O discurso medicalizante apresenta-se na escola de forma marcante. Como exemplo atual, defrontamo-nos com os questionamentos provenientes da tensão entre a pandemia de COVID-19 e a escola. O debate sobre a reabertura das escolas impõe-se e não pode mais ser adiado. Entretanto, observa-se por parte das escolas a utilização de um discurso embebido pela medicalização e psiquiatrização do sofrimento com vistas a legitimar e garantir a sua reabertura.
A produção de sintomas e transtornos na infância devido aos efeitos psicológicos da Covid-19 são lançados corriqueiramente de forma leviana. Por isso, em função do prolongamento da pandemia de Covid-19, este debate não pode ser mais abafado nem restrito a discursos falaciosos. Este debate acontece quando ultrapassamos quatro milhões de casos confirmados (estima-se mais que o dobro em função das subnotifições) e mais de 131 mil vidas perdidas.
Partimos da contextualização dos fatos a partir do precioso levantamento dos dados realizado por Rosane Braga de Melo referentes à pandemia e sua relação com a escola. Segundo a ANVISA (07/2020), a pandemia de COVID-19 se configura como uma emergência de saúde pública global, cujo início data de dezembro de 2019, com a notificação de um surto na China, em Wuhan, que já causou infeção em mais 28 milhões de pessoas no mundo e mais de 920 mil óbitos. De acordo com Rosane Melo: “o Brasil se encontra em um triste ranking, como o segundo país em número de óbitos e o terceiro em casos confirmados (abaixo da Índia e dos Estados Unidos). Sem transparência nas estatísticas e com evidências de subnotificações dos casos, o Brasil é citado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um país em que o vírus está no controle. Estamos há mais de 120 dias sem Ministro da Saúde, sem um plano de prevenção ou contenção da transmissão da COVID-19, sem testagem sistemática da população e em grande escala, sem o monitoramento dos casos por um longo tempo, sem transparência em relação aos dados sobre a doença, sem coordenação de ações entre as esferas municipal, estadual e federal. Sequer temos um discurso comum de manutenção e de respeito aos protocolos sanitários e de higiene, como o distanciamento social, a utilização de máscaras e a higienização das mãos, medidas de prevenção não farmacêuticas cruciais para a manutenção de vidas. Após o período da quarentena, planos de reabertura e flexibilização em cada estado brasileiro priorizou atividades comerciais, e colocou como serviços essenciais salão de cabeleireiro, academias, a construção civil, e recentemente bares, shoppings e praia”.
E, Melo continua: “Além disso, quase 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada, e apenas 46% dos esgotos gerados nos país são tratados. Fatores que, dentre outros, contribuem para uma incidência 50% maior de casos de COVID-19 em bairros em que há muitas favelas. A abertura das escolas colocará em circulação um grande contingente de crianças e jovens que circularão pela cidade em transportes públicos (raramente as escolas estão a 200 metros de sua casa), educadores e toda a comunidade escolar – que muitas vezes trabalham em duas e até três escolas – que também necessitam de transporte público. A Escola Nacional de Saúde Pública lançou em julho um manual de biossegurança para reabertura das escolas, advertindo que a tomada de decisão do poder público de reabrir escolas deve estar pautada em um “cenário epidemiológico de redução sustentada da transmissão da Covid-19”. O manual preconiza que quando for identificado no território a redução da transmissão e houver uma decisão pela abertura das escolas, o plano de biossegurança já deve estar em andamento e desde muito antes então da abertura e ter envolvido toda a comunidade escolar para apropriação das orientações e planejamento das ações. Contudo, que secretarias têm envolvido toda a comunidade escolar para se apropriar do conceito de biossegurança e realizar com o coletivo da escola o planejamento de ações?”.
À luz desses elementos parece fundamental que seja reaberta a discussão sobre a função social da escola e o lugar da infância na nossa cultura, além do abandono de argumentos simplistas nas análises de risco veiculadas até o momento.
Para além da perspectiva conteudista, quais estratégias de enfrentamento têm sido propostas pelas escolas em termos de oferecimento de um espaço de escuta e acolhimento para seus alunos e familiares? Se, efetivamente vivemos sob o risco de prejuízo social, cognitivo e emocional para as crianças (que não necessariamente vão se configurar em termos patológicos), como isto vem sendo contemplado pelas instituições de ensino, principalmente particulares? Existe uma preocupação efetiva com o sofrimento infantil? Há várias outras incógnitas que nos inquietam e acionam nosso pensar.
Nesta conjuntura que se apresenta uma crise multifacetada, incluindo aspectos sanitários, sociais, econômicos, políticos e ambientais, o que temos diante dos nossos olhos é um exemplo do que é a destrutividade mortífera do uso perverso do poder. Isso não se apresenta apenas nos atos dos estadistas. Habita os pequenos gestos que revelam a banalidade do mal e a dimensão da pulsão de morte como causa e efeito da lógica mercadológica orientada pelo capital.
Sabemos que, ao invocar a compulsão à repetição e a pulsão de morte em 1920, Freud reconheceu a inexorabilidade da repetição nos caminhos que levam para o sofrimento, repetição que chegou a qualificar de demoníaca, mortífera. Todavia, a questão de como se constitui e atua esta força que empurra o homem para a dor e para o mal continuou sendo um tema central de todas as suas formulações posteriores tendo em vista a complexidade do tema (Rudge, 2006).
Por outro lado, a pulsão de morte não pode estar ausente de nenhum processo de vida, ela se confronta permanentemente com Eros. Da ação conjunta e oposta desses dois grupos provem as manifestações da vida.
Diante da premência da pulsão de morte que permeia o cenário atual, a desmedicalização do discurso é urgente para que se possa fazer operar um esforço para sustentar os fiapos de um tecido social esgarçado, que, apesar de todos os ataques, insiste em um projeto civilizatório, onde a palavra seja articulada em narrativa, diálogo, criação, ligação, invenção e, até mesmo, re-invenção. Nesse sentido, pensamos que a escola precisa se re-inventar, criar novos dispositivos e estratégias de suporte emocional e cognitivo para pais e alunos, pois, sobre os escombros das arquiteturas da destruição seguimos cuidando das nossas crianças, contando e recontando as histórias que permitiram à humanidade atravessar momentos difíceis de privações, exclusões e condenações.
Os riscos reais e os danos simbólicos precisam ser levados em conta e seriamente considerados quando se trata da reabertura das escolas. O laço pais-filhos está permeado pelo sintoma social de cada época. Assim, se a inserção social contemporânea está calcada na corrida do triunfo individual e, esta corrida está temporariamente em suspenso, inibida, ainda nos resta a aposta na pulsão de vida que se faz presente na brincadeira, no contato, na ligação, em um desenho, uma canção compartilhada, uma palavra que se articula, na afetividade que liga e sustenta uma imprescindível rede relacional (Jerusalinsky, 2002).
Referências
Freud, S. (1975) The standard edition of the complete psychologycal works of Sigmund Freud. London: Hogarth Press.
(1926[1925]) “Inhibitions, symptoms and anxiety”, v. XX, p.75-172.
(1937) “Analysis Terminable and Interminable”, v. XXIII, p.209-254.
Jerusalinsky, J. (2002). Enquanto o futuro não vem: a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês. São Paulo: Ágalma.
Melo, R. B. (2020). O debate sobre abertura e fechamento das escolas: riscos e discursos falaciosos (Parte 1). https://www.facebook.com/rosane.b.melo
Rudge, Ana Maria. (2006). Pulsão de morte como efeito de supereu. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 9(1), 79-89. https://doi.org/10.1590/S1516-14982006000100006