A infância nos tempos de isolamento social: um debate para além dos discursos medicalizantes

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O debate sobre a infância e o desenvolvimento infantil é fundamental, sobretudo neste momento da crise global e multifacetada diante da Covid-19. Uma das dimensões que foi profundamente afetada com o necessário isolamento social, em termos de desenvolvimento infantil, foi a escolarização das crianças e adolescentes. Por essa via podemos pensar o desenvolvimento infantil em amplo aspecto, abrangendo seu caráter biopsicossocial.

A irrupção da Covid-19 produziu uma ruptura na rotina que nos dava a sensação de controle, estabilidade e, até mesmo, segurança. Tudo mudou repentinamente. De uma hora para outra, tivemos que promover mudanças substanciais em nossas vidas. Tantas mudanças que, sob minha ótica, ao invés de pensarmos em “novo normal”, penso que estamos diante de um novo mundo. E este novo mundo exige novas lentes de leitura.

Questões sociais que estavam historicamente invisibilizadas ganharam proeminência. As diferenças sociais na pandemia de Covid-19 escancararam o desamparo radical das classes menos favorecidas. Assim, podemos dizer que a pandemia foi de certa forma como uma lupa que amplia os problemas estruturais da nossa sociedade. A insegurança e a incerteza passaram a fazer parte da rotina.

Nunca entendemos muito bem como o papel da escola no tecido social organiza o cotidiano e temporaliza a vida também dos adultos. O rompimento com este cotidiano produziu um desalento em todos nós, crianças e adultos.  A pandemia produziu um desacerto no dia-a-dia.

Ficou claro o quanto a escola é um espaço de proteção à infância, de nutrição, de aprendizagem, de socialização, de circulação de afetos, de encontros entre elas próprias e com outros adultos significativos como os professores, cuidadores, auxiliares etc. Diante desse turbilhão, surge o questionamento: abrir ou fechar as escolas? Se tudo reabre, por que não as escolas? As crianças estão sofrendo isoladas. Há prejuízo da saúde mental infantil com o isolamento, então porque não reabrir?

Assim, o debate sobre a abertura das escolas se impõe e merece ser constantemente aprofundado. Entretanto, é válido destacar que no entorno do desenvolvimento infantil e do processo de escolarização gravitam os discursos dos pais, dos educadores, dos empresários, dos funcionários da rede pública e privada e dos políticos. Na conjuntura atual, é preciso considerar a constituição psíquica das crianças profundamente atravessada por essa gama de discursos que operam entre os campos da saúde mental e da educação. Em parte das escolas particulares, há a utilização de um discurso embebido pela psicopatologização do sofrimento infantil com vistas a garantir a sua reabertura e manter seus interesses privados. Por parte dos pais e das famílias de modo geral notamos uma sobrecarga de atribuições e tarefas que conduzem a exaustão física e psíquica, principalmente materna. Por parte dos educadores também identificamos sobrecarga de trabalho, medo, insegurança e comprometimento da sua saúde mental. Por fim, verificamos da parte de alguns políticos interesses eleitoreiros muitas vezes ancorados em uma perspectiva negacionista.

O modo de raciocínio binário, abrir ou não abrir as escolas não funciona para responder às questões complexas que se colocam. É preciso sair dos falsos dilemas e aprofundar discussões que devem preceder qualquer decisão.

A abertura das escolas tem sido encarada como da ordem dos direitos fundamentais e associada à garantia de saúde mental das crianças e adolescentes. Peço licença para levantar alguns questionamentos: 1- que tipo de escola as crianças vão se deparar com o retorno as aulas durante a pandemia de covid-19? 2- Como estarão os profissionais que irão receber essas crianças? 3- Como esses profissionais foram apresentados aos protocolos de segurança sanitária? 4 – Quais são os protocolos que estão sendo seguidos já que não há uma unidade discursiva de proteção em relação ao vírus?

O advento da pandemia e o fechamento das escolas fizeram surgir questionamentos sobre a função social da escola tanto para os adultos, quanto para os adolescentes e as crianças. Não sabemos ainda sobre todos os riscos e os impactos do isolamento social sobre as crianças. Contudo, sabemos que a escola vai recolher estes efeitos. Torna-se importante invertermos a lógica operante, desmedicalizar o discurso com o intuito de ampliarmos o debate e nos questionarmos: qual escola temos e qual escola queremos. Quais os recursos pedagógicos dispomos e quais obstáculos estamos enfrentando?

A escola possui função civilizatória, sendo um lugar de acolhimento emocional, de transmissão do legado cultural para as gerações mais novas. Neste contexto é preciso pensarmos nas múltiplas dimensões do cuidado (cuidado familiar, cuidado sanitário, cuidado social, cuidado jurídico entre outros). Podemos pensar que a psique infantil, construída por meio dos cuidados, repercute de modo significativo ao longo  de  toda a  vida.  Cada cultura, cada sociedade e cada época se caracterizam por procedimentos específicos em relação aos cuidados, porém, estes são alicerces psíquicos que permitem e permeiam o engendramento do sujeito. Com efeito, é difícil – ainda que importante – lançarmos um olhar sobre o contexto de nossa época, tendo em vista que os cuidados não são dispensados no vácuo, os cuidadores e os objetos de seus cuidados têm uma existência determinada.

Portanto, os questionamentos sobre a reabertura das escolas não têm resposta óbvia.

Na condição de isolamento social, as crianças se voltam para suas famílias, para a tensão existente entre o mundo jovem e o mundo adulto, para o espaço familiar, assim como para as particularidades dos laços que habitam cada família. Ora, não podemos colocar unicamente sob a égide da escola a salvaguarda da saúde mental das crianças e adolescentes.

Outras questões se colocam como a vulnerabilidade infantil e a violência doméstica, as manifestações de sofrimento que são imediatamente capturadas por lógicas diagnósticas e/ou práticas tecnocráticas. Estas questões também não devem ficar resumidas à pronta resposta favorável à reabertura. Será que a redução da violência contra a criança é de responsabilidade da escola? A abertura da escola garante a ausência de violência intra-familiar e a saúde mental das crianças?

Se os sistemas relacionais, as interações sociais e os sistemas exploratórios são fundamentais para o desenvolvimento infantil, por outro lado, neste momento, é preciso ter cautela e comedimento para que vidas possam ser poupadas. Principalmente, vidas de crianças de baixa renda, vidas de pessoas de classes precarizadas.

Com frequência surge a pergunta: mas até os bares estão abertos, por que não as escolas? Ora, é necessário inverter esse questionamento: por que os bares, restaurantes, cabeleireiros e praias (tidos como serviços essenciais) foram reabertos precocemente?

À luz desses elementos parece fundamental que seja reaberta a discussão sobre a função social da escola e o lugar da infância na nossa cultura, além do abandono de argumentos simplistas nas análises de risco veiculadas até o momento. É fundamental pensarmos em saídas coletivas e criativas que contemplem o macro e o microcosmo que envolve cada criança e cada setor. Precisamos buscar parcerias entre os setores, respostas intersetoriais que, por exemplo, tenham em vista que a saúde mental de crianças e adolescentes é visceralmente vinculada às políticas públicas e à rede de proteção e atenção psicossocial.

Nesse sentido, acredito que a escola precisa se re-inventar, criar novos dispositivos e estratégias de suporte emocional e cognitivo para pais e alunos. A escola precisa ser pensada para além dos muros.