A Qualidade dos Cuidados de Saúde Mental Comunitária Depende dos Direitos Humanos e da Expertise dos Usuários

Uma rede de provedores europeus toma como foco o desenvolvimento de serviços de saúde mental colaborativos e acessíveis.

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Os prestadores de serviços em toda a Europa reuniram-se para definir uma visão compartilhada de cuidados alta qualidade para a saúde mental comunitária. Este esforço está centrado em uma perspectiva de direitos humanos e na experiência de pares para promover a recuperação para todos.

A Rede de Prestadores de Serviços de Saúde Mental da Comunidade Europeia (EUCOMS) publicou recentemente um documento de tomada de posição onde delineia seis princípios para melhorar as estruturas dentro da saúde mental comunitária e informar governos, entidades e financiadores.

“De acordo com a visão dos membros do EUCOMS, os bons serviços de saúde mental são descritos como sendo abrangentes, acessíveis igualitariamente para todos, integrados, voltados para a recuperação, destinados a proteger e respeitar os direitos humanos, a fazer emprego de intervenções efetivas e personalizadas e a trabalhar em colaboração com os usuários dos serviços e as suas redes.”

(Photo Credit: European Union/Barbara Minishi/Flickr Creative Commons)

Em 2015, a rede EUCOMS foi criada quando os provedores se reuniram para uma reunião sobre atendimento integrado e a divulgação assertiva. Ao reconhecer as tendências de desinstitucionalização e a crescente necessidade de cuidados de qualidade baseados na comunidade, eles procuraram visualizar e redefinir os “bons” cuidados de saúde mental comunitária.

O desenvolvimento de serviços comunitários de saúde mental tem sido um dos principais objetivos da política de saúde, já que as atitudes do provedor e do usuário do serviço se distanciaram dos cenários da internação psiquiátrica de longa permanência. No entanto, os hospitais continuam a receber a maior parte do financiamento e dos recursos, tornando os cuidados comunitários como os mais baixos na lista de prioridades políticas. Além disso, há uma falta de consenso entre as partes interessadas sobre como desenvolver com sucesso o cuidado baseado na comunidade. As barreiras incluem a falta de cooperação entre os setores social e de saúde, a resistência à mudança, a falta de liderança clara e forte e as dificuldades que envolvem a integração da saúde mental nos contextos de saúde primários.

Com base na necessidade de identificar os princípios e elementos-chave de cuidados de alta qualidade baseados na comunidade, para desenvolver esse  documento de tomada de posição, a rede do EUCOMS consultou especialistas em saúde mental, usuários com expertise a partir de suas próprias experiências e pesquisadores.  Este artigo, de autoria de René Keet e da equipe do EUCOMS, foi recentemente publicado no BMC Psychiatry. O objetivo do artigo é contribuir para diminuir a distância entre evidência, política e prática:

“O EUCOMS pretende contribuir para a discussão sobre como reduzir a distância entre evidências, políticas e práticas na Europa, apoiando a implementação regional de cuidados de saúde mental de qualidade, levando em consideração os diversos contextos.”

Seis princípios foram identificados pela rede do EUCOMS como sendo os principais componentes para informar a organização e a estruturação de cuidados comunitários. Saúde mental comunitária de alta qualidade: “(1) protege os direitos humanos, (2) tem um enfoque de saúde pública, (3) apóia os usuários em sua jornada de recuperação, (4) faz uso de intervenções efetivas baseadas em evidências e objetivos do cliente, (5) promove uma ampla rede de apoio na comunidade e (6) faz uso da expertise de pares na elaboração e na dispensação de serviços.”

Os direitos humanos são apresentados como um princípio fundamental. De fato, Keet e seus colegas observam que o movimento para enfatizar os direitos humanos foi uma força motriz para fechar hospitais psiquiátricos e avançar para o cuidado baseado na comunidade. A rede do EUCOMS está alinhada com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência(CRPD) e com o Relator Especial Dainius Pūras (ver relatório no MIB) para melhorar estruturalmente as instalações de saúde mental de acordo com um quadro de direitos humanos.

“O documento de tomada de posição recomenda evitar a exclusão da vida comunitária, o que impacta negativamente a capacidade de se integrar à sociedade, atingir metas de recuperação e levar uma vida significativa. Para realizar isso, os governos precisam garantir que os direitos de todas as pessoas sejam respeitados com a mesma base legal. Isso requer uma revisão das políticas nacionais e dos quadros legislativos.”

Os autores esclarecem que a saúde pública se refere à equidade entre grupos, assim como a saúde em nível da população. Isso vai além do tratamento e inclui promoção e prevenção. Desse modo, uma perspectiva de saúde pública é fundamental para o cuidado baseado na comunidade e estende o direito humano ao “mais alto padrão atingível de saúde”. O artigo descreve numerosas considerações para facilitar a implementação bem-sucedida de metas de saúde pública em nível comunitário.

