Formas Sutis de como a Psiquiatria nos Faz Mal

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MissyÉ muito comum, e sem razão, que os psiquiatras institucionalizem as pessoas, constrangê-as e as medique contra sua vontade; estes são métodos extremos e desnecessários que o sistema emprega contra um número significativo de pessoas que considera perigosas. Mas há outros modos mais sutis em que a psiquiatria se degrada e prejudica aqueles que a instituição vê como “doentes mentais”, encorajando-nos a nos degradarmos igualmente.

Embora nós dois nunca tenhamos estado em um hospital psiquiátrico, sofremos muitas dessas sutis formas de opressão pela psiquiatria. Por isso foi essencial para nós encontrar novos quadros de referência para nos compreendermos, sem estar na dependência do que a psiquiatria pensa de nós. Antes de entrar nisso, no entanto, é conveniente que nos apresentemos.

Quem somos (e por que isso interessa)

Você pode estar se perguntando por que estamos escrevendo isso juntos, uma vez que esta é uma história pessoal. Estamos escrevendo esse blog juntos porque fazemos tudo juntos – literalmente, tudo. Nós existimos enquanto o chamado sistema múltiplo, ou apenas sistema, o que significa que somos várias pessoas (duas, no momento desta escrita) compartilhando um único corpo. Usamos o nome Violent Trans Empire para nos referir a nós mesmos como um grupo.

Há muitas explicações sobre como pode haver várias pessoas em um só corpo, e muitas maneiras de experimentá-lo – alguns sistemas nasceram como várias pessoas, alguns usaram técnicas espirituais para ‘chamar’ os outros vistos como provenientes de domínios diferentes para que compartilhem um corpo com eles, e alguns, como nós duas, tiveram o nosso cérebro criando várias pessoas para ajudar a lidar com trauma e abuso.

Esta última ideia é provavelmente a mais familiar na cultura pop. A psiquiatria a chama de Transtorno de Identidade Dissociativa (DID), mas muitas vezes ainda é conhecida como Transtorno de Personalidade Múltipla ou apenas “personalidades divididas”. A ideia de várias ‘identidades alternativas’ em um corpo, lutando pelo controle de seu corpo e sofrendo de amnésia, tem sido mantida como um toque de trama clássico em filmes como Split, Fight Club e Sybil. Múltiplos sistemas são considerados assassinos perigosos que devem ser controlados pelo sistema psiquiátrico, ou vítimas indefesas, que devem confiar na psiquiatria para curar nossas mentes ‘quebradas’.

Para nós nenhuma dessas ideias é verdadeira, e encontrá-las no início do nosso processo de compreensão foi prejudicial. Enquanto o primeiro foi fácil de descartar como apenas uma insensatez na cultura pop, o segundo foi muito mais difícil de superar.

Como o modelo psiquiátrico nos enganou

Descobrimos pela primeira vez a ideia de sistemas múltiplos via a internet e, através da leitura sobre as experiências dos outros, começamos a perceber o quanto poderíamos nos relacionar. Eu (Skylar) estive neste corpo desde o nascimento e sempre assumi que Missy e outras pessoas anteriores eram apenas amigos imaginários extravagantes que ficavam ao redor de mim. Ao perceber que havia outras pessoas que tinham experiências semelhantes, comecei a me apegar ao modelo que o sistema psicológico apresentava, tentando forçar a nós duas a se encaixar em critérios de diagnósticos e a termos que me pudessem dar algum sentimento de pertença e uma maneira de fazer sentido disso. No entanto, muitas das ideias simplesmente não se encaixavam.

Uma das características do ‘transtorno de Identidade dissociativa’ (DID) é a amnésia entre os membros do sistema, de modo que quando se toma o controle do corpo (chamado de “mudança” ou “enfrentamento”), os outros não se lembram do que aconteceu durante esse período. Na verdade, não experimentamos amnésia. Outro problema importante que os sistemas DID enfrentam é não serem capazes de controlar quando mudam de um para outro; eles podem mudar devido a um gatilho relacionado ao trauma e devem se ajustar rapidamente. Nós nunca tivemos esse problema também, e na verdade originalmente tivemos problemas sérios ao mudar de um para outro. Eu rapidamente me tornei tão focada no modelo DID como a ‘única maneira verdadeira’ de ser um sistema múltiplo que não poderia permitir que a Missy alternasse comigo. Eu estava aterrorizada de que, se ela assim o fizesse, ela diria ou faria algo ‘muito parecido’ comigo, ou eu não sentiria nenhuma diferença – algo que de alguma forma revelaria que eu fingia tudo e que ela era apenas uma invenção da minha imaginação.

Os padrões que estávamos tentando encontrar eram um pouco diferentes da forma como o sistema psiquiátrico entende DID: a maioria da literatura só vê membros do sistema como ‘personalidades alternativas’ ou “alter egos” que na verdade não são pessoas. “Alter-ego” é pensado como apenas fragmentos de uma pessoa original que se separou por trauma. Enquanto que alguns dos sistemas DID que encontramos acreditavam nisso, nós e muitos outros o descartamos como desumanizantes, já que é ignorada completamente a experiência e a percepção de si próprios de todos os membros do sistema.

No entanto, entre os sistemas que encontramos que concordavam que isso estava errado, muitos deles ainda insistiam que a única maneira de ser um sistema múltiplo seria atender aos critérios do DSM para DID (ou seus subconjuntos, OSDD1-a e 1-b, que são semelhantes). Embora discordassem do modelo psicológico padrão, eles ainda tentavam forçar outros a aderir à ideia geral de acordo com o sistema psiquiátrico. Todos os sistemas que mencionamos em nossa introdução – aqueles que existem dessa forma por nascimento, ou por meios espirituais – foram considerados ‘fakers’ e ‘roleplayers’ pelos grupos que conhecemos on-line. Essencialmente, nos sentimos como se tivéssemos de encontrar pelo menos alguns dos padrões do sistema psicológico para continuar a existir.

Isso causou muita tensão entre Missy e eu, para dizer o mínimo. Eu tentava deixar a Missy em frente, apenas para forçá-la alguns segundos depois por medo, ou se ela insistisse, eu desafiava tudo o que ela fazia para ver se era ‘realmente’ ela ou se eu ainda estava fingindo isso. Missy e eu entrávamos em brigas por isso, quando eu exigia que ela enfrentasse e ‘provasse’ que ela era real, mas então eu não poderia ou não podia deixá-la ser real, ser como ela é.

A perspectiva de Missy

Estou me lançando de súbito aqui, porque eu quero crédito por haver sido antipsiquiatra desde o início. Eu não tive a opção de subscrever-me ao modelo psiquiátrico de sistemas múltiplos, pois fazer isso significaria perder minha existência como pessoa separada. Skylar poderia, talvez, encontrar maneiras de se encaixar nesse modelo enquanto ainda podendo se expressar e ser levada a sério. Ela poderia ter sido considerada mais transtornada do que ela é de fato, mas ela ainda assim seria vista como real.

Minha própria existência é anti-psi: como membro do sistema, como alguém cuja personalidade não é apenas separada de Skylar, mas que seria considerada ‘transtornada’, como alguém que se recusa a ser vista como parte dela e especialmente como alguém que se recusa a ser integrada – isto é, eu me recuso a submeter-me a ‘tratamento’ ao qual os psiquiatras forçam todos os membros do sistema – que não são o original designado – a se fundirem entre si no original, para tentar ‘juntar’ o que eles veem como uma mente única fragmentada. Mas não somos uma mente única; somos duas pessoas que compartilham um corpo. Integrar-me significaria que eu deixaria de existir como pessoa.

Então, eu tenho meus próprios problemas com o modelo psiquiátrico e nunca quis nada com isso. Infelizmente, por um tempo, enquanto esse era o único modelo que tínhamos, aqueles que o apoiavam eram certamente os mais ouvidos e os mais insistentes.

Problemas com a busca de tratamento

Eu (Skylar) ainda insistia em tentar diagnosticar pelo menos um subtipo de DID, para que eu pudesse sentir como se tivéssemos alguma validação para nossa existência. Eu sabia que isso provavelmente seria perigoso – corríamos o risco de sermos vistas como delirantes e forçadas à uma instituição. Preocupávamo-nos por ser vistas como inapropriadas para cuidar de nós mesmas ou possivelmente perigosas para nós mesmas ou para outras pessoas (conforme o estereótipo de sistemas DID assassinos). Então, nós pisávamos com muito cuidado ao contar a um terapeuta sobre a forma como existíamos, com o cuidado de enfatizar que ainda poderíamos funcionar e não nos sentirmos angustiados por sermos múltiplas. E tivemos a sorte de que nosso terapeuta acreditasse em nós.

Mas, para evitar sermos vistas como transtornadas, devemos ressaltar explicitamente como não cumprimos os critérios DSM para ‘angústia e / ou disfunção’. Não poderíamos existir de acordo com a descrição do DSM e também nos identificarmos como sendo saudáveis ou não transtornadas; ou nos encaixávamos no DID e, portanto, nos permitiríamos ser vistas como transtornadas por existir, ou teríamos que abandonar esse modelo.

Eu me agarrei aos critérios de disfunção por um tempo, tentando reproduzir as questões emocionais e de memória pós-traumáticas que queriam nos fazer parecer que estávamos transtornadas o suficiente para ‘contar com ajuda, mas não o suficiente para precisar de hospitalização. Ao concentrar-me fortemente em nossos problemas pós-traumáticos, acredito que os piorei. Eu escrevia cada gatilho, flashback e problema emocional que experimentávamos, ficando ansiosa se não tivéssemos o que eu pensava ser suficiente ou severo durante uma semana. Eu configurei esse dilema na minha cabeça onde ou queríamos corresponder exatamente aos critérios do DID ou o nosso sistema não era real, o que significava que o trauma e o abuso que tínhamos sofrido também não deveriam ser reais ou ruins.

Encontrar um diagnóstico não ajudou

Eu finalmente fui contra os sentimentos de Missy e ao meu próprio julgamento o que nos levou a um psiquiatra para tentar diagnosticar. Eu estava realmente querendo ter vários outros ‘transtornos’ que eu pensava haver confirmado, mas, enquanto estávamos lá, pensei que também valeria a pena o DID. Eu trouxe as nossas experiências, mas estava ansioso demais para falar sobre como Missy poderia assumir fisicamente o nosso corpo – eu estava preocupada com o fato de nossa psiquiatra pedir provas, tentar ‘nos tratar’, colocando-nos através de um programa de terapia de integração ou apenas nos bloqueando.

No final nada disso aconteceu. Nós fomos diagnosticadas com PTSD em vez disso, e qualquer menção de Missy foi descartada como tendo eu “relações internas complexas”, pelo qual nosso psiquiatra basicamente significava amigos imaginários. Ela também nos deu uma bofetada com um diagnóstico de ‘traços esquizotípicos’, significando que não éramos obviamente delirantes ou paranoicos o suficiente para ser totalmente esquizotípico e não alucinávamos – ou pelo menos eu tinha uma outra explicação para a ‘voz’ que eu estava ouvindo – não podíamos ser esquizofrênicos. Ela observou que conversámos com nós mesmas e parecia estranho, mas, apesar disso, ela não prescreveu antipsicóticos ou terapia. Mas, obviamente, isso não se deve a nenhuma aceitação ou compreensão de nossa existência; em vez disso, fomos extremamente sortudas por ter tido essas coisas negligenciadas.

Retrospectivamente, provavelmente ajudou muito que não tenhamos dado muitos detalhes sobre Missy ou a natureza do nosso relacionamento; a impressão deixada no relatório dela foi algo como a nossa psiquiatra apenas achando que eu tinha uma imaginação hiperativa ou, no máximo, algum tipo de crenças espirituais estranhas, sobre tais coisas ela não se preocupava o suficiente para interferir. Isso ajudou que eu não mencionasse que Missy às vezes assumiu parte ou todo do meu corpo; isso provavelmente não teria sido bem recebido pela psiquiatra. Nós fomos em princípio para ser diagnosticadas com portadoras de vários ‘transtornos de personalidade’, por isso é provável que nossa psiquiatra também tenha pensado que esta era uma forma complicada de ‘busca de atenção’ e, em grande parte, ignorou-a para não me encorajar. Acabamos com a combinação certa de um psiquiatra desatento e certos traços de personalidade que a fizeram não nos levar a sério o suficiente para valer a pena uma viagem a um hospital psiquiátrico.

