De que modo Conceitos como Trauma e Resiliência reforçam o Neoliberalismo no Sul Global

Como falar de "resiliência" e "trauma" impõe narrativas neoliberais às comunidades do Sul Global.

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Um novo artigo publicado no Journal of Theoretical and Philosophical Psychology argumenta que o entendimento geral de trauma e resiliência compreende profundamente mal o sofrimento dos refugiados e órfãos no Sul Global. O artigo é escrito pelo escritora do MIA Ayurdhi Dhar, da Universidade de Mount Mary, e Sugandh Dixit do Bapu Trust em Maharashtra, Índia.

As autoras utilizam uma análise autorreflexiva e compartilham histórias familiares e pessoais de movimento, migração, busca de refúgio e orfandade para argumentar que os entendimentos atuais de “refugiado” e “órfão” se baseiam na ideologia neoliberal.

Desde seu início, o movimento global de saúde mental tem procurado situar concepções universais de saúde mental e sofrimento psíquico entre culturas diversas. Este processo de universalização da saúde mental tem sido bem sucedido, mas somente na medida em que ele tem tomado como referência as práticas e a compreensão do bem-estar mental e da saúde do Norte Global (Estados Unidos, Canadá, Europa, Austrália e Nova Zelândia) e o tem exportado para o Sul Global, incluindo os seus povos originários.

Central para a crítica deste movimento é o argumento de que a globalização dos sistemas da psicologia norte-americana e europeia não leva em conta a variação transcultural das emoções e das práticas de cura tradicionais.

“A psicologia nunca foi e ainda não é livre de valores e, além disso, tem negado veementemente a sua natureza política”, escrevem Dhar e Dixit. “…o sujeito da Psicologia continua sendo o sujeito neoliberal… Em sua fidelidade ao capitalismo neoliberal, este sujeito associa a felicidade (que ele fetichiza) à produtividade. O que afirmamos é que o capitalismo neoliberal também associa o sofrimento à produtividade, e através de uma análise autorreflexiva da orfandade e da condição de refugiado, nós propomos o conceito de sofrimento aprodutivo, e a forma(menos) de sofrimento psíquico que age como uma prática revolucionária e como um antídoto para esta recuperação”.

A psicologia, como é entendida pelo Norte Global, tem permeado o nosso dia-a-dia como uma espécie de verdade universal que localiza nossos sucessos, nossas alegrias e, o que é importante, nossos fracassos e sofrimentos de forma única dentro de nós mesmos – e isto é intencional – Dhar e Dixit. A psicologia é incapaz de identificar os sistemas de opressão que “negligenciam a violência política e o racismo sistêmico que perpetua seus sofrimentos”, porque é fundada dentro deles. A psicologia nomeia os refugiados e as identidades e narrativas dos órfãos como inerentemente sujeitos heroicos ou prejudicados, nada mais e nada menos.

“Mas, se momentaneamente elevarmos estas duas narrativas, estamos encalhados em uma terra incerta e desconfortável, onde o imenso sofrimento destes dois sujeitos não tem significado imediato”.

De fato, Dhar, através de sua narrativa sobre a sua experiência enquanto refugiada, identificou que enquanto o que aconteceu com sua família foi devastador, não foi “traumatizante” no modo como a psicologia apresenta os sujeitos traumatizados – sua interioridade como para sempre marcada por seu horror. Em vez disso, ela argumenta que a traumatização da experiência aconteceu no pós-deslocamento – e que a psicologia europeia-americana dificilmente tem ajudado os refugiados a entender as suas experiências e, em vez disso, ajudado os nacionalistas xenófobos.

Sua família inteira tinha duas identidades: refugiada e resiliente. O “refugiado” só precisa ser descritivo, mas, argumenta ela, a psicologia torna a identidade prescritiva – com suas raízes no neoliberalismo, ser refugiado é ter sofrido e o neoliberalismo dita que se deve sofrer por algo.

Este sofrimento neoliberal só pode ser linear, mas Dhar observa que “esta simplificação através de narrativas lineares é um dos efeitos adversos da Psicologia, e não é um acidente“. Esta simplificação atende ao fundamentalismo que precisa de narrativas simples sustentadas por respostas médias que dizem: “Veja o que todos os muçulmanos de Caxemira fizeram a estas pessoas; eles agora têm TEPT e baixo ajuste social. Não há lugar para respostas contraditórias ou sentimentos confusos“.

Enquanto isso, onde os refugiados são construídos como resilientes, os órfãos são construídos como heróicos, como Dixit compartilha:

“As histórias de órfãos muitas vezes se tornam anedotas de sucesso e fazem parte de um sistema de valores econômicos que capitaliza o sofrimento. Uma linguagem de sucesso através de histórias de ações e proezas romantizadas e heróicas é enxertada na realidade do sofrimento humano. É somente depois de comer o fruto do sofrimento que uma história de sucesso pode ser vivida; traumas passados se tornam uma moeda de troca. Que estas interpretações heroicas passaram a desfrutar de tal predominância tem menos a ver com testemunhos de sobrevivência, e menos ainda com a coragem e inspiração para nós mesmos, do que com o pavor e a tentativa de esperança de que não acabemos lá, ‘mas pela graça de Deus’, como diz um ditado popular. Há uma qualidade adicional ao heroísmo destas histórias, que são os temas da liberdade sobrehumana, da vontade e da agência do indivíduo, muito parecido com as histórias sobre o refugiado”.

Estas identidades prescritivas dadas aos refugiados e órfãos definem a linguagem que eles devem usar para interagir e se envolver com sua experiência, mesmo que não seja a linguagem que eles escolheriam para si mesmos, mesmo que nunca se sentissem traumatizados, resilientes ou heroicos.

“Assim, a Psicologia”, argumentam Dhar e Dixit, “não apenas dá uma voz autoritária e prescritiva à própria integridade (enquanto prioriza a própria interioridade), mas também define a linguagem que se deve usar para dialogar com esta interioridade, forçando por sua vez o órfão, o refugiado, o paciente a desconfiar da própria voz”.

Portanto, Dhar e Dixit formulam uma nova forma de entender o sofrimento, que não tem para onde ir; um sofrimento que não foi concebido para produzir um heroi. Em vez disso, eles cunham o termo “sofrimento aprodutivo”.

“Este sofrimento, seu sofrimento, nosso sofrimento, que por um relâmpago se torna significante (menos) torna estes sujeitos revolucionários porque é a antítese do capitalismo neoliberal, na medida em que é marginal, significando (menos), e o mais importante, é aprodutivo. Ele não cria excelentes trabalhadores, gênios torturados, grandes escritores, cientistas famosos ou executivos brilhantes – ele não pode ser comoditizado. Este sofrimento aprodutivo em seus próprios termos não é congelado ou interiorizado para se tornar uma cicatriz interna que se deve carregar no corpo enquanto ele festeja em nossa mente e se aninha em algum inconsciente, eventualmente transformando-se em trabalho produtivo ou conflito intrapsíquico. Em oposição ao eterno, é transitório; em oposição ao individual, é coletivo; em oposição ao interiorizado, é compartilhado”.

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Dhar, A., & Dixit, S. (2021). Making of a crisis: The political and clinical implications of psychology’s globalization. Journal of Theoretical and Philosophical Psychology(Link)

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Samantha Lilly traz a sua formação em filosofia, bioética e justiça social para o seu trabalho como suicidóloga crítica, com a crença de que a suicidologia, no seu melhor, é um trabalho de justiça social. Antes de iniciar um doutoramento em Saúde em Ciências Sociais na Universidade de Edimburgo, Sam recebeu uma bolsa Thomas J. Watson Fellowship. O seu projecto, "Understanding Suicidality Across Cultures", deu-lhe o privilégio de trabalhar ao lado de especialistas em ética, académicos e defensores dos direitos nos países da Benelux, Lituânia, Argentina, Aotearoa, e Indonésia. A investigação actual da Sam dedica-se a trazer metodologias feministas e descoloniais para a prevenção do suicídio.