Um artigo publicado na revista History of the Present discute a história da intersecção da política progressista com o campo da psicanálise. O autor Alex Colston argumenta que a psicanálise e os movimentos políticos de esquerda como o comunismo podem ter uma relação mutuamente benéfica. Entretanto, é uma relação com uma história longa e complicada, começando com a ambivalência política de Sigmund Freud. Colston cita Freud:
“Se uma cultura não passou de um ponto em que a satisfação de uma parte de seus participantes depende da supressão de outra, e talvez de uma parte maior – e este é o caso em todas as culturas atuais – é compreensível que as pessoas suprimidas desenvolvam uma hostilidade intensa em relação a uma cultura cuja existência elas tornam possível através de seu trabalho, mas de cuja riqueza elas têm uma parte muito pequena.
Em tais condições, não é de se esperar uma internalização das proibições culturais entre as pessoas reprimidas… é evidente que uma civilização que deixa um número tão grande de seus participantes insatisfeitos e os leva à revolta não tem nem merece a perspectiva de uma existência duradoura”.
Há uma rica história da relação entre o pensamento psicanalítico e a política progressista e de esquerda. Desde o comunismo inicial de Wilhelm Reich até o “Freudo-Marxismo” da Escola de Frankfurt e o Marxismo de Frantz Fanon e outros, uma série de questões tem sido levantada na intersecção dessas duas escolas de pensamento relativas à liberdade humana e à libertação.
Embora possam parecer aliados desconfortáveis – com a tendência da psicanálise para o tratamento individualizado e o marxismo prescrevendo uma revolução social – os pensadores continuam a se basear tanto na análise da sociedade quanto na consideração de soluções para muitos males da saúde mental contemporânea.
O artigo atual traça uma breve história da relação entre política de esquerda e psicanálise, começando com Sigmund Freud e terminando com o polêmico psicanalista francês Jacques Lacan. Ao longo do caminho, o autor Alex Colston examina uma série de controvérsias que surgiram na intersecção entre os dois.
Segundo Colston, o “pai” da psicanálise, Sigmund Freud tinha uma relação complicada com a política progressista. Alguns historiadores o pintaram como um social-democrata, outros como politicamente neutro, e outros ainda como um liberal de estilo antigo – talvez porque o liberalismo produziu um grau de tolerância para com as suas raízes culturais judaicas.
Freud criticou o comunismo em seu livro Mal-Estar na Civilização, argumentando que os marxistas subestimam a transmissão intergeracional de valores e ideologias culturais (ou “injunções super-egoicas”) quando ressaltam a infraestrutura econômica ou materialista de uma sociedade.
Ainda assim, não demorou muito para que os colegas de Freud associassem a psicanálise ao marxismo. Otto Gross, Wilhelm Reich, Erich Fromm e outros viram um ponto de encontro potencialmente fértil entre os dois modos de pensamento e ação.
Uma das dificuldades de se tentar combinar a psicanálise com movimentos sociais progressistas, como o socialismo ou o comunismo, é que a psicanálise se preocupa principalmente com o que está dentro das pessoas. Por exemplo, de uma perspectiva psicanalítica, os conflitos políticos podem se reduzir à fantasia, à adolescência, com tentativas de “matar o pai”:
“Concebida como realização de desejos, ‘a política é neutralizada por uma psicologia antipolítica'”.
Segundo Colston, porém, a compreensão de Freud da revolta social como um “fracasso de transmissão” de valores culturais é exatamente como os psicanalistas de esquerda assumem o papel que a psicanálise pode desempenhar na mudança social. Além disso, ele argumenta que esta “lacuna” é o local da mudança, pois abre oportunidades para pensar de maneira diferente sobre arranjos políticos.
Para Wilhelm Reich e personalidades da Escola de Frankfurt, tais como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Erich Fromm, o que era necessário seria que a psicanálise incorporasse uma dimensão social e histórica mais forte à sua compreensão. Por outro lado, muitos pensavam que o marxismo tinha um “elo fraco” ao considerar a subjetividade e o desejo humano. Chegando ao meio-termo, talvez cada lado pudesse reforçar o outro.
