O uso da terapia eletroconvulsiva (ECT) para tratar a depressão deve ser imediatamente suspenso, diz um estudo.

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A eletroconvulsiva terapia (ECT) é ainda frequentemente usada. Os psiquiatras defendem ECT como sendo um procedimento médico baseado em evidências científicas.

Uma nova revisão, um estudo publicado em Ethical Human Psychology and Psychiatry, avaliou a qualidade dos estudos que comparam ECT para tratamento da depressão com ECT-placebo. A análise também avalia as únicas cinco meta-análises existentes e que afirmam que a ECT é mais eficaz do que a terapia eletroconvulsiva simulada.

A conclusão dos autores é que não há evidência alguma que a ECT é efetiva para os seus principais alvos: as pessoas gravemente deprimidas, as pessoas suicidas e/ou as pessoas que tentaram sem sucesso tratamentos medicamentosos.

John Read, um dos autores e professor de Psicologia Clínica na University of East London, explica:

“Em combinação com o alto risco de danos cerebrais da ECT, essa ausência de evidência de eficácia significa que a relação custo-benefício é tão assustadora que não há lugar para a ECT na medicina baseada em evidências”.

Mesmo sendo uma intervenção clínica tão perigosa para a integridade do cérebro, mesmo não havendo evidências de eficácia, a ECT é ainda usada em aproximadamente um milhão de pessoas anualmente, muito particularmente aqui no Brasil.

Na atual revisão, os autores examinaram a qualidade de 11 estudos, por terem sido os únicos que compararam ECT com tratamento placebo, e cinco meta-análises que examinaram esses estudos. Os autores desenvolveram uma escala de qualidade de 24 pontos, combinando os domínios de “risco de viés” da Cochrane Handbook Risk of Bias Tool (randomização, ocultação, dados de resultados incompletos e relatórios seletivos) com outros critérios relacionados à qualidade do projeto e dos relatórios, e alguns critérios específicos de pesquisa com ECT.

Os resultados dessa atual revisão são impactantes. Primeiramente, ao se verificar que é baixo o escore de qualidade desses 11 estudos: 12.3 de 24 pontos; apenas 3 estudos obtiveram algum escore acima de 13.  Mas também ao se saber que as pesquisas disponíveis são muito antigas, com o estudo mais recente ocorrendo no Reino Unido em 1985. E o estudo mais recente comparando ECT com tratamento com placebo nos Estados Unidos tem 57 anos. Não há outras pesquisas comparáveis realizadas fora do Reino Unido e dos EUA. Em um comunicado de imprensa, J. Read afirma:

Este corpo de pesquisa é da mais baixa qualidade que eu já vi em meus 40 anos de carreira.”

Os autores apontam questões importantes sobre como os estudos revisados foram conduzidos. A primeira é quanto à qualidade da literatura que supostamente dá sustentação científica para tal tipo de terapêutica: a literatura como um todo é inexpressiva e claramente incapaz de determinar se a ECT é mais ou menos eficaz do que a ECT placebo para a redução da depressão. A segunda questão importante é que nenhum dos 11 estudos é duplo-cego – o que significa que nem os participantes nem os pesquisadores sabiam quem estava no grupo de tratamento versus quem estava no grupo placebo. Ora, como os autores chamam a atenção, estudos duplo-cegos são cruciais para evitar mudanças reais equivocadas – nesse caso, sintomas depressivos reduzidos – para o que é, na realidade, efeito placebo. Os participantes dos ensaios clínicos feitos há décadas tinham conhecimento que dores de cabeça e confusão temporária seguem as sessões de ECT; portanto, sabiam se haviam sido colocados na ECT ou no grupo placebo, invalidando o estudo.

O professor Irving Kirsch, diretor associado de estudos sobre placebo na Harvard Medical School, é o segundo autor deste estudo. Kirsch é um renomado pesquisador de placebo, bem conhecido por suas pesquisas que explodiram o mito dos antidepressivos, já havendo apresentado seus estudos aqui entre nós no Brasil.  Recentemente uma equipe de pesquisadores poloneses publicou um estudo sobre a obra de referência de Irving Kirsch de 1998, “Ouvindo Prozac, mas escutando o placebo: uma meta-análise de medicação antidepressiva”. Para se entender o impacto da ECT como oposto ao placebo, a exemplo do que havia sido demonstrado por ele com referência aos antidepressivos, é crucial que os ensaios clínicos sejam feitos de uma maneira rigorosa – o que não é o caso com nenhum dos estudos que são disponíveis a respeito da ECT. Kirsch afirma:

“Eu não acho que muitos defensores da ECT entendam quão fortes são os efeitos do placebo para um procedimento importante como a ECT”.

Portanto, nenhum dos estudo pode ser dito que tenha sido submetido ao “double-bind”. Além disso, embora ECT seja usado principalmente em mulheres e com a média de idade entre 60 e 65 anos, apenas três estudos tiveram amostras que refletiram a demografia dos que são submetidos à ECT.  Em seus achados, nenhum dos estudos examinou o papel da idade ou de gênero, nem tampouco a etnia dos participantes, quando o esperado é que os estudos sejam representativos das variáveis demográficas da população.