Ao longo do documento, a rede EUCOMS enfatiza constantemente a necessidade de os provedores darem suporte aos usuários em sua jornada de recuperação, oferecendo esperança, colaborando ao em vez de tomar decisões para o usuário do serviço e centralizando novamente o foco nos pontos fortes do usuário. A recuperação é descrita como complexa, tanto individual quanto multidimensional.

Os autores escrevem: “A recuperação tem várias dimensões, incluindo a recuperação clínica (alívio dos sintomas psiquiátricos); recuperação funcional (participação significativa na sociedade) e recuperação pessoal (restauração da identidade pessoal). A recuperação é um processo individual único ou uma experiência que pode ser melhor descrita enquanto uma jornada. Em bons cuidados de saúde mental baseados na comunidade, os profissionais são companheiros nesta jornada pelo menor tempo possível, embora o tempo que for necessário”.

Apoiar a recuperação bem-sucedida e os cuidados de saúde mental baseados na comunidade é fazer uso de evidências científicas para orientar as intervenções, de acordo com o EUCOMS. Eles recomendam o uso de “tratamento psicológico baseado em evidências”. A medicação deve ser usada “como uma ferramenta e não como um objetivo”, esclarecem. A rede do EUCOMS tenta fundir os diferentes campos de cuidados baseados em evidências e voltados para a recuperação, observando que os dois devem se informar mutuamente. Eles escrevem:

“A terceira e próxima era em saúde mental é a era moral, com uma redução de medidas obrigatórias, abrindo mão da prerrogativa profissional e uma transição para a civilidade e a colaboração entre pacientes e cuidadores. O movimento em direção à terceira era é impulsionado por evidências limitadas de melhores resultados de abordagens biológicas e psicológicas apenas em saúde mental, e pelo crescente conhecimento sobre a poderosa influência de fatores sociais, como a desigualdade na saúde mental ”.

No centro dos cuidados comunitários de saúde mental está o reconhecimento de que a saúde mental envolve toda uma abordagem sistêmica que se baseia na expertise de provedores em colaboração em uma equipe multidisciplinar. Para aumentar a resiliência dos usuários do serviço e de suas redes de apoio, é importante considerar suas redes de suporte relacional e preencher a lacuna entre profissionais e não profissionais, afirma a rede do EUCOMS.

“A experiência profissional dos membros da equipe é combinada com a experiência vivida pelos usuários. O mesmo princípio pode ser aplicado à colaboração intersetorial ”, escrevem eles.

“No entanto, esses objetivos podem ser obstruídos quando pressões econômicas externas ditam sistemas e intervenções de saúde mental”, conforme os autores.

“A integração dos serviços comunitários de saúde mental, setores e colaboração com a rede social do usuário do serviço pode ser dificultada por um sistema de financiamento que favoreça o cuidado institucional (por exemplo, recompensando a ocupação do leito). Portanto, recomenda-se criar um sistema de financiamento flexível que permita incentivos para diferentes serviços que abordem os domínios relevantes da vida de pessoas com uma doença mental ”.

Além das evidências científicas e da expertise dos provedores, a rede EUCOMS sugere a valorização da expertise e das contribuições dos pares em contextos comunitários de saúde mental. Os pares não apenas fornecem um exemplo vivo da possibilidade de recuperação, mas também podem fornecer orientação e apoio inestimáveis a outros em sua jornada para a recuperação por meio de seu envolvimento na concepção, implementação e avaliação de intervenções. No espírito de “nada sobre nós sem nós”, a rede do EUCOMS sugere redistribuir o poder para envolver os usuários do serviço como especialistas e fornecer os recursos apropriados para facilitar essa prática.

É importante ressaltar que, apesar de tentar tirar proveito das perspectivas de diversas partes interessadas, a equipe do EUCOMS não teve representação igual entre os grupos de partes interessadas. Os autores revelaram a super-representação de membros de países da Europa Ocidental e que receberam relativamente pouca contribuição de usuários de serviços e cuidadores.

Eles concluem:

Com este documento de tomada de posição, o EUCOMS espera contribuir para a discussão sobre como melhorar as estruturas dos cuidados de saúde mental e diminuir a distância entre evidências, políticas e práticas na Europa. Os próximos passos essenciais para o sucesso do EUCOMS são conectar e envolver os diversos grupos de partes interessadas com o diálogo contínuo, o consenso de pesquisa e a construção de capacidades de defesa da causa ”.

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Keet, R., de Vetten-Mc Mahon, M., Shields-Zeeman, L., Ruud, T., van Weeghel, J., Bahler, M., . . . Nas, C. (2019). Recovery for all in the community; position paper on principles and key elements of community-based mental health care. BMC psychiatry19(1), 174. https://doi.org/10.1186/s12888-019-2162-z (Link)