Psiquiatras vêem programas livres de drogas para psicose como “não-científicos”, afirma estudo

Um novo estudo fornece uma visão privilegiada de como os psiquiatras vêem o estabelecimento de programas livres de drogas na Noruega.

0
1222

Depois que as organizações de usuários na Noruega exigiram uma mudança nos procedimentos de tratamento de saúde mental, foram estabelecidas unidades livres de drogas em todas as quatro regiões de saúde do país. Essas unidades oferecem o básico: um lugar seguro, cama para dormir, refeições e pessoas para conversar. A mudança mais significativa foi que as drogas antipsicóticas foram apresentadas como opcionais para pacientes tratados nesses estabelecimentos, pacientes esses que apresentam sintomas de psicose.

Um novo estudo, conduzido por Rafal Yeisen e colegas, da Stavanger University Hospital na Noruega, investigou as perspectivas dos psiquiatras e seus pontos de vista a respeito desses novos programas livres de medicação antipsicótica. A pesquisa, que foi financiada por uma doação do Hospital da Universidade de Stavanger, descobriu que os psiquiatras tinham opiniões negativas sobre essa iniciativa. Eles entendem que os programas não são científicos e que estão baseados nas perspectivas de usuários insatisfeitos como o tratamento tradicional, um grupo de pacientes que “carece de insight” (“percepção”) com relação aos seus problemas. Estes recentes achados  foram publicados no Journal of Psychopharmacology.

Tal mudança nos serviços públicos de saúde mental da Noruega tem provocado debates e descontentamento entre autoridades de saúde, empresas farmacêuticas, organizações de profissionais e organizações de usuários. Alguns acreditam que estes recentes estabelecimentos que oferecem programas sem medicação vão no sentido contrário às recomendações de tratamento já estabelecidas. Outros afirmam que tais locais abordam os direitos humanos, como é a liberdade de escolha de tratamento, e que tem sido negligenciada na política e na prática da saúde mental hoje predominantes.

O fato é que, em 2015, o Ministério da Saúde norueguês permitiu a instituição de unidades sem medicação para pacientes com ‘doenças mentais graves’. Yeisen e coautores escrevem:

“Essa mudança na política de saúde do governo tem várias implicações diretas, incluindo a tomada de medicação antipsicótica, em grande parte opcional, para pacientes com psicose ativa”.

Illustration titled, “you are not listening,” by Brenda Beerhorst. (Flickr)

Em seu novo estudo, Yeisen em colegas estiveram interessados em reunir as perspectivas defendidas pelos psiquiatras sobre o programa livre de drogas, bem como conhecer suas opiniões sobre como isso pode afetar a adesão dos pacientes aos medicamentos antipsicóticos.

A coleta e a análise dos dados foram realizadas a partir de metodologias qualitativas, fundamentadas na fenomenologia e na análise temática. Entrevistas semiestruturadas foram realizadas com 23 psiquiatras, com quatro a trinta e cinco anos de experiência especializada, residentes na Noruega ou em vários outros países da Comunidade Europeia.

As descobertas deste estudo demonstraram que as perspectivas dos psiquiatras se fundiram em torno de quatro grandes temas. Os psiquiatras expressaram opiniões de que (1) o tratamento sem medicação era ‘uma opção não científica para um grupo de pacientes estigmatizados’, (2) uma minoria descontente de usuários do serviço pressionou pelo estabelecimento de programas livres de medicação e suas opiniões não representam as experiências da maioria dos usuários dos serviços, (3) que existe um paradoxo entre ter liberdade de escolha no tratamento e os pacientes apresentarem “falta de insight” em seu transtorno, e (4) que opções de tratamento sem medicação “exacerbariam as atitudes negativas em relação à medicação e agravariam ainda mais as existentes questões de adesão. ”

Os seguintes segmentos de entrevistas de opinião de psiquiatras sobre programas livres de medicação foram apresentados no trabalho de pesquisa representando os quatro temas identificados por Yeisen e colegas.

Tema 1: “Tratamento sem medicação: uma opção não científica para um grupo de pacientes estigmatizados”.

Os psiquiatras expressaram suas opiniões negativas sobre programas livres de medicação, ressaltando sua convicção de que a psicose é uma doença cerebral a requer intervenção com drogas.

“Acho que tem a ver com o estigma … acho que esses remédios têm uma reputação pior do que merecem.”

“Acredito que parte dessa ânsia de remover remédios, eu acho que só se pode ter se não se houver visto como as pessoas doentes em psiquiatria ficam sem remédios”.

“Minha impressão é que muitos daqueles que são céticos em relação à medicação, sinto que eles realmente não sabem o quanto as pessoas estão doentes ou o quão perigosas elas podem ser, ou qual a diferença que a medicação pode fazer na vida delas”.