Uma outra flagrante falha metodológica é que embora ECT seja uma intervenção recomendada aos indivíduos gravemente deprimidos enquanto um último recurso, a maioria dos estudos não fornece uma clara informação para dar suporte que tenham incluído participantes gravemente deprimidos. Na verdade apenas seis dos estudos mencionam a inclusão de pessoas gravemente deprimidas; dois claramente nada mencionam. Quanto a pacientes suicidas, embora esses pacientes tenham provavelmente sido incluídos por acaso em alguns estudos, apenas dois relataram se pacientes suicidas foram de fato incluídos.  Isso deixa às claras a falta de evidências que dão sustentação ao uso de ECT com indivíduos gravemente deprimidos. Kirsch explica:

“A falha em encontrar benefícios significativos em longo prazo em comparação com os grupos placebo é particularmente angustiante. Com base nos dados dos ensaios clínicos, a ECT não deve ser usada em indivíduos deprimidos. ”

Outras falhas metodológicas incluem os relatos seletivos dos resultados, as amostras com tamanho reduzido, em média apenas 37 pessoas, assim como não examinam os efeitos da ECT na qualidade de vida dos participantes. Menos que a metade (46%) dos participantes haviam tentado antidepressivos antes da ECT – embora ECT seja suposto a ser usado apenas quando outros tratamentos tenham fracassado, conforme as diretrizes vigentes pelo National Institute of Clinical and Health Excellence (NICE).

Os resultados dos estudos são inexpressivos: quatro dos onze encontraram ECT significativamente superior ao ECT placebo no final do tratamento, cinco não encontraram diferença significativa e dois encontraram resultados mistos (incluindo um em que os psiquiatras relataram diferença, mas os pacientes não o fizeram).  Apenas dois estudos relatam dados de acompanhamento (follow-up). Um produziu um tamanho de efeito quase zero a favor da ECT, e o outro um tamanho de efeito pequeno em favor da ECT placebo.

Esses pífios resultados terapêuticos da ECT são preocupantes levando em consideração os graves efeitos colaterais prejudicais. Efeitos colaterais que em muitos casos são irreversíveis, que incluem perda de memória permanente, dano cerebral, trauma cerebral, assim como morte em alguns casos.

Infelizmente, apesar dos riscos da ECT, pesquisas anteriores de John Read apontam práticas preocupantes associadas à administração da ECT na Inglaterra – com destaque para seu uso desproporcional em mulheres mais velhas e para pessoas fora do seu público alvo e fora da base de evidências, como as diagnosticadas com transtornos de personalidade.

As meta-análises que examinam esses estudos ignoram muitas dessas limitações, e a maioria das meta-análises também é datada, com apenas uma realizada nos últimos 15 anos. Os pesquisadores concluem que as falhas nos desenhos do estudo, o número pequeno de estudos e o tamanho pequeno da amostra tornam impossível concluir que a ECT é melhor que o placebo no curto ou no longo prazo, ou com seu público-alvo. Read chegou a conclusões semelhantes, citando pouca ou nenhuma evidência disponível para apoiar o uso da ECT a curto ou longo prazo, ou para tratar a depressão ou prevenir o suicídio. A revisão conclui:

A pretensão das cinco meta-análises existentes de que ECT seja eficaz na depressão está baseada em estudos que como já vimos são de péssima qualidade. Das cinco meta-análises existentes, a única feita nos últimos 15 anos, a que foi conduzida pelo Instituto de Psiquiatria de Londres, em 2019, é bastante problemática. Seus autores reivindicam fortemente a eficácia da ECT tomando como base apenas um estudo comparando ECT propriamente dito com ECT placebo. Os próprios autores desta meta-análise avaliaram que a pesquisa tinha um “alto risco” de viés pelos critérios da Cochrane.

Read e Kirsch concluem que é impossível se dizer que ECT é melhor do que placebo tanto em termos de curto quanto de longo prazo. Read já havia chegado a conclusões similares, citando as escassas evidências existentes para dar sustentação científica para o uso da ECT em curto ou longo prazo, ou para tratar a depressão ou para prevenir o suicídio. A revisão conclui:

“A qualidade da maioria dos estudos  ECT placebo vs. ECT é tão ruim que as metanálises estiveram erradas ao concluir qualquer coisa sobre eficácia, durante ou após o período de tratamento. Não há evidências de que a ECT seja eficaz para o seu alvo demográfico – mulheres mais velhas ou seu grupo-alvo de diagnóstico – pessoas gravemente deprimidas ou suicidas, pessoas que tentaram sem sucesso outros tratamentos primeiro, pacientes hospitalizados ou adolescentes.”

Finalmente, os autores defendem o fim do uso da ECT, argumentando que os custos superam quaisquer benefícios potenciais, considerando que mesmo os chamados benefícios (redução da depressão) da ECT não foram suficientemente validados por evidências:

“Dado o alto risco de perda permanente de memória e o pequeno risco de mortalidade, essa falta de evidências científicas em determinar se a ECT funciona ou não significa que o seu uso deve ser imediatamente suspenso”.

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Read, J., Kirsch, I., & McGrath, L. (2020). Electroconvulsive therapy for depression: A review of the quality of ECT versus sham ECT trials and meta-analyses. Ethical Human Psychology and Psychiatry, 21(2), 1-40. (Link)

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Matéria da BBC NEWS a respeito dos resultados desse artigo de Read e Kirsch: “ECT depression therapy should be suspended, study suggests”.

Matéria publicada no The Telegraph: “ECT therapy for depression should be ‘immediately suspended’, study suggests”.

Publicado em UK News: “No evidence that ECT works for depression – new research“.