No recente artigo publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva, os autores abordam a prescrição de psicofármacos na primeira infância. A pesquisa, realizada por Mariana Pande, Paulo Amarante e Tatiana Baptista, fez um levantamento de bases bibliográficas da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) e do Scielo.
O artigo tem origem a partir do aumento global de pesquisas sobre os fenômeno dos diagnósticos psiquiátricos e sobre os malefícios dos psicofármacos, ao mesmo tempo em que vem crescendo a prescrição de psicotrópicos para crianças de até 6 anos. A literatura relaciona efeitos adversos de psicofármacos em crianças e adolescente entre eles: Síndrome de Dress, agravamento da depressão e tentativas de suicídio, síndrome neuroléptica maligna, efeitos extrapiramidais, problemas metabólicos e cardiovasculares como obesidade e risco aumentado de diabetes.
A pesquisa constatou que, a nível nacional, existe uma carência quanto a pesquisas de médio e longo prazo que identifiquem os efeitos dos psicofármacos na população em geral, e mais ainda, em relação à população infantil. Foram achados dois estudos apenas abordando o assunto. Os dois analisavam prontuários em serviços de saúde no sul do país. Porém, nenhuma das duas foram claras quanto à faixa etária das crianças.
Nos estudos brasileiros, constatou-se que crianças tratadas com psicofármacos permaneciam por mais tempo em atendimento no serviço e apresentam menos registros de alta e melhora do que aquelas em tratamento apenas psicoterapêutico. Também identificou-se o aumento do número de crianças medicadas ao longo do tempo. O outro estudo, trouxe que a prevalência do diagnóstico de TDAH é de 20,4% na faixa etária de 3 a 16 anos dos usuários daquele serviço. O fármaco mais utilizado (92,6%) foi o metilfenidato, mas concluiu-se que houve pouca adesão ao tratamento por parte dos cuidadores.
Já as pesquisas internacionais foram mais abundantes e trouxeram o aumento das prescrições de psicotrópicos para pré-escolares em países como Estados Unidos, Canadá, França e Alemanha, realizadas principalmente por médicos generalistas e pediatras. Um dos estudos demonstraram que a prescrição de antipsicóticos para crianças entre 2 a 5 anos em planos privados de saúde nos EUA quase dobrou entre 1999-2001 e 2007. E assim por diante.
Os autores revelam que uma parte significativa dos psicofármacos utilizados na primeira infância é definida como “off label”.
“O uso off label de um medicamento (não apenas psicotrópicos, nem apenas na infância) implica em não haver indícios satisfatórios da eficiência, eficácia e segurança necessárias para a sua autorização. Outros fatores também fazem com que os medicamentos sejam off label: quando, por exemplo, não há a formulação infantil específica, ou quando a prescrição se recomenda o fracionamento da dose.”
No Brasil a ANVISA aprova alguns psicofármacos para o uso na população infantil sem estudos suficientes para seu uso seguro. Assim, a prescrição fica ao cargo pessoal do prescritor. O uso de medicamentos “off label”, tanto psicofármacos como outras classes de medicamentos, não é proibido no Brasil e nem em outros países como os EUA, pois entende-se que os médicos teriam o direito de prescrever medicamentos para usos não autorizados.
O que a literatura internacional vem mostrando é a grande variedade na prescrição de medicamentos para crianças, um exemplo é uma pesquisa que constatou a utilização de 30 diferentes tipos de combinações medicamentosas para o tratamento de TDAH em crianças de até 3 anos. Portanto, o uso de medicamentos “off label” constitui um paradoxo ético. Por um lado, são prescritos medicamentos com efeitos pouco conhecidos por evidências científicas; por outro, há limitações éticas e regulatórias importantes na realização de pesquisas clínicas com crianças.
“Um exemplo dos malefícios a longo prazo é evidenciado em um projeto chamado Risperdal Boys. É um trabalho fotográfico que dá visibilidade a casos de rapazes norte-americanos que fizeram uso da risperidona ainda quando crianças, tendo sido acometidos por um efeito indesejado irreversível, a ginecomastia. Com o passar dos anos, muitos deles precisaram realizar mastectomias. Estima-se que mais que 18 mil pessoas tenham processado a indústria farmacêutica nos Estados Unidos devido a efeitos indesejados desse medicamento.”
Como conclusão, o artigo evidencia a carência de estudos brasileiros sobre o uso de psicofármacos na infância, abrindo lacunas importantes. Aconselha-se maiores estudos na área e o investimentos em políticas públicas que contribuam com a centralização das informações e com sua divulgação. Uma verdadeira urgência epidemiológica.
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PANDE, Mariana Nogueira Rangel; AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho; BAPTISTA, Tatiana Wargas de Faria. Este ilustre desconhecido: considerações sobre a prescrição de psicofármacos na primeira infância. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 25, n. 6, p. 2305-2314, June 2020 .