Durante a “era de ouro” do capitalismo após a Segunda Guerra Mundial, no entanto, muitos psicanalistas se integraram à ordem sociopolítica dominante, levando a um tipo de psicanálise “conformista” que não questionava o seu papel na sociedade como parte do estabelecimento psiquiátrico.
Para Colston, outra mudança ocorreu com o surgimento da “Nova Esquerda” nos anos 60. Frantz Fanon, Herbert Marcuse, Gilles Deleuze, Felix Guattari e outros estiveram envolvidos na reanimação dos sentimentos anti-capitalistas. Embora muitas desses intelectuais fossem críticos à psicanálise, eles também foram influenciados por ela.
Talvez o mais famoso entre os psicanalistas mais ortodoxos a sair desta era intelectual tenha sido o analista francês Jacques Lacan, que tem sido motivo de muita controvérsia sobre as suas opiniões políticas. Lacan declarou a necessidade de um “retorno a Freud”, embora muitos argumentem que ele reinterpretou fortemente legado de Freud e criou a sua própria escola de pensamento e prática psicanalítica.
Durante as revoltas de trabalhadores e estudantes do final dos anos 60 na França, Lacan se tornou um sujeito de notoriedade política. Alguns consideram o seu legado duradouro como um aviso aos dissidentes políticos de que eles estavam apenas “procurando por um novo mestre”:
“A aspiração revolucionária tem apenas um único resultado possível – acabar como o discurso do mestre”. Isto é o que a experiência tem provado”. O que vocês aspiram como revolucionários é um mestre. Vocês terão um”.
Colston vê a contribuição de Lacan de forma mais positiva, argumentando que Lacan estava simplesmente tentando erguer um espelho para os aspirantes a revolucionários de uma forma se mirassem e que isso poderia ajudá-los a esclarecer seus objetivos e desejos:
“…sem o discurso psicanalítico para esclarecer o desejo, a aspiração revolucionária pode abrigar, embora oculta, a contra-revolução dentro de seu projeto – desencadeando uma revolta mal reconhecida e que falha o seu alvo ao longo do caminho”.
Como evidência das tendências progressistas de Lacan, ele aponta o “apoio inequívoco” de Lacan de ir para as ruas, o que era questionado por outros psicanalistas.
Concluindo a sua análise, Colston afirma que o divã analítico pode servir como um espaço para, mais uma vez, esclarecer a situação em que cada um de nós se encontra, bem como para considerar quais objetivos os progressistas políticos estão visando alcançar e como chegar lá:
“A psicanálise, em outras palavras, pode revelar ao analisando o desejo de jogar a pedra da calçada”. O analista pode até mesmo fazer perguntas evocativas que podem resituar ou esclarecer seu desejo: ‘a quem você está jogando essas pedras da calçada? E para quem você está atirando-as?””
Quanto aos próprios psicanalistas, ele acredita que há espaço para o envolvimento político “como camaradas”, ainda que a clínica psicanalítica, ou a sala de conferências, não seja em si mesma uma participação direta na revolução social:
“No entanto, a psicanálise assim como a pedagogia não conseguem assumir o ato político enquanto analista ou professor. No entanto, ainda é possível entrar nessa lacuna, e esta é a distinção crucial sobre a qual a psicanálise política paira: um analisando, que é necessariamente também um analista, ainda pode fazer aquela etapa sempre incerta da ação política como camarada. Desta forma, enquanto ele preserva uma medida de neutralidade analítica, Dolar também concorda com Otto Gross: a psicanálise é um trabalho preparatório para a revolução”.
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Colston, A. (April 01, 2022). Left Freudians: The psychoanalytic politics of disobedience. History of the Present: A Journal of Critical History, 12(1), 127-142. (Link)