Cemitério dos Vivos é um romance inacabado de Lima Barreto, baseado nas anotações feitas num Diário quando o escritor esteve internado no Hospício da Praia Vermelha. As “Anotações para o Cemitério dos Vivos” [1] foram sugeridas por meu editor, e aceitas imediatamente, como complemento do meu livro “Ouvindo Vozes” por dois motivos: compartilhar os escritos de Lima Barreto para os jovens estudantes de hoje; e – o que encantou meu editor – mostrar as semelhanças de um hospício no século XXI e àquele de quase cem anos atrás.
Uma das características do hospício é anular o tempo e o espaço. Quando começava minha jornada, ainda na Colônia Juliano Moreira, aplicando um censo aos internos, no início dos anos oitenta do século passado, observamos que os pacientes respondiam com uma idade discrepante à observação de seus rostos. Diziam ter a idade muito pouca para rostos marcados. Foi fácil perceber que a idade dada correspondia ou estava muito perto da data da internação naquele cemitério de vivos. Como se o tempo tivesse ali parado para sempre. As “anotações” de Lima Barreto, feitas em 1919, mostravam enfermarias e pacientes semelhantes às minhas próprias descrições de um hospício que minha equipe tentava mudar. Quase cem anos depois a impressão é que estamos no mesmo momento temporal.
Quanto ao espaço, basta viajarmos para outros lugares e países. São muito iguais. Disposição panóptica, celas, grades, banheiros sem privacidade, refeitório sem talheres. Roupas iguais de cores semelhantes. Eu mesmo as nominei de “azul hospício” ou “cinza manicômio”, aquelas roupas de brim impessoal. Em comum as grades de ferro que aferrolham o tempo e o espaço no manicômio.
Mas desde o final da década de 1980, um movimento se opôs ao velho, longevo e perverso manicômio. O movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, que aprendeu com o movimento da Reforma italiana de Basaglia. Seu lema: “por uma sociedade sem manicômio”. O movimento visava a ultrapassagem do hospital psiquiátrico.
Foram criados dispositivos substitutos do manicômio na intenção de sua superação. Um passo cuidadoso para não provocar desassistência. E em trinta anos de teorias, práticas, acertos, desacertos, temos a certeza de que o manicômio pode ser substituído por dispositivos comunitários que mostraram sua eficácia e eficiência. Podemos afirmar que foram criadas novas formas de tratamento e de assunção ao tratamento pelos usuários e familiares, que transformou a prática hospitalar obsoleta. Digo hospitalar porque os CAPSs, as RTs [2], as Unidades de Acolhimento, Leitos no Hospital Geral e outros dispositivos de trabalho e lazer deram provas de substituir com vantagens o hospital psiquiátrico especializado.
Aqui se encontra o nó. O calcanhar de Aquiles da Reforma Psiquiátrica. Na radicalidade da Reforma o hospital psiquiátrico deve ser dispensado. Primeiro por que os dispositivos reformistas devem ser substitutivos e não alternativos ao hospital especializado. Segundo por que o hospital psiquiátrico especializado com facilidade se transforma em manicômio. Terceiro por que a Reforma é dA Psiquiatria e seu locus fundador – o hospital . E não uma Reforma dos métodos usados nA Psiquiatria.
Basaglia mostra que não é o manicômio que deforma a psiquiatria, mas a psiquiatria que produz o manicômio. A partir do hospital psiquiátrico especializado de “boas intenções”. Ele cataloga, segrega, separa da comunidade e da família, aplica o saber sobre a doença sem considerar o sujeito que adoeceu. E o hospital psiquiátrico subordina qualquer outro saber sobre a loucura ao saber médico hegemônico.