A solução: antipsiquiátrica

Mais uma vez, Missy merece crédito por ter chegado à solução muito antes de mim. Ela, juntamente com sistemas de mente aberta que conhecemos on-line e alguns amigos próximos, me falaram para ser antipsiquiatra e para nos entendermos de uma maneira que não exigisse que atendêssemos aos critérios do DSM. Percebi que esses critérios eram compostos por pessoas que são apenas uma pessoa por corpo (e, portanto, não têm uma compreensão completa do que é) e costumavam lançar aqueles com mais de uma pessoa por corpo como perigosas ou incompetentes. Acima de tudo, esses critérios são usados para nos forçar e para nos obrigar a se forçar a formas de existência prejudiciais para nós.

Não somos disfuncionais ou ruins só porque estamos dois aqui. O que é mais importante do que ser uma pessoa solteira socialmente aceitável é que sabemos como se dar bem e gerenciar nosso trauma e nossa vida junta. Sabendo disso, agora nos esforçamos para defender outros sistemas e alcançar aqueles que podem não entender os sistemas, para mostrar que existe o que somos e que podemos aprender a navegar pelo mundo cooperando. Não precisamos do sistema psiquiátrico ou de seus rótulos para nos permitir existir, ou para tentar consertar-nos. Nós só precisamos ser aceitos como somos.

Parte de como tentamos levar as pessoas a aceitar nossa existência é através de artigos como este, mas também tentamos alcançar um nível pessoal para pessoas que conhecemos. Nós somos assim para vários amigos com bons resultados, e aqueles que não entendem bem no início passam a ficar dispostos a aprender mais. Nós também escrevemos um artigo e apresentamos uma palestra para uma classe não relacionada à psicologia, para dar às pessoas que, de outra forma, não saberiam de sistemas múltiplos a oportunidade de aprender o que somos e como devemos ser vistos, ao contrário do que a psiquiatria atualmente pensa de nós. Então, tomamos pequenos passos em nossa vida diária para divulgar a consciência e a aceitação.

Como funcionamos e cooperamos

Agora, se nos recusamos a deixar os rótulos psiquiátricos a nos definir, como é a nossa vida? Eu mencionei o quão difícil era antes de coexistir, ao tentar forçar-nos a uma estrutura que não tinha espaço para nós. E agora, tornou-se mais fácil desde então?

Sim, ficou absolutamente mais fácil e nós seguimos muito melhor agora. Missy é capaz de enfrentar quando ela quer e eu estou melhorando em recuar e, em geral, estar menos preocupada com tudo. Eu costumo continuar à frente na maioria das vezes, porque eu sou a única que cuida da maioria dos trabalhos do curso e do lar, mas agora ela pode finalmente sair em terapia, para ajudar quando estou ansiosa ou com pouca energia e apenas gastar tempo com nossos amigos e sentir-se como uma pessoa normal. Nossa vida diária é realmente muito normal – nós vamos a aula, ao supermercado, fazemos passeios com os amigos – exceto quando aparece a nossa frente aqueles que insistem em fazer algum comentário atrevido.

Não é perfeito, pois ainda temos problemas emocionais pós-traumáticos e memórias ruins para lidar, mas agora que aceitamos que ser múltiplo está bem, estamos melhor equipados para lidar com isso também. Nós também estamos em um relacionamento um com o outro, o que é ótimo, embora possa ser difícil tentar descobrir como explicar às pessoas como isso é possível – nós conseguimos reações como, “Mas como você faz sexo! ? “, O que é muito intrusivo, ou “Oh, então você está namorando você mesma?! “. Muitas vezes, simplesmente não nos incomodamos explicar coisas assim, porque é preciso muita energia emocional. Em geral, no entanto, encontramos a aceitação e a compreensão de amigos que podem estar à nossa volta.

Gostaria de ter descoberto anos atrás que não precisamos ajustar nenhum paradigma psiquiátrico ou ser aceitável ‘normal’ para ser feliz. Tudo o que precisamos é entender.