certeza, meu palpite provavelmente não é que ele estaria hoje negando de imediato o termo. Meu palpite é que, em parte, Cooper abandonou o termo precisamente porque começou a perceber o quanto estava fora da caixa. Por outro lado, quem pode dizer onde ele teria ido, se ele tivesse ficado no campo e se encontrado a lutar contra o mega crescimento da psiquiatria biológica?

Permitam-me sugerir, no entanto, que, mesmo que ele não viesse apoiar a antipsiquiatria, além do fato de que seu endosso não seria necessário, isso não tornaria o termo menos importante ou a agenda da antipsiquiatria fora de lugar. O que seria, em vez disso, é um outro indicador das limitações das iniciativas de movimento social que se originam de profissionais em oposição ao que vem dos oprimidos. A este respeito, os profissionais podem ser importantes, mesmo aliados inestimáveis, e além disso, irmãos e irmãs em luta – e, felizmente, todos sabemos quem são. Não obstante, exceto em certas circunstâncias, o que ocorre é que os profissionais simplesmente não são os oprimidos de fato. Apesar disso, a tirar o chapéu para David Cooper, por ele haver chegado a um termo que era mais corajoso e até mais sábio do que ele sabia.

Finalmente, em conclusão, e para retornar ao enigma que rodeia a ortografia, o que eu sugeri acima: independentemente de como você soletra “antipsiquiatria”, linguisticamente falando, isso significa o mesmo. Ou seja, como Shakespeare, que escreveu a palavra “lança” de três formas diferentes ao longo de sua obra, sempre considerei a preocupação da sociedade com a “ortografia padrão” como algo pedante. No entanto, uma diferença curiosa aparece na ortografia do termo “antipsiquiatria”. Enquanto a palavra inventada por Cooper era hifenizada, e enquanto a grande maioria dos outros que passaram a empregá-la ou a fazer referência seguiu o exemplo, há gerações de ativistas que repetidamente, escreveram a palavra de forma diferente, em alguns casos, mesmo conscientemente pretendendo ruptura com o Cooper. A este respeito, as trinta e duas questões da histórica revista antipsiquiatria Phoenix Rising usando consistentemente a versão não-hifenizada, assim como as legiões de ativistas antipsiquiatras e suas organizações (por exemplo, Resistance Against Psychiatry e Coalition Against Psychiatric Assault). Eu, pessoalmente, publiquei sete livros consistentemente empregando a versão não hiefinizada e, literalmente, centenas de artigos. E todos os escritos do icônico autor de sobrevivência, Don Weitz (e seus escritos nesta área datam dos anos 1970) sustentam de forma similar a forma ortográfica “antipsiquiatria”.

Claro, a ortografia é “apenas uma ortografia” e a grande maioria das pessoas que se deparam com sua escrita provavelmente não perceberá a diferença. Então, “sem grilos” se você optar por reter qualquer ortografia que você tenha empregado (“antipsiquiatria” ou “anti-psiquiatria”). Não obstante, se você quiser permanecer em uma tradição de quase quarenta anos de pessoas que usaram a “antipsiquiatria” consistentemente para significar “abolição” (nota, “antipsiquiatria” sem o hífen nunca foi usado de outra maneira), se você quer se alinhar com os ativistas e os radicais, distinto dos profissionais, se você deseja manter sua posição como visionário abolicionista, considere se juntar a nós e oferecendo o hífen “adieu”.

Referências:

[1] Cooper, D. (1967). (Ed.). Psychiatry and antipsychiatry. London: Paladin. Em português, Psiquiatria e Antipsiquiatria. Editora Perspectiva.

[2] Laing, R. D. (1965). The divided self. London: Pelican Books

[3] Foucault, M. (1980). Power/Knowledge (C. Gordon, Trans.). New York: Pantheon.

[4] Szasz, T. (2009). Antipsychiatry: Quackery squared. Syracuse, New York: Syracuse University Press.

[5] Diamond. S. (2012). Against the medicalization of humanity. Doctoral Thesis. Toronto: University of Toronto.

[6] Breggin, P. (1991). Toxic psychiatry. New York: St. Martins Press.

[7] Whitaker, R. (2010). Anatomy of an epidemic. New York: Broadway Paperbacks.

[8] Burstow, B. (2015). Psychiatry and the business of madness. New York: Palgrave

[9] Gøtzsche, P. (2013). Deadly medicine and organized crime. New York: Radcliffe.

[10] Burstow, B. (2013). The withering of psychiatry: An attrition model for antipsychiatry. In B. Burstow, B. LeFrançois, and S. Diamond (Eds.). Psychiatry disrupted (pp. 34-51). Montreal: McGill-Queen’s University Press.

 

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