O fenômeno da loucura é por demais complexo para que seja explicado apenas pela medicina. Não pode ser reduzido a uma doença catalogada nos manuais diagnósticos em que sintomas são agrupados pela subjetividade do examinador. Há algo muito além disso. Outros saberes são chamados ao campo da loucura para, minimamente, chegar perto da compreensão possível. A transdisciplinaridade é uma abordagem científica que visa a unidade do conhecimento. Ela procura estimular uma nova compreensão da realidade articulando elementos que passam entre, além e através das disciplinas, numa busca de compreensão da complexidade. A Reforma se faz assim. É pré-requisito.
Mas voltando ao nosso calcanhar de Aquiles, a medicina nunca foi totalmente convencida disso, apesar de ter acolhido a reforma e dela ter se apropriado, sempre tentando a hegemonia do seu saber e mantendo o hospital psiquiátrico ao qual alternava os dispositivos da reforma. Nunca aceitou o fim do hospital psiquiátrico. Poucos centros de formação médica escapam a essa crítica, apesar da existência de muitos médicos reformistas radicais, dentre os quais me incluo, sem que nada dessa visão transdisciplinar diminua nossa atuação. Pelo contrário. Sentimo-nos mais seguros de usar nossos conhecimentos e aprendemos muito mais sobre o sujeito, antes apenas um doente portador de uma enfermidade.
Essa sedição psiquiátrica, já existente dentro do movimento da reforma, criou uma fissura, por onde se alimentou a reacionária Associação Brasileira de Psiquiatria e o atual governo proto-fascista para ressuscitar o hospital psiquiátrico e seus métodos antigos, às vezes travestidos de modernidade, negando que os dispositivos da reforma sejam substitutivos. Essa simples negativa destrói a construção da Reforma Psiquiátrica. A medicina volta a colocar o hospital no centro da atenção e aceita tratar os casos mais leves nos dispositivos comunitários. Isso é a morte da Reforma e a volta ao modelo que ela tentou superar.
Daí ao retorno do manicômio é apenas uma questão de tempo, como sempre aconteceu na história. Além de que os manicômios religiosos – que tentam juntar ciência e fé – para o tratamento de usuários de drogas serão o absurdo piorado do manicômio: a mistura de drogas psiquiátricas e penitências involuntárias (que são apenas métodos de tortura) funcionarão como corretivos perversos em nome da fé. Verdadeiros campos de concentração.
Não duvidamos que um pouco mais no futuro – se essa tendência não for detida – o romance de Lima Barreto poderá ser terminado. O “Cemitério dos Vivos” ressurgirá como a vitória do proto-fascismo em nossa sociedade.
Referências bibliográficas:
[1] Ouvindo Vozes, Vieira & Lent, RJ, 2009.
[2] CAPS – Centro de Atenção Psicossocial (um turno, dois turnos ou 24 horas, para transtornos mentais e uso abusivo de drogas em adultos e crianças). RT – Residência Terapêutica para pacientes moradores de hospitais psiquiátricos.
Texto maravilhoso, como sempre. De minha parte, cabe apenas lembrar que Lima Barreto foi internado por conta do alcoolismo. Ou seja: temos aí um relato da história da psiquiatria no Brasil, e da história das técnicas de “cuidado” dirigidas a pessoas que usam álcool e outras drogas.
Meu caro Dênis. Bom seu comentário. E o desafio maior, ao meu ver, é que a Psiquiatria é o porta-voz oficial a distinguir drogas psicoativas prescritas e drogas psicoativas não prescritas (por médicos). Em termos quantitativos e de impacto social, os prescritores de drogas psicoativas são socialmente mais perniciosos do que os “traficantes”. Com o álcool, não há guerras de “quadrilhas”, são guerras comerciais, regulamentadas pela sociedade. O que não ocorre com a “maconha”, “cocaína”, etc. Imaginemos guerras entre os fabricantes e comerciantes de “antidepressivos”, “antipsicóticos”, “ansiolíticos”, etc. A sociedade precisa ter a sua consciência despertada para a realidade das “drogas psicoativas” em nossa sociedade. E como melhor lidar com essa “realidade”.