“Isso me deixa a ficar a pensar que seria como que voltar a 50 anos atrás, seria como que voltar ao que ocorria antes da chegada dos antipsicóticos.” 

Tema 2: “Quando a minoria está no comando: as vozes mais altas são as que têm suas opiniões ouvidas”.

Os psiquiatras acham que os programas livres de medicação são impulsionados por usuários insatisfeitos, motivados ideologicamente ao invés de serem baseados na ciência.

“Alguns perderam uma criança que morreu e passaram a ter a ideia de que isso se deveu ao uso da medicação, ao tratamento psiquiátrico errado ou a algo parecido, que foi o diagnóstico o que levou ao suicídio… Um parente descontente tem que assumir a sua responsabilidade pelo que ocorreu, mas esses pais não representam a média dos parentes próximos que estão realmente satisfeitos com o tratamento ”.

“Eu sei que esta não é uma batalha que você pode vencer, porque o grupo que você está combatendo está ideologicamente baseado, e isso significa que essas pessoas não permitirão ser orientadas por estudos científicos.”

Tema 3: “Pacientes com sintomas psicóticos: o paradoxo de ‘falta de insight e a escolha do tratamento”

Os psiquiatras comentaram sobre a “falta de discernimento” dos pacientes como sendo um dos aspectos mais “frustrantes” e “desafiadores” de seu trabalho, e como isso se relaciona com a opção de abandonar as substâncias psicoativas.

“Pacientes que infelizmente não têm conhecimento da doença, com eles é difícil fazer com que tomem um antipsicótico … Eles têm medo de tomar medicação em geral, dizem que não estão doentes e que não precisam dela.”

“Eu acho que tem muito impacto, esse aspecto do insight … Por que você tomaria algum remédio, sabendo que tem efeitos colaterais, se você não tem nenhum sintoma?”

“Primeiro e acima de tudo, eles alegarão ter sido erroneamente admitidos e que são saudáveis. ‘Eu funciono bem, então por que devo tomar medicação’?”

Tema 4: “Profissionalismo versus ideologia que desconsidera a ciência”

Todos os psiquiatras entrevistados consideraram que os defensores de programas livres de medicação estavam enraizados em perspectivas não científicas e ideologicamente fundamentados. Eles discutiram a sua decisão de seguir “diretrizes, especialização e estudos de pesquisa”, apesar da “pressão”.

“Eu acho que minha responsabilidade como médico é recomendar o que funciona. Não posso justificar uma recomendação de tratamento sem drogas para um paciente com esquizofrenia. Não posso justificar isso com base na experiência nem na pesquisa ”.

“Acho que, nesse caso, nossas mãos ficam bem amarradas se alguém vier  para ditar que não podemos dar aquele tratamento que eu acho ser o melhor para a doença daquele paciente.”

“Alguns pacientes vão morrer ou matar outras pessoas devido ao tratamento errado, é o que eu penso. Eu acredito que é muito prejudicial e não vejo nenhum benefício com isso. ”

“Claramente, com a política sendo essa que há agora, a sociedade e a maneira como estamos nos movendo para dar mais foco à autonomia e ao voluntarismo às pessoas que estão doentes, os  que talvez não tenham uma visão do fato de que precisam de tratamento, com isso passaremos a ter atos mais violentos. Passaremos a ter mais pessoas mentalmente doentes perturbando a comunidade local onde talvez não devam estar, porque se diz ser seu direito humano tomar essa decisão. O fato de os pacientes poderem tomar suas próprias decisões e tentar viver sem medicação, isso aumenta a relutância daqueles que já de antemão são céticos”.

Revisando esses achados, Yeisen e seus colegas concluem mostrando as preocupações expressas pelos psiquiatras de que os programas de medicamentos opcionais promoveriam posturas anti-medicação e interfeririam na adesão ao tratamento. No geral, os psiquiatras parecem acreditar que as opções livres de drogas e a promoção do direito à liberdade de escolha não são científicas. Os psiquiatras sinalizaram que responderão a essa iniciativa, defendendo as diretrizes de tratamento e o que aprenderam em sua formação profissional.

No entanto, existe um debate substancial na literatura clínica e de pesquisa sobre os efeitos a longo prazo do tratamento com drogas antipsicóticas para psicose e que os riscos de segurança significativos superam quaisquer benefícios. Além disso, os críticos já apontaram para o impacto dos interesses da corporação e da corrupção institucional nas diretrizes atuais que recomendam esse tratamento hegemônico.

****

Yeisen, R. A., Bjørnestad, J., Joa, I., Johannessen, J. O., & Opjordsmoen, S. (2019). Psychiatrists’ reflections on a medication-free program for patients with psychosis. Journal of Psychopharmacology, 0269881118822048. (